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Resolver problemas

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Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 11/04/2021, às 18h21   Penildon Silva Filho


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Os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) Dias Toffoli e Alexandre de Moraes se pronunciaram sobre algumas decisões recentes de colegas da Corte, questionadas por supostamente fazer interferência indevida na política ou provocar um desequilíbrio entre os poderes. Dias Toffoli afirmou: “O que mais me preocupa é isso de a política não resolver os problemas. É muito ruim isso vir ao Judiciário”, acrescentou ainda que “O local que essas questões deveriam estar sendo solucionadas e resolvidas é no âmbito da política, com o Legislativo e o Executivo”. Alexandre de Morais por sua vez se pronunciou afirmando que “há um vácuo de liderança do Executivo em enfrentar problemas, dificuldade de agir prontamente.”

Caso se avalie a decisão do ministro Barroso de determinar a realização da CPI sobre a atuação do governo federal na pandemia da COVID-19, foi uma decisão acertada, pois as pré condições para a instalação de uma CPI estavam satisfeitas no requerimento da mesma, e contava com assinaturas suficientes de senadores, e esses prerrequisitos estão previstos na Constituição, que tem como seu guardião o STF. O que não está previsto na Constituição seria o direito dos presidentes da Câmara e do Senado de decidir se instala ou não a CPI, um poder imperial inconstitucional de avaliar a “conveniência” de haver uma determinada CPI, pois essas comissões servem para que a minoria no parlamento possa investigar e monitorar os poderes do executivo. Não cabe ao presidente da casa decidir se devem e quando existir. 

Se as críticas foram com relação à anulação das decisões judiciais pela Justiça Federal de Curitiba contra Lula ou sobre a votação acerca da suspeição de Moro nos processos de Lula, são críticas infundadas, pois é pertinente à função do STF avaliar se os direitos constitucionais de Lula de presunção da inocência, de ter um julgamento justo sem acertos entre defesa e juiz e de ter o princípio do “juiz natural”, que não seria o de Curitiba. Apesar desse acerto nas decisões, o STF demorou para tomar essa posição, com prejuízos evidentes para o réu Lula e para a população brasileira, pelo impacto que essas ações tiveram na política nacional, que resultou na eleição do atual presidente. Certamente Bolsonaro não seria eleito presidente caso esses processos viciados e ilegais não tivessem servido para prender e retirar Lula da eleição presidencial em 2018 ou se Moro não tivesse liberado denúncias vazias em acerto com a campanha do candidato que viria a ser eleito, e de acordo com o calendário das eleições para tentar criar o maior prejuízo possível para a candidatura de Haddad.

É indevida então a afirmação de que “a polícia não resolve os problemas” e por isso um poder supostamente mais responsável e consciente, o Judiciário, seria um poder moderador sobre os demais. O STF e o judiciário contribuíram para essa situação de desastre social, econômico, político, institucional e sanitário em que o Brasil se encontra, e o discurso de que a política “não resolve problemas”, ou está inativa, que a política é incompetente ou deixa à desejar, reforça o senso comum autoritário de que as instituições não resolvem a situação política do Brasil e por isso se precisaria de salvadores de fora da política. Esses salvadores seriam na verdade atores sem eleição pelo povo, no caso os juízes, ou os militares. Um poder sem soberania popular.

Se o judiciário tivesse cumprido seu papel, e tivesse “resolvido problemas” no tempo certo, a decisão pela suspeição de Moro teria sido tomada cinco anos antes, quando a defesa de lula entrou com a ação. Por que nada foi feito nesse período? Por que apenas agora, depois de todo o prejuízo social e político gerado? Por que o princípio do “juiz natural” não foi respeitado desde 2014 e 2015? Afinal não é algo estranho aos que estudam o Direito, muito menos aos juízes e ministros. Por que apenas 4 ou 5 anos depois da defesa ter arguido essa questão, o STF se pronunciou? O princípio do juiz natural estabelece que deve haver regras objetivas de competência jurisdicional, garantindo a independência e a imparcialidade do órgão julgador, o que envolve também o local onde está a jurisdição da ação. Era completamente inconstitucional Moro avocar a si questões tão distintas em tema e que aconteceram em regiões diferentes no Brasil que deveriam ser objeto de outros juízes e juízas. No Brasil, todas as Constituições, exceto a de 1937, contemplaram o princípio do juiz natural. 

Constata-se então uma demora em “resolver os problemas” pela Corte Suprema, com repercussões mortais nos dias de hoje pela pandemia, pela falta de auxílio emergencial, pela recessão econômica, pela não compra de vacinas a tempo, pelas campanhas do presidente da República contra as medidas de segurança da população, com o conflito permanente entre a União, os Estados e municípios, e ameaças inclusive de ruptura da ordem constitucional. Essas últimas decisões do STF foram importantes, mas tardias, e efetivamente o judiciário e o STF não cumpriram seu papel, sendo descabido esse comentário dos ministros, que deveriam se abster de se pronunciar publicamente atacando a “política”, a não ser que haja interesses e projetos de interferência na política.

Podemos dar outros exemplos de como os problemas de hoje foram causados também pela ação ou omissão das diversas instâncias do judiciário. A decisão do STF em 2018 de determinar a prisão de condenados em segunda instância foi contra a Constituição, manteve Lula na cadeia e permitiu a eleição de Bolsonaro. As decisões do Tribunal Regional Federal de Porto Alegre referendaram as irregularidades da Justiça Federal de Curitiba em 2018, assim como o STJ, numa cadeia de ações e omissões com efeitos gigantescos, até que no mês de março de 2021 esses processos foram revistos.

Mais anteriormente, no caso do processo do “mensalão”, o relator do processo no STF, Joaquim Barbosa Gomes, lançou mão de uma teoria estranha ao ordenamento jurídico brasileiro, a “Teoria do Domínio do Fato”. Segundo ele, um agente público apenas por estar no cargo de gestor obrigatoriamente sabe de todas as ações de seus subordinados. Essa teoria foi elaborada pelo jurista alemão Claus Roxin, que criticou a aplicação criativa feita no Brasil pelo ministro do STF e pelo então procurador geral da República Roberto Gurgel, isso ainda em setembro de 2014. Ele discordou da aplicação que foi dada à sua tese, pois segundo ele é equivocada a interpretação de que a teoria teria sido desenvolvida para tornar mais severas as penas das pessoas que comandam as estruturas políticas. O autor da teoria afirmou que a real proposta era punir os responsáveis pelas ordens e as pessoas que as executam em uma estrutura hierarquizada que atuem fora da lei. Já naquele episódio observa-se a relação de simbiose entre uma parte do judiciário e a mídia no sentido de utilizar aspectos jurídicos, mesmo que inconstitucionais ou fora da interpretação correta, para atacar politicamente determinados opositores.

Mais recentemente o ministro aposentado Joaquim Barbosa Gomes se filiou a um partido político e pensa em disputar a presidência da república ou em entrar em uma coligação, obviamente usufruindo da notoriedade pública produzida pela imprensa que à época tinha interesse em atacar o governo federal. Isso demonstra a necessidade de se ter mais claros esses limites das relações entre os poderes e principalmente a utilização de instrumentos estranhos à política, ao debate de ideais, às realizações das políticas públicas para alcançar o poder.

Esses estratagemas fizeram com que, ao fim e ao cabo, alguns militares da ativa hegemonizassem o atual governo. Com certeza se não houvesse esse desvirtuamento da função do judiciário, da cobertura parcial e engajada da mídia e do discurso anti-político e anti-cidadania que adveio desse aparelhamento judicial e midiático, esse grupo não alcançaria o poder que hoje desfruta, implementando uma política entreguista contra os interesses nacionais, de destruição da capacidade industrial e do Estado nacional.

A política deve ser aprimorada na política, no diálogo das ideias, dos projetos, dos planos econômicos, das propostas para as políticas públicas, na avaliação das realizações dos governos. Deve haver uma arena de debates e de embates de projetos, e evitar o uso distorcido que é feito da justiça e da mídia que despolitizam o debate, provocam reações extremadas, comportamentos irracionais e uma aversão pela construção de consensos.

Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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