Política

O “Future-se” e as Universidades

Imagem O “Future-se” e as Universidades
Professor da UFBA e doutor em Educação  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 18/08/2019, às 17h00   Penildon Silva Filho


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O Governo Federal lançou há algumas semanas o Programa chamado “Future-se”, destinado a, segundo palavras do Ministro de Estado da Educação, “salvar a Universidade, permitir o empreendedorismo, a inovação, a internacionalização e uma gestão voltada à captação de recursos externos”. O “Future-se”, termo que é um neologismo de caráter e gosto duvidosos, tem recebido generosas verbas publicitárias, com propaganda em todos os meios de comunicação, inclusive nos intervalos dos programas televisivos em “horário nobre”. Há um interesse muito grande, uma determinação mesmo, da atual gestão do MEC na aprovação dessa proposta. Essa generosidade das verbas destinadas aos meios de comunicação é extremamente assimétrica à situação orçamentária das universidades federais, que desde o início do ano sofrem com um bloqueio de recursos orçamentários e o contingenciamento de outra parcela, que devem deixar as universidades sem o correspondente de 20% a 30% de seus orçamentos em 2019. Não há recursos para pagar contas de luz, água, telefone, serviços terceirizados, e várias instituições já indicaram sua dificuldade em dar andamento às suas atividades a partir do presente momento.

Há uma aparente contradição entre um bloqueio e um contingenciamento dos orçamentos das universidades federais tão brutais ao lado de uma campanha publicitária agressiva e rica pelo projeto do governo federal. Pode-se considerar aparente a contradição porque podemos ler a conjuntura como algo articulado: é necessário provocar uma crise, um conflito, para depois se apresentar uma solução “miraculosa” que será a redentora dos problemas da Educação Superior. Essa tática já foi usada em outros momentos, seja na crise econômica provocada pelo ajuste fiscal em 2016 e 2017 que serviu de base para os discursos pela aprovação da Reforma Trabalhista, com a promessa de que 5 milhões de empregos seriam criados (o que não ocorreu); seja atualmente na campanha pela aprovação da reforma da previdência com a argumentação de que a Previdência é inviável e, caso não seja feita a reforma da “Nova Previdência”, todos estaríamos condenados a não ter aposentadorias no futuro. 

Nesse segundo caso da Previdência, há também a promessa de que a Economia voltará a crescer e milhões de empregos serão criados, o que é outra falácia, pois com aposentadorias menores e corte dos benefícios rurais e do BPC, recursos menores estarão nas mãos das famílias, que consumirá menos sem contribuir para o aumento da atividade econômica. A Nova Previdência não contribuirá para a retomada da Economia, antes servirá aos interesses do capital financeiro, ávido pelo regime de capitalização para se apossar dos recursos públicos da Previdência ou pela diminuição dos gastos sociais pelo Estado para favorecer o pagamento dos juros e dividendos da dívida pública.

Os passos do atual governo indicam a continuidade da estratégia de criar o caos, provocar a discórdia, tumultuar o debate público com declarações estapafúrdias com clara intenção diversionista, ao mesmo tempo em que implementam reformas que retiram direitos, destroem empresas estatais e comprometem a soberania nacional. A política deliberada de destruir as universidades federais do governo federal e a apresentação de uma proposta de submeter a Universidade aos interesses de mercado fazem parte de uma mesma tática, dentro da estratégia mais geral de destruição do que ainda resta de instrumento público de intervenção na Economia, e desativação de instituições de ensino, de saúde, de pesquisa e de desenvolvimento social. A estratégia mais ampla é a da subordinação completa dos atores econômicos nacionais ao capital internacional, e por isso não se pode deixar que o Brasil tenha condições de desenvolver conhecimento, Ciência, tecnologia e quadros profissionais de alto nível.

A proposta do “Future-se” vem sendo bem debatida por várias universidades, e há um posicionamento da Associação dos Dirigentes das IFES (ANDIFES), com a carta de Vitória, as instituições agem de maneira sóbria e comprometida com o seu caráter público e universitário (ver site:  https://ufba.br/ufba_em_pauta/andifes-carta-de-vitoria). Nesse documento, cauteloso pois aguarda um delineamento mais completo da proposta do governo, que não passou ainda de uma minuta de projeto de lei de caráter lacunar e contraditório, se identifica o atual momento de sufocamento das instituições federais, conforme pode ser lido na citação da Comissão de Orçamento da Andifes sobre iminente colapso orçamentário do sistema: “Com a manutenção pelo governo federal do bloqueio orçamentário, muitas das Universidades ficarão, dentro de poucos dias, impossibilitadas de (a) pagar suas despesas contínuas, como conta de energia elétrica; (b) honrar com os contratos de serviços terceirizados, como os de vigilância e limpeza; (c) comprar materiais, como os necessários para o funcionamento cotidiano de salas de aula e laboratórios.”

A proposta do “Future-se” acaba com a autonomia universitária ao definir que será uma entidade privada, uma organização social (OS), a gerir os recursos, convênios e parcerias das instituições. Com o governo progressivamente deixando de financiar as mesmas, caberá às OS buscar a venda de serviços e produtos ao mercado e às empresas para viabilizar seu custeio e recursos para capital, além evidentemente de instituir a cobrança de mensalidades para supostamente “garantir o funcionamento das instituições”. 

Entretanto, a Universidade, embora contenha cursos e grupos que podem, desejam e mantêm relações com empresas privadas e públicas, é uma instituição muito ampla, plural, diversificada em sua composição, em seus objetivos e missões, não se limitando a uma finalidade apenas, nem de curo prazo. Uma Universidade tem cursos de Artes, como Teatro, Dança, Música e Artes Plásticas ou Visuais e esses cursos não serão “adotados pelo mercado”. Cursos de Saúde não contarão com investimentos de empresas farmacêuticas que já realizam pesquisas em seus países de origem, na verdade a natureza do capitalismo dependente e periférico brasileiro tem esse traço: aqui as empresas não desenvolvem tecnologia, elas importam (isso não é uma opinião, é um fato). A área das Humanidades já conta com uma oposição por parte dos atuais ocupantes dos poderes federais, que sistematicamente vem atacando essas áreas do conhecimento, e com certeza não haverá patrocínio privado para cursos como História, Filosofia, Educação, Sociologia, Museologia, Comunicação e suas pesquisas, todos essenciais para o desenvolvimento social, mesmo que sem um interesse das empresas. Estas se caracterizam pela ação de curto prazo, de caráter imediato e visando resultados que possam ser contabilizados ao final de cada ano. A instituição universitária é de longo prazo, não necessariamente tem um retorno imediato para o “mercado”, a Ciência tem muito de pesquisa básica que deve ser financiada pelo poder público como ponto estratégico para o futuro da Sociedade, em Física, Química, Biologia, Matemática e todos os campos do saber. Mesmo as engenharias que poderiam se beneficiar de uma relação maior com as empresas já perceberam que a relação com o setor produtivo é importante, mas ela não garantirá a manutenção dos prédios e do corpo docente e técnico da instituição. 

É preciso também desmistificar alguns “chavões” que não se sustentam a uma pesquisa mínima. O reitor da UNICAMP, Marcelo Knobel, em seu artigo contrário à cobrança de mensalidades ( link: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2019/06/03/marcelo-knobel-explica-razoes-pelas-quais-universidades-publicas-nao-devem  ) desmonta a ideia de que seria possível manter uma universidade com recursos captados de empresas, e mesmo em países do capitalismo central a maior parte dos recursos para as pesquisas são de origem pública: “Além de formar profissionais nas mais diversas áreas, as universidades públicas brasileiras têm um diferencial: respondem por 95% da pesquisa científica realizada no país. Pesquisa científica é essencial para gerar inovação, impulsionar o crescimento econômico e resolver questões críticas do nosso desenvolvimento. E aqui, como em outros países, a atividade de pesquisa é financiada com verbas públicas.

Em nenhuma parte do mundo a cobrança de mensalidades representa recurso significativo para universidades de pesquisa. No Massachussets Institute of Technology (MIT), por exemplo, as anuidades equivalem a cerca de 10% do orçamento da instituição. Esse percentual é similar em outras universidades de pesquisa do mundo, públicas ou privadas. O financiamento das universidades públicas é um problema complexo, para o qual a cobrança de mensalidades está longe de ser uma solução, sequer parcial. Na verdade, a adoção de tal medida poderia gerar problemas adicionais, contaminando instituições públicas com a lógica mercantilista mais primária. Carreiras em alta no mercado de trabalho —que, em princípio, poderiam render mensalidades mais polpudas— tenderiam a ser priorizadas em detrimento de áreas igualmente fundamentais para o desenvolvimento intelectual, tecnológico e cultural do país.”
Infelizmente as “fake News” instituíram uma “pós-verdade”, sobre a qual muitas pessoas não se importam em checar as fontes, em pesquisar, analisar com cuidado, evitar a disseminação de inverdades. A Universidade é justamente a antítese disso, pois é uma instituição da Ciência e da Cultura, da análise diligente, da escrutínio e avaliação permanente pelos pares (professores e pesquisadores), e é um patrimônio que deve ser mais protegido pela Sociedade.

A Universidade se encontra hoje submetida a um duplo ataque devido ao caráter das políticas públicas federais, que são resultado da síntese do neoliberalismo mais radicalizado com o neofascismo emergente no Brasil e em outras partes do mundo. No nosso país, o neoliberalismo não conseguiu impor sua agenda de Estado mínimo, privatizações de todas as estatais, diminuição dos direitos sociais, abertura de mercado e substituição de uma burguesia com elementos nacionais pelo capital transnacional, especialmente o financeiro, desde a década de 1990. Outros países já haviam experimentado esse receituário do “ajuste fiscal”, que leva apenas ao desemprego, à precarização das relações de trabalho e a uma profunda estagnação econômica, jamais tendo cumprido a promessa de gerar crescimento econômico desde o “Consenso de Washington” em 1990, o que não ocorreu até 2016 no Brasil, que teve nos primeiros anos do século XXI um crescimento econômico razoável com forte inclusão social e criação de empregos formais, além de ter saído do Mapa da Fome da ONU e mudado o seu perfil social. Esse crescimento aliado à inclusão social só foi possível pela presença do Estado como indutor do desenvolvimento econômico, fortalecimento das estatais, como Caixa Econômica, Banco do Brasil, Petrobras, estímulo às empresas nacionais, adoção da política de conteúdo nacional para as compras públicas e ampliação da Educação Superior pública, do SUS e das políticas sociais de transferência de renda e ações afirmativas. 

A ruptura institucional em 2016 interrompeu esse ciclo virtuoso e os governos Temer e o atual implementaram uma agenda neoliberal. Mas essa agenda neoliberal só se viabilizou no Brasil por uma aliança com o neofascismo, que ataca direitos humanos, quer revogar a lei Maria da Penha, autoriza e estimula a invasão da Amazônia, o desmatamento rápido e o extermínio de índios, libera todos os agrotóxicos proibidos no resto do mundo, enaltece torturadores e assassinos, além de ainda defender o papel das milícias que se tornaram um problema de segurança pública maior que o narcotráfico. Em outros países essas duas vertentes não se encontraram. No Brasil o neoliberalismo não logrou êxito em vencer as eleições presidenciais de 2002 a 2014 e por isso iniciou uma guinada em direção ao golpismo contra a vontade popular e de aproximação e abertura de espaço para grupos claramente adeptos das visões fascistas clássicas. Temos um regime híbrido no Brasil, mas que tem se mantido com certa estabilidade, pois toda a pauta reformista de direita tem sido aprovada no Congresso e os setores neoliberais toleram as diversas violências e os ataques à Democracia do governo federal, ao mesmo tempo que os supremacistas brancos e os machistas do neofascismo acataram o receituário neoliberal que está destruindo as condições de vida dos mais pobres e a soberania nacional.

Nos Estados Unidos temos um governo Trump claramente neofascista que atenta contra a vida de imigrantes e estimula os grupos supremacistas brancos, mas com uma política econômica mais protecionista, que tem melhorado os níveis de emprego naquele país. 

Na Europa o Neoliberalismo também foi hegemônico e cooptou vários partidos socialdemocratas, que aplicaram o receituário de diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários, privatizações, abertura de mercado e diminuição das políticas sociais do Estado, tendo o claro resultado de deteriorar as condições de vida da população com sua promessa de “globalização” financeira. A ascensão do neofascismo na Europa tem a ver com a frustração das promessas do neoliberalismo que não se concretizaram e com o sentimento de medo, impotência e desespero das massas, aliado à falência de opções políticas de centro esquerda, pela sua cooptação pelo receituário da capital financeiro internacional.

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