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O capitalismo dependente brasileiro e o "Future-se"

Imagem O capitalismo dependente brasileiro e o "Future-se"
Bnews - Divulgação

Publicado em 27/08/2019, às 17h30   Luiz Filgueiras


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A avaliação dos reais objetivos e do significado do Future-se, a recente proposta do Governo Bolsonaro para às Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), exige, necessariamente, a compreensão da natureza estrutural do capitalismo dependente brasileiro e de sua burguesia.

A marca característica fundamental das economias dos países periféricos ou “em desenvolvimento” é, desde sempre, a dependência; são economias capitalistas cujas dinâmicas e trajetórias são fortemente condicionadas e restringidas pelo processo de acumulação de capital no plano mundial - que lhes impõem a necessidade de adaptar suas estruturas produtivas internas às exigências dos países dominantes. Portanto, são economias subordinadas, com grau de autonomia muito pequeno e que transferem continuadamente renda e riqueza para os países centrais (imperialistas) do sistema capitalista mundial.

Elas são economias de países que, desde o seu surgimento no século XIX, ocupam uma posição subalterna na divisão internacional do trabalho – constituída, a partir de meados daquele século, sob a hegemonia inglesa e reiteradamente reconfigurada pelo capitalismo durante o seu processo de desenvolvimento. As formas dessa dependência, sempre com a transferência de renda e riqueza para os países centrais, modificaram-se ao longo da história, refletindo as mudanças ocorridas na divisão internacional do trabalho.

Em suma, o Brasil é um país dependente tecnológica e financeiramente; de um lado, não gera endogenamente, com raras exceções (fundamentalmente Instituições e empresas públicas), tecnologia própria e se afasta, cada vez mais, da vanguarda do conhecimento.  De outro, como os demais países periféricos, não tem moeda conversível internacionalmente, além de ter a sua dívida pública, a partir dos anos 1990, transformada em objeto e instrumento de acumulação e especulação financeira internacional; o que implica que sua inserção internacional está condicionada ao acesso às moedas dos países centrais (dólar e euro).

A sua grande burguesia, constituída frágil e tardiamente no contexto da expansão do capitalismo no plano mundial, não conseguiu fazer uma revolução democrática nem se confrontar com o imperialismo e dele se distinguir. Mais recentemente, aderiu de corpo e alma à lógica da financeirização difundida pela globalização, constituindo-se, sobretudo, como uma burguesia rentista e de negócio. O resultado final é que, diferentemente das burguesias dos países imperialistas - que lideraram projetos nacionais que incorporaram parcialmente “os de baixo” -, não conseguiu construir e liderar uma nação em sua plenitude. De fato, o Brasil é uma nação incompleta, desarticulada e sem coesão e identidade entre os seus diversos segmentos sociais - que não sejam as características superficiais (a maior parte negativa) que supostamente definiria um brasileiro genérico.

Tendo-se em vista essa característica estrutural do capitalismo dependente brasileiro e de sua burguesia, podem ser feitas as seguintes afirmações sobre o Future-se:

1- É parte da estratégia de implantação do Future-se, que pretende mudar estruturalmente o sistema federal de ensino superior público brasileiro, o estrangulamento financeiro conjuntural das IFES, através do contingenciamento dos seus orçamentos. Portanto, a suspensão deste contingenciamento e a garantia do financiamento das IFES pelo Estado, conforme garante a Constituição do Brasil (Artigo 207), é a luta prioritária e imediata a ser travada pela comunidade universitária e os seus aliados.

2- O Future-se, tal como está proposto e supostamente pretende, não irá alavancar, de forma significativa, a pesquisa e a inovação nas IFES para além do que já existe e está sendo feito: a natureza da grande burguesia brasileira não permite isso. Um país de capitalismo dependente, tecnológica e financeiramente, com uma burguesia umbilicalmente atrelada ao imperialismo, não se transformará como num passe de mágica em produtor de conhecimento de ponta - graças a um arranjo financeiro “meia sola”, que oportunisticamente permitirá a apropriação do patrimônio público pelo capital financeiro.

3- As IFES, tais como funcionam e estão estruturadas hoje, já estão articuladas com o setor produtivo, de acordo com as características, limitações e a natureza deste último. Só é possível articular duas partes autônomas quando ambas se dispõem a tal. Portanto, o objetivo e a justificativa centrais da proposta são redundantes ou inexequíveis: uma espécie de “canto da sereia” ou uma “cortina de fumaça” que encobre os seus reais objetivos.

4- O Future-se tem dois objetivos fundamentais: o primeiro é criar condições institucionais, impostas de fora para dentro (camuflada em “livre escolha”), para viabilizar um processo de “acumulação por espoliação” do orçamento e do patrimônio público, bem como do conhecimento produzido pelas IFES, através da criação de fundos de investimento que farão a privatização e securitização dessa riqueza e sua posterior transferência para ser movimentada no mercado financeiro. Portanto, mais uma vez, está-se diante dos interesses e da ação do capital financeiro - tal como ocorreu no congelamento por 20 anos do gasto corrente do governo, na Reforma Trabalhista e na Reforma da Previdência. As digitais da especulação e do rentismo são evidentes; nem a linguagem conseguiu-se disfarçar.

5- O segundo objetivo fundamental do Future-se é transformar estruturalmente o sistema de Universidades e Institutos Federais, desarticulando-o e quebrando a sua unidade político-operacional, através de: extinção do financiamento das IFES pelo Estado, assim como de sua autonomia administrativa, de gestão e pedagógico-científica; desorganização da carreira docente estruturada e unificada; hierarquização, por critérios regionais e de mercado, das IFES, quebrando a unidade entre ensino-pesquisa-extensão; terceirização e subordinação dos objetivos didáticos, pedagógicos e científicos das IFES e de sua direção, através de gerenciamento de fora para dentro orientado pela lógica privada (por meio das Organizações Sociais); transformação de docentes-pesquisadores em micro/pequenos empresários guiados pela lógica do lucro e benefícios individuais; estímulo à competição interna, entre docentes, pela captação de recursos privados no mercado.

O Future-se caso seja efetivado, além de atender aos interesses do capital financeiro e das corporações do ensino superior privado (em sua maioria, multinacionais), será também uma violência histórica contra a classe média, que tem no ensino superior de qualidade, sobretudo o que é ministrado nas IFES e nas Universidades Públicas Estaduais, o meio fundamental de sua condição e reprodução social. Além disso, a desorganização desse sistema presente em todo o país, proposta pelo Future-se, é antinacional, pois enfraquecerá a soberania do país; romperá o pacto federativo regional e destruirá o patrimônio científico-cultural do Brasil; e, por fim, significará a expulsão das IFES dos segmentos mais frágeis que passaram, mais recentemente, a ter acesso a elas; e penalizará mais ainda a população mais pobre que perderá os serviços gratuitos ofertados pelas IFES. 

Por tudo isso, essa proposta deve ser rejeitada liminarmente pela comunidade universitária brasileira (o que já vem ocorrendo) e os seus aliados na sociedade civil: não se pode jogar no lixo, da noite para o dia, uma estrutura pública científica e democrática de ensino, pesquisa e extensão, que tem o seu financiamento público garantido pela Constituição e que foi construída ao longo de várias décadas.

Por Luiz Filgueiras - Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira. 

Classificação Indicativa: Livre

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