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Brasil no caminho do retorno ao autoritarismo?

Imagem Brasil no caminho do retorno ao autoritarismo?
A democracia desmorona na sutileza da subversão dos costumes e normas não escritas  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 14/01/2020, às 07h30   Pedro Salles


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O Brasil infelizmente vive o retorno progressivo do autoritarismo e isto pode ser sentido com a adoção – no âmbito dos três Poderes –, ainda que disfarçadamente, de instrumentos corrosivos à democracia. É preciso atenção da sociedade e atuação firme das instituições na garantia do princípio democrático, já que, como tem acontecido nos tempos atuais em todo planeta, o despotismo já não surge com rupturas abruptas e tanques nas ruas. Hoje, a democracia desmorona na sutileza da subversão dos costumes e normas não escritas.

A censura está de volta e isto é perceptível, por exemplo, com a decisão monocrática do Desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, desrespeitando a função contramajoritária do Judiciário, determinou a retirada do ar do vídeo especial de Natal do Porta dos Fundos. Segundo o magistrado, decidir assim seria “mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã” e que isto seria necessário para “acalmar os ânimos”. Ou seja, não se ateve a fundamentos jurídicos e, como se fosse o papel do Judiciário atender à vontade geral ou às maiorias, violou a liberdade de expressão e de pensamento.

O único fundamento para retirada do ar do mencionado vídeo seria a violação de direitos com sua exibição. Se o vídeo é de mau gosto ou é incompatível com preceitos do cristianismo, ainda assim, não viola normas jurídicas e, portanto, está abarcado pelas liberdades civis, direitos de primeira dimensão, que impõe ao Estado a pura e simples abstenção. A liberdade de pensar, falar e criar não pode ter como barreira jurídica a crítica – ainda que represente o desejo da maioria. A democracia impõe que aceitemos que o outro fale o que pensa, ainda que as ideias propagas nos desagrade. Qualquer pensamento contrário a isto é nada menos que um flerte com o autoritarismo.

No Parlamento, a realidade não é tão diferente. Tramitam atualmente 70 projetos que, pasmem, desejam restringir a liberdade de reunião (que também pode ser chamada de direito de protesto). Os projetos têm como escopo, por exemplo, aumentar a pena para crimes cometidos com máscaras e até proibição do seu uso. Há projeto que criminaliza o ato de bloquear ruas e trata com mais rigor o desacato a policiais. Para desarticular protestos, tem projeto que autoriza monitorar pessoas por mensagens em redes sociais, infiltrar agentes e interceptar comunicação, tudo sem autorização judicial.

O Congresso Nacional, portanto, foge da sua missão institucional de representante da vontade geral, contribuindo para o silenciamento das ruas, ao invés de seguir o caminho natural de ouvir o que o povo tem a dizer. Aqui é o Poder essencialmente democrático e, sendo assim, representativo das maiorias, descumprindo seu papel no sistema político.

Se quem exerce o poder, já dizia o Barão de Montesquieu, tem a tendência a abusar desse poder, é preciso que, separando-se a função de cada instituição, o poder freie o poder. Esta é a ideia representada pelo princípio da separação dos poderes e da sistemática dos freios e contrapesos (checks and balances). Se o Poder Legislativo, portanto, não exerce a função de limitação e fiscalização do Poder Executivo e, ao contrário, retira ou diminui liberdades do povo, cria espaço excessivo para o Governo que, concentrando número imenso de competências constitucionais, segue o caminho despótico quase intuitivo.

E é exatamente o que têm ocorrido no Brasil. Há, contudo, um agravante, consistente na soma da adesão do Legislativo e do Judiciário a alguns instrumentos autoritários com o perfil do atual Presidente da República, que sempre fez questão de demonstrar sua afeição à tirania. Assim, Bolsonaro, contando com a abstenção da fiscalização e controle suficiente dos demais Poderes da República, tem tornado ainda mais nítido um projeto autoritário, com a rejeição das regras democráticas dos jogo, a negação da legitimidade dos oponentes políticos, o encorajamento da violência e o vontade (revelada) de restringir liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia.

É preciso dizer, contudo, que ainda não há motivo para alarde. O sistema de freios e contrapesos no Brasil ainda funciona, mesmo que de maneira débil. No Parlamento, passado o susto do impeachment de Dilma Rousseff no Parlamento, a oposição está, aos poucos, reaprendendo o seu papel, barrando – com sucesso – algumas medidas autoritárias. O STF, de igual forma, tem tomado algumas decisões contrárias à “opinião pública”, mas respeitantes à Constituição, como foi a derrubada da própria decisão que retirou do ar o vídeo do Porta dos Fundos, por decisão do Presidente Dias Toffoli.

Cabe à sociedade, portanto, ficar atentar e exigir o regular funcionamento das instituições até que a tempestade passe e a Presidência volte ao campo democrático. Não chegamos, ainda, a crise irreversível da democracia que possa ensejar o pânico, mas a vigilância é necessária para que não cheguemos a este estágio. Por ora, Bolsonaro é um Presidente da República que, seja pelo controle social, seja pelos freios impostos pelos demais Poderes, exerce um mandato democrático. Se não o faz por vontade, o faz por falta de opção.

* Pedro Salles é advogado e professor universitário

Classificação Indicativa: Livre

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