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O esquecimento das artes e dos ofícios em Salvador

Imagem O esquecimento das artes e dos ofícios em Salvador
Bnews - Divulgação

Publicado em 14/10/2019, às 20h33   Alice Portugal


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Hoje recebi a triste notícia de que o prédio do antigo Liceu de Artes e Ofício será leiloado.

Há tempos, a vultosa e antiga edificação, erguida em 1699, como Solar Saldanha, na Rua Saldanha da Gama, e transformado em escola em 1874, no coração do centro histórico de Salvador, já vinha , sofrendo um semi-abandono e destinações diversas. 

Como uma nascida no centro histórico, tenho acompanhado com indignação e até dor, o desmonte do berço da nossa capital, ora por fogo, ora por abandono dos proprietários ou dos poderes públicos, e agora por uma tendência a uma conservação por amostragem e uso não cultural.               

Mas quero falar do LICEU. 

Nasci na Rua 03 de maio, nº5, em um sobrado onde morávamos no primeiro andar e minha mãe mantinha seu ateliê de costura no andar alto. Dali saía preciosidades da costura. 

Já no térreo da mesma casa , o Sr. Benedito restaurava obras de arte e imagens, exercendo o ofício de ‘santeiro’. A vista da nossa sacada dava para uma longa calçada e um paredão branco, que não nos oprimia, pois era a lateral do mais lindo prédio do centro da cidade e que tinha no seu interior o melhor cinema que tenho na memória.  A edificação seguia pelo quarteirão inteiro. Ali, funcionava a grande escola de operários e artífices baianos.  Meninos, em geral negros e todos pobres, nos seus macacões azuis, aprendiam a arte da marcenaria, da carpintaria, da pintura, da restauração. As artes e os ofícios de uma Bahia, pobre e rica, nua e crua nas desigualdades, como enfim lutamos ainda hoje para superar.

Os mestres eram homens do povo. De tanto visitar as oficinas, onde minha mãe encomendava suas réguas, esquadros e transferidores gigantes, para regrar os vestidos de baile e de noivas, passei a me sentir parte dali. 

Seu Ananias, achava a menininha engraçada e me presenteou com uma cadeirinha de madeira maciça que carreguei comigo por décadas, até doar a outra criança.

Até que veio o incêndio em 1968, quando já havíamos mudado para Amaralina, pela degradação do centro. 

O incêndio aprofundou a já séria crise, com a perda de parte significativa do patrimônio. 

Mesmo assim, o Liceu continuou a funcionar, precariamente, em dois pavimentos em cima do Cinema Liceu.

Recentemente, a guarda e uso da Fundação Cultural do Estado da Bahia lhe deu proteção.

Agora, em função de um débito trabalhista, que é justo ser pago, o Solar Saldanha irá a leilão. Na mesma data e também por dívidas trabalhistas, o TRT5 autorizou a venda direta da sede da Fundação Dois de Julho, no Garcia, avaliado em R$ 21,5 milhões, com lance mínimo de R$ 12,9 milhões. 

O Solar construído no início do século XVIII é tombado pelo Iphan e terá lance mínimo de R$ 6,5 milhões.

Quem dará o lance maior? A especulação imobiliária? O setor de supermercados? Algum grupo interessado em um cenário histórico para um hotel, restaurante ou ‘play-ground’ de moradias de luxo, como o ocorrido com a residência Arquiepiscopal, na entrada do corredor da Vitória?

Qual o futuro do nosso tão recente passado?

Salvador é a capital colonial do Brasil, onde tudo começou. Afinal, por aqui passaram nossos ancestrais.

A lancinante política do governo Bolsonaro, de cortes de recursos para investimentos, rejeição à ciência, à educação, ao ponto de extinguir o Ministério da Cultura, não nos dá alento de algum financiamento federal para estes imóveis. Um agrupamento, que faz apologia ao obscurantismo, realiza o culto à ignorância e  leva à destruição do Iphan, da Ancine, da Funarte, do Jovem Instituto Nacional de Museus, assim como de todos os órgãos especializados em cultura e memória, nos dá pistas  de que preservação de patrimônio histórico não será prioridade.

É justo nesse contexto que temos um prefeito aliado de Jair Bolsonaro e à sua política de desconstrução do Estado nacional.

Na verdade precisaríamos de um gestor no Paço Municipal, vizinho ao Liceu, que tivesse a atitude de defender a cidade plena na sua história e na sua diversidade e tomasse para si a manutenção e defesa desse patrimônio.

*Alice Portugal é deputada federal (PCdoB-BA)


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