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O ENEM e a desigualdade

Imagem O ENEM e a desigualdade
Bnews - Divulgação

Publicado em 19/01/2021, às 10h49   Penildon Silva Filho


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Ontem foi realizado o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com a maior taxa de abstenção da história. Antes da realização do Enem em 17 de janeiro do presente ano, já identificávamos que as desigualdades sociais, econômicas, raciais, de gênero e regionais faziam com que a pandemia incidisse desigualmente sobre os diferentes grupos. A maior taxa de mortes entre negros, pessoas com habitações aglomeradas ou precárias, nas periferias das grandes cidades já indicava que a pandemia não atingia todos de forma “democrática”. O Enem de ontem aprofundou ainda mais essa desigualdade, expondo o caráter excludente do modelo econômico e político do Brasil de hoje, modelo “darwinista social”, negacionista e adepto da “necropolítica”.

O desemprego e agora o “desalento” no mercado de trabalho significaram um aprofundamento na desigualdade econômica, elemento fundante da desigualdade em todas as esferas, tanto em 2019 quanto durante toda a pandemia. Embora o governo federal insista que a taxa de desemprego durante a pandemia saltou de 13% para 14% apenas, quando vemos o número de pessoas que deixaram de procurar emprego e estão desempregadas, as “desalentadas”, que não são contabilizadas como parte da taxa de desemprego, há um salto de cerca de 10 milhões de pessoas. O número real é que temos pelo menos 14 milhões de desempregados (que buscam emprego e não conseguem) e mais 24 milhões que não tem emprego, não têm renda e nem conseguem buscar emprego. Para se ter uma ideia, em julho-agosto de 2019 o Brasil tinha 106,315 milhões de pessoas na população economicamente ativa, que envolve os empregados e os desempregados, sem os desalentados, mas em julho de 2020, e até hoje não mudamos muito, tivemos 96,556 milhões de pessoas nesse segmento, quase 10 milhões a menos. O número de pessoas ocupada entre julho de 2019 a julho de 2020 passou de 94,552 milhões para 82,464 milhões, e não tivemos o desparecimento dessas 10 milhões de pessoas, elas apenas deixaram se contabilizadas, e mesmo assim o desemprego ficou em 14%. É preciso somar esses números. 

É importante salientar que nessa população economicamente ativa temos empregos com carteira assinada, servidores públicos, trabalhadores informais, micro-empreendedores individuais, trabalhadores precarizados, e houve uma redução da renda de forma geral, e mais forte justamente na base da pirâmide social, . 

Quem mais perdeu emprego e renda foram os mais pobres, os de menor escolaridade, os negros, os habitantes das periferias, e que são aqueles que ficam mais expostos à pandemia pois precisam sair de casa para trabalhar, enquanto que as pessoas de maior renda migraram para o trabalho on line, “home office”. Com o fim da ajuda emergencial e a recusa do governo federal em mantê-la até o fim da pandemia, a miséria, a fome e o desespero de milhões de brasileiros tornarão o país mais desigual, mais violento, excludente e injusto ainda. A inflação também aprofundou a desigualdade. A “inflação dos mais pobres” foi de 6,22% enquanto que a inflação para os segmentos de maior renda da Sociedade foi de apenas 2,74%, segundo os pesquisadores do Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Na Educação não foi diferente, as crianças e jovens estudantes do setor privado, responsável por apenas 20% das matrículas da Educação Básica, enquanto o setor público responde por 80%, ficaram com suas atividades em sua maior parte transpostas para o meio digital, e eram famílias que tinham condições de ter um computador, acesso à internet, acesso a livros, espaços adequados para o estudo, apoio dos pais em casa quando estavam no “home office”. A quase totalidade dos alunos do setor público nada teve que lhes permitisse dar seguimento nos estudos, e esses alunos não tiveram acesso a conteúdos digitais de ensino, e mesmo que tivessem esse aceso não teriam equipamentos e internet que lhes permitisse acessar essa opção. Como o atual governo federal não tem prioridade com a vacina para todos nem perspectiva de apoiar o SUS, essa desigualdade se mantém hoje na Educação e deve perdurar até o final de 2021.

O Enem realizado radicalizou essa desigualdade, ao registrar na edição de 2021 a maior abstenção da sua história, chegando a 51,5% dos inscritos. E deve-se considerar que essa falta de mais da metade dos alunos é uma estimativa falsa, pois muitos nem se inscreveram no Enem pela descontinuidade dos estudos e muitos dos que se apresentaram no domingo da prova foram impedidos de entrar nas salas por falta de espaço, por insalubridade e outros passaram mal pela falta de infraestrutura. É interessante observar como a desigualdade na Educação é resultado da desigualdade social e reprodutora e principal perpetuadora dessa desigualdade. 

No dia da prova, vários colégios particulares montaram tendas para dar apoio a seus alunos/consumidores, lembrando o que algumas academias de ginástica fazem apenas para seus clientes em maratonas. A analogia é adequada, pois o ENEM e a entrada na Universidade são uma corrida que pode parecer justa por se tratar de um   mesmo exame, mas na verdade não é equânime, pois alguns alunos tem mais condições, apoio, suporte econômico, social, tecnológico e emocional que outros, e equidade pressupõe tratar os desiguais de forma diferenciada para minimizar as assimetrias. As cotas foram uma conquista desde 2005 na UFBA e desde 2012 em todas as universidades e institutos federais de Educação, e elas começaram a democratizar o acesso à Universidade e tratar com equidade os alunos, reconhecendo as diferenças e tentando diminuir as desigualdades para ter acesso e permanência nas instituições. Mas a forma como a pandemia foi enfrentada no Brasil foi extremamente benéfica para quem era rico, de escola particular e brancos, sendo um retrocesso nessa trajetória anterior das cotas.

Várias instituições formalizaram o pedido de adiamento do Enem pela insegurança sanitária visível, mas o MEC e o INEP mantiveram a primeira fase do exame para o dia 17 de janeiro. Essa data não considerou nem ao menos a pesquisa realizada pelo próprio INEP, pois nessa pesquisa a maioria apontou o mês de maio /2021 como o melhor momento para realização do exame.

Houve grande prejuízo para os estudantes inscritos pela insalubridade do espaço, inclusive para os de escolas particulares. Isso se soma a toda a desigualdade do período da pandemia que impactou os alunos e escolas públicas. O razoável seria o INEP viabilizar uma nova oportunidade para mais da metade dos inscritos que não puderam participar do Enem neste domingo e para aqueles que não se inscreveram antes. Isso é perfeitamente possível, pois esses alunos entrarão apenas no segundo semestre de 2021; e não havia uma justificativa pedagógica ou sanitária para fazer o ENEM agora em janeiro, no pico da pandemia, a não ser como uma estratégia do governo federal aferrado ao seu negacionismo da Ciência e na busca apenas de polarizar politicamente, fazer uma guerra ideológica e tentar forçar um retorno às aulas de forma inconsistente e irresponsável. 

Vivemos um momento de dificuldades de mobilização dos alunos por seus direitos, até pelo obstáculo da pandemia para realizar reuniões, assembleias, passeatas, assim como a completa ausência do espaço escolar, que é por excelência o espaço do encontro. Teremos toda uma geração de estudantes de escolas públicas prejudicada, e infelizmente a ausência de perspectiva de vacinação para todos torna distante o horizonte de mobilização para uma remarcação do ENEM e para a retomada das escolas presencialmente em 2021. Uma política assim não é um acidente ou um acaso; é um projeto de destruição da Escola Pública como promotora de direitos, oportunidades e diminuição de privilégios, ao lado do projeto negacionista da Ciência e destruição do SUS.

Penildon é Professor da UFBA e doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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