Justiça

Foro, laudêmio e as suas cobranças em Salvador

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Bnews - Divulgação

Publicado em 15/09/2019, às 15h21   Eduardo Sodré e Pablo Stolze Gagliano*


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A enfiteuse ou aforamento é instituto milenar. A sua origem remonta à Grécia antiga, tendo o seu desenvolvimento e a sua consolidação ocorridos ao longo do período romano. Foi ela largamente utilizada durante a idade média, bem assim chegou às terras brasileiras com as caravelas portuguesas, passando a ter aplicação, haja vista a extensão do território nacional e a nossa escassez populacional à época, logo na aurora do período colonial.

De acordo com as precisas lições do mestre Orlando Gomes, pode-se definir a enfiteuse como sendo o direito real limitado que confere a alguém, perpetuamente, os poderes inerentes ao domínio. Na enfiteuse, quem tem o domínio do imóvel aforado se chama senhorio direto; quem o possui imediatamente, denomina-se enfiteuta ou foreiro. Registre-se que o enfiteuta ou foreiro tem como principais obrigações pagar ao senhorio direto uma renda anual, de valor módico e fixo, conhecida como foro, além de um valor percentual incidente sobre o preço de cada operação de transferência onerosa do imóvel aforado, denominado laudêmio.

O Código Civil de 1916, em seu art. 678, estabelecia que se dava “enfiteuse, aforamento, ou emprazamento quando, por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui à outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável.”. Lado outro, com a entrada em vigor do Código Civil atual, ocorrida em janeiro do ano de 2003, por força do seu artigo 2.038, ficou proibida a constituição de novas enfiteuses e de novas subenfiteuses no país, ficando subordinadas as existentes à legislação específica anteriormente vigente.

É inegável que a extinção da enfiteuse chegou em boa hora. Com efeito, em tempos nos quais os valores mobiliários dão o matiz do desenvolvimento econômico, não se poderia conceber a mantença de um direito engessado, de caráter perpétuo, por força do qual se tolerava que um sujeito explorasse a terra, imprimindo-lhe destinação econômica (enfiteuta), ao passo que outro (senhorio) exercia sobre ele prerrogativas injustificadas, sombras de uma propriedade esvaziada. Frise-se que a enfiteuse, quando extinta, já havia perdido a sua razão social e a sua utilidade que, entre nós, foram a facilitação da exploração das vastas extensões territoriais que existiam no Brasil Colonial.

Contudo, em que pese extinta há mais de três lustros, a enfiteuse ainda convive e assombra uma parcela dos soteropolitanos. E a sua presença tem sido mais sentida nos últimos tempos.

Fundada no ano de 1549 por Tomé de Souza, ainda durante o processo de implantação do Governo Geral do Brasil, Salvador foi uma das primeiras cidades das Américas. A ocupação das suas vastas e, então, desabitadas terras e cercanias operou-se por meio da doação de sesmarias e, quase que imediatamente, com a constituição de inúmeras enfiteuses. Enfiteuses essas que, em boa parte, transcorridos mais de quatro séculos, ainda existem entre nós, pois de instituição anterior à entrada em vigor do atual Código Civil. Pontue-se, outrossim, que, como principais senhorios das terras soteropolitanas, figuram, nos dias atuais, ordens religiosas diversas, que as adquiriram ao longo de séculos por força de doações e de disposições testamentárias, bem assim o próprio Município do Salvador.

E, em razão deste contexto histórico, não raro, os moradores da capital baiana deparam-se com cobranças de foro e de laudêmio que, entretanto, nem sempre são legítimas ou dizem respeito a dívidas exigíveis.

Nessa linha, sendo a enfiteuse ou aforamento típico direito real, é pressuposto necessário – e mesmo imprescindível – para a sua existência o respectivo registro na matrícula do imóvel. Em seus clássicos comentários ao Código Civil, já ensinava J. M. Carvalho Santos que “para a validade da enfiteuse é essencial a escritura pública devidamente transcrita, para valer contra terceiros”. Desta forma, se não houver na matrícula do imóvel, registro acerca da existência da enfiteuse, revela-se descabida qualquer cobrança de foro e/ou de laudêmio.

Por outro lado, deve-se registrar que o prazo prescricional para o exercício da pretensão de cobrança do foro, devido anualmente pelo enfiteuta ou foreiro, é de 5 (cinco) anos. Com efeito, as enfiteuses remanescentes no Brasil, por força do art. 2.038 do Código Civil vigente, continuam sendo disciplinadas pelo Diploma Civil de 1916, o qual, em seu art. 178, § 10°, inciso II, estabelecia que “prescreve em... em cinco anos... as prestações de rendas temporárias ou vitalícias”. Assim, quanto ao foro, não pode ser exigido o pagamento de anuidades após o transcurso de um quinquênio contado do seu respectivo vencimento, sob pena de se estar cobrando dívida juridicamente inexigível. 

Enfim, em pleno século XXI, remanescem entre nós, na velha Cidade do São Salvador, as avoengas enfiteuses, constituídas, em sua maioria, nos tempos coloniais. Delas, derivam cobranças de foro e laudêmios, que, muitas vezes, impactam pesadamente nas já combalidas finanças dos soteropolitanos; há, contudo, de ser sempre verificada a existência do registro da enfiteuse e, também, se está sendo respeitado o prazo prescricional máximo de cinco anos para a cobrança dos foros em atraso.

*Eduardo Sodré
Professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFBA.
Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia
Advogado

*Pablo Stolze Gagliano
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA.
Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia

Classificação Indicativa: Livre

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