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Carnaval: Festa de todos (:)

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É certo que o Poder Público precisa viabilizar a gigantesca festa que é o Carnaval e, para isso, tem de contratar algumas atrações do mundo pop, mas é preciso equilibrar  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 24/02/2020, às 09h20   Pedro Sales


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Para alguns, a origem mais remota do carnaval está nas “saturnais” da Roma Antiga. Eram festas que serviam para homenagear Saturno, o deus da agricultura. Nos festejos, pessoas já dançavam nas ruas (à semelhança dos bloquinhos de hoje em dia) e também já existia bebedeira e muita diversão. A origem da palavra carnaval, todavia, estaria nos carros alegóricos que naquele período desfilavam nas ruas romanas e receberam o nome de carrus navalis (carro naval) por terem formato de navio.

Na Idade Média, todavia, com a cristianização de tradições pagãs, é que se encontra a origem mais próxima do nosso carnaval. Foi nesse período que o carrus navalis virou carne vale (adeus à carne), simbolizando o período imediatamente anterior à quarentena religiosa que antecede a Páscoa – a quarentena. O carne vale, portanto, seria o momento de exagero e abundância para compensar o período de penitência, durante o qual o consumo de carne era proibido.

No Brasil, a tradição carnavalesca surgiu com os colonizadores, que popularizaram o entrudo, no qual pessoas saiam às ruas molhando ou sujando umas às outras com lama, urina, água suja de café, etc... A festa foi muito popular até o século XIX, quando passou a ser reprimida, sobretudo em razão da passagem do período monárquico para o período republicano. O Brasil vivia um processo de gentrificação (expulsão dos pobres dos centros urbanos) e as manifestações populares eram duramente sufocadas. O entrudo, como manifestação mais genuína do nosso carnaval, passou a ser substituído pelos suntuosos bailes em clubes e teatros, criados pelas elites brasileiras.

No final de século XIX, como sinal da resistência que é peculiar ao povo brasileiro, surgiram os cordões, ranchos e marchinhas como tentativa das camadas populares de reassumirem seu espaço no carnaval. O povo, assim, voltou a ocupar as ruas, ainda que os bailes tenham continuado a abrigar as elites, revelando um carnaval com diversidade de formas de realização.

É neste mesmo período que surge o afoxé. A palavra, de origem ioruba, pode ser traduzida como “a fala que fez”. É um símbolo da cultura africana que se expressa em manifestações religiosas, musicais e comportamentais. O afoxé tem profunda vinculação com os atos religiosos dos terreiros de candomblé, demonstrando a razão pela qual também é chamado de candomblé de rua. Na Bahia, portanto, são os afoxés o símbolo da resistência popular contra o monopólio do gozo das elites e, por isso, as grandes estrelas do carnaval. Afoxé, longe de ser confundido com bloco de carnaval, é a forma de se fazer chegar à maioria da população o debate sobre a consciência negra, sobre a aceitação da diversidade, sobre a inclusão e sobre a liberdade através da cultura.

Por estas razões é que merece indignação a angústia que vivem os afoxés de Salvador todos os anos, penando por patrocínio ou qualquer forma de apoio. É certo que o Poder Público precisa viabilizar a gigantesca festa que é o Carnaval e, para isso, tem de contratar algumas atrações do mundo pop, mas é preciso equilibrar o orçamento para não sufocar as nossas mais genuínas manifestações culturais. Enquanto DJs, MCs e cantores sertanejos – que também são bem-vindos – turbinam suas contas bancárias no carnaval de Salvador, os nossos afoxés vivem o eterno risco de desfilarem seu último carnaval. É uma séria ameaça à nossa história, cultura e ao futuro de muitas crianças e adolescentes do presente e do futuro, que são (ou seriam) acolhidas nos trabalhos sociais que estas entidades protagonizam.

Que as lições de resistência do passado, inspirem nossa gente a se manter de pé e que o Poder Público, que outrora reprimiu escancaradamente o entrudo e as manifestações populares, não se aproprie da hipocrisia e desfaçatez com que se faz política hodiernamente, asfixiando-as por sua omissão. Que o carnaval seja de todos (e isso inclui as elites), mas que o incentivo e o apoio do Estado seja – no carnaval e em todas áreas – maior para os que mais precisam, para que a igualdade que se almeja por imposição constitucional não seja meramente formal, mas principalmente substancial.

* Pedro Salles é advogado e professor universitário

Classificação Indicativa: Livre

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