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111 tiros

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Chegamos ao fim do mês comemorativo da consciência negra  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 02/12/2019, às 08h49   Diego Aric


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Alvos. De diversas maneiras e em medidas proporcionais a barbárie humana, somos atacados pela intolerância, violência e incerteza de dias melhores. Não serei eufêmico ao afirmar aquilo que a nossa sociedade ainda tenta esconder debaixo dos panos sujos do preconceito: somos atingidos pelo racismo em suas mais perversas versões e aparições, demonstrando à vã e plena prepotência branca de assistir e impor dificuldades para que negros acessem as melhores Universidades, tenham os melhores resultados, salários e sua própria emancipação. 

Uma enxurrada de problemáticas latentes que são encobertas pelo discurso de que o racismo não existe. Utopia delirante de quem não vive na pele a dor e a dificuldade de sonhar com um futuro melhor, digno, justo e democrático. Para quem é negro nesse país, a sensação é de avançar duas casas no jogo da vida e sempre retroceder uma. Caminhar sobre um chão envolto por brasas flamejantes em busca dos mínimos objetivos. Parece que é um caminho cheio de entraves pelo direito de sonhar e, desde pequenos, somos acostumados a ouvir que “voar demais e buscar um lugar ao sol pode e vai nos queimar”. É preferível esperar que sejamos presos pelo complexo social ao qual integramos e não livres em nossas escolhas e modo de viver. Então, fica visível o fardo inquestionável que os sujeitos carregam desde seu nascimento: uma ditadura forçosa onde a cor da pele prevalece em meio a toda hipocrisia que sentencia, discrimina e constrange quem mora nos becos e quebradas das comunidades e complexos habitacionais mais humildes. 

Mulheres negras são violentadas pela misoginia e pelo racismo. O branco se desespera ao perceber que muitos de nós temos consciência de que não só mulheres brancas são pra casar, e negras não nasceram apenas para trabalhar e serem símbolos/objetos sexuais. Elas podem ser o que quiserem; livres com seus corpos e suas convicções. Pensando nisso, afirmo que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, infelizmente. Tomando esse fato como ponto de reflexão, penso que a escravidão não foi abolida em 1888. Somos escravos de um sistema genocida que mata nossos jovens todos os dias. No Brasil, anualmente, são mais de 60.000 homicídios e, desse número, mais da metade são jovens entre 15 a 29 anos onde 70 a 80% são negras.  

Nesse raciocínio, lembro-me dos 111 tiros. Fim de tarde e cinco jovens foram mortos no complexo da Pedreira, em 2015, por 111 tiros disparados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Como resultado, cinco meninos moradores da favela, negros e trabalhadores com suas mortes sentenciadas pela barbárie racista. Além disso, coincidentemente, o mesmo número de mortos no Massacre do Carandiru, confirmando que precisamos falar sobre direitos humanos e a banalização de vidas. Foram alguns habeas corpus concedidos aos “soldados da lei” e, decorrente da ação desses cidadãos de bem, Adriana, mãe de Carlos Eduardo, acabou traumatizada após a morte do filho. Carlos, o pai de Carlos Eduardo, tentou suicídio ao ver seu menino sem vida perto de casa. Wilkerson (que conseguiu escapar), irmão de Wilton, sofreu um aneurisma cerebral e veio a óbito um tempo depois. Joselita morreu aos 44 anos, com anemia e pneumonia, causadas pela tristeza de ter seu filho levado pelo racismo. Mônica, mãe de Cleiton, tem quadro de depressão e outras síndromes, vivendo a base de remédios.  

A Bahia é o berço da medicina no Brasil e devo dizer que a dor do branco é ver médicos se graduando pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Presenciar o filho da empregada doméstica se formando e a própria cursando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e, posteriormente, ingressando no curso de Direito, deve ser bastante frustrante. Admitir que o caixão não seja o destino final para negros nesse país, tende a ser sufocante para aqueles que mantém seus privilégios erguidos pela desigualdade e intolerância. 

Reflitamos: para cada um de nós negros, possuir a tal “consciência negra” de saber que somos alvos de vetores políticos e pessoas de bem que, além de demonizar as religiões de matriz africana com suas bíblias debaixo do braço discursando que Deus é seletivo e não abraça a todos aqueles que fazem do bem sua arma mais valiosa, estamos sujeitos a tiros disparados por homens fardados e inconsequentes que querem matar e forjar provas de assassinato por puro deleite. Isso seria justo? Arrisco-me em dizer que não é e nunca será!

Chegamos ao fim do mês comemorativo da consciência negra e um questionamento ecoa e insiste em me perseguir: foram 111 tiros e tudo parece o mesmo... 

Diêgo Aric Souza é Relações Públicas. Especialista em Mídias Oficiais e Gestão em RP. Mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). 

Classificação Indicativa: Livre

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