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Em tempo de Coronavírus, tentativa de renegociação é condição de Procedibilidade para ajuizamento de Ação Revisional de Contratos

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Publicado em 03/05/2020, às 06h00   Rafael Frank


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Diante do Estado de Calamidade Pública[1] decretado pela União, com base na pandemia da COVID-19 e, em razão da Lei 13.979 de 2020 – que estabelece medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública – bem como de normas municipais e estaduais que determinam a paralisação de serviços presenciais e não essenciais, diversas pessoas físicas e jurídicas sofrem com desemprego e diminuição salarial, ou queda significativa do faturamento e perda de clientes.

A redução no poder econômico populacional, assim como das sociedades empresárias, por derivar de um fato imprevisível (a disseminação do coronavírus), embaraça o regular adimplemento de compromissos previamente assumidos, impondo ao legislador e operador do Direito a adoção de medidas urgentes, a exemplo do PL 1.179/2020, que apesar de não alterar nenhuma legislação vigente, pretende instituir normas de caráter transitório e emergencial nas relações jurídicas de Direito Privado no período em que perdurar a pandemia.

A adversidade é global, tanto que o barril de petróleo chegou a ser negociado nos Estados Unidos em valor negativo (- US$ 37,63), ou seja, pela primeira vez na história, vendedores tiveram de pagar aos compradores para que estes recebam os contratos futuros[2].

No Brasil, 5 (cinco) milhões de trabalhadores formais foram afetados pela pandemia[3] e até o dia 09 de abril de 2020 cerca de 600 (seiscentas) mil pequenas empresas haviam fechado as portas[4].

Nesse contexto de queda de receitas (familiares ou empresariais) e manutenção dos gastos/custos, cogita-se na doutrina a ampla possibilidade de revisão de contratos em virtude de fato superveniente (pandemia da COVID-19 e efeitos econômicos da quarentena). Inobstante, caso pleiteada, a revisão contratual deve respeitar um padrão de conduta previsto em lei.

O Código Civil, buscando afastar comportamentos oportunistas e privilegiando condutas leais, estabelece que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé[5].

Trata-se da boa-fé objetiva, norma que consiste em um modelo comportamental pelo qual os participantes da relação contratual devem ajustar o seu mútuo comportamento[6].

Além da existência dos deveres principais e acessórios previstos de forma expressa nos contratos, a boa-fé objetiva (prevista no artigo 422 do Código Civil), enquanto standard jurídico, exige o cumprimento de deveres anexos, implícitos a todos os contratos típicos e atípicos existentes em nosso ordenamento jurídico, como o dever de informação, de lealdade e probidade. Refere-se, portanto, à retidão de comportamento dos contratantes[7].

Com o caos social (isolamento, desemprego, fechamento de empresas, queda nos faturamentos empresariais e familiares ...) oriundo da pandemia do coronavírus, nasce o anseio de revisar uma série de negócios jurídicos, desde contratos empresariais a locações residenciais.

Mesmo em condições típicas, normalidade que não reflete o quadro atual, Anderson Schreiber, professor titular de Direito Civil da UERJ, expõe que há um dever de renegociação enquanto dever de comportamento[8], fundado na boa-fé objetiva e no princípio do equilíbrio contratual.

O Dr. Marco Aurélio Bezerra de Melo, desembargador do TJ/RJ, chegou a defender nos últimos dias a necessidade de criação de uma lei para incluir o dever de renegociação como condição de procedibilidade da ação de revisão contratual[9].

Em que pesem o respeito e à admiração ao magistrado supramencionado, não há a necessidade de criação de norma específica, sendo suficiente a cláusula geral da boa-fé para o reconhecimento da condição de procedibilidade. Neste momento de crise e incertezas, se espera dos contratantes comportamentos leais, probos e cooperativos ainda mais intensos. Face à anormal instabilidade decorrente da pandemia, ao nosso sentir, exercer o direito de ação para requerer judicialmente a revisão de contratos sem prévia tentativa de renegociação amigável viola o padrão de conduta da boa-fé objetiva.

Tem-se que, na atual conjuntura social, a busca antecipada pela renegociação extrajudicial se configura como mais um dos deveres anexos da boa-fé, independentemente da existência de lei expressa, e sem que se considere ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88)- um requisito ou condição de procedibilidade para o ajuizamento da ação de revisão contratual tendo como causa de pedir os efeitos e reflexos da pandemia.

Consequentemente, aquele que se dirige ao Judiciário para revisar contrato em virtude do “fator pandemia” antes de qualquer tentativa de renegociação com a parte adversa, comete ato ilícito por violar a boa-fé, ainda que exercendo o direito de ação, isto porque o Código Civil prevê o abuso de direito enquanto ato ilícito[10].

Sendo assim, a tentativa de renegociação extrajudicial é uma condição de procedibilidade para a proposição de ações revisionais calcadas no “fator pandemia”, ainda que inexista cláusula de renegociação (clásula de hardship) expressa no contrato, ou legislação específica, visto que tal condição possui como fonte a interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, levando em consideração os princípios da função social dos contratos e boa-fé objetiva, positivados no Código Civil.

Condição de procedibilidade vem a ser uma modalidade necessária e prévia para o ajuizamento de demanda judicial, e que a sua ausência significa um óbice intransponível para a instauração e desenvolvimento válido do processo.

Trocando em miúdos, o direito de propor ação revisional de contratos está vinculado à comprovação de tentativa de renegociação extrajudicial (por qualquer meio), por se tratar de dever anexo da boa-fé objetiva, sem a necessidade de existência de lei para o caso particular, nem mesmo de índole temporária, mas apenas com base na interpretação das normas e no melhor aproveitamento destas.

A título ilustrativo, um locatário que almeja a redução do valor da locação em virtude dos efeitos da pandemia, precisa, inicialmente, “barganhar” modificações contratuais com o locador, e apenas em sendo frustrada a tentativa amigável (devidamente comprovada), é que o locatário poderá buscar a solução que entenda ser adequada no Poder Judiciário, via ação revisional.

De igual sorte, lojistas que exploram basicamente a venda presencial em shopping centers e que foram compelidos ao fechamento provisório de suas atividades, diante da perda de clientes e receitas, devem propor aos fornecedores uma modificação contratual com a finalidade de se adequar à nova realidade, para, apenas posteriormente, caso se faça necessário, ajuizar ação revisional.

Deverá a parte demonstrar de forma inequívoca a tentativa de negociação extrajudicial, repita-se, por qualquer meio, sem, contudo, permitir abusos da parte contrária para evitar a propositura da ação judicial.

Saliente-se que a tese ora sustentada é de que não há um dever de revisão contratual, mas, sim, um dever comportamental, no qual as partes devem buscar o equilíbrio contratual pela via extrajudicial, antes de inflar o Judiciário com mais uma demanda, comprometendo a duração razoável do processo e a efetividade da prestação jurisdicional (pretensão revisional).

Ademais, independente da discussão sobre a existência ou não das condições da ação no CPC/15, a parte que não atender a condição de procedibilidade aqui esposada deve ter sua petição indeferida com base no art. 319 ou 330, do CPC, o que não causará grandes problemas, uma vez que perfeitamente sanável, oportunidade em que o magistrado concederá prazo para demonstrar a tentativa de conciliação extrajudicial e prévia, suspendendo o feito, ou extinguindo-o, caso não comprovada a condição exigida.

A ausência de limitações e/ou restrições ao direito de propor ação revisional neste momento excepcional resultará num crescimento exponencial da quantidade de lides num Judiciário já abarrotado, fato que inviabilizará o acesso à justiça, inclusive de outras pessoas físicas e jurídicas com demandas distintas e relevantes, pois o Estado não possui aparato suficiente para determinar as soluções para todos os problemas derivados da pandemia do coronavírus. Espera-se que as partes litigantes entendam essa necessidade, que será benéfica a toda a coletividade.

*Rafael Frank é advogado e pós-graduando em Direito Empresarial pela FGV-SP.

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[1] BRASIL. Decreto Legislativo nº 06 de 2020, de 20 de março de 2020. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-legislativo-249090982>. Acesso em: 30 abr.2020

[2] Preço do petróleo atinge valor negativo pela 1ª vez nos EUA. R7, São Paulo, 20 de abril de 2020. Disponível em: <https://noticias.r7.com/economia/preco-do-petroleo-atinge-valor-negativo-pela-1-vez-nos-eua-20042020>. Acesso em: 30 abr 2020.

[3] CARAM, Bernardo e COLETTA, Ricardo Della. Emprego de 5 milhões de trabalhadores formais são afetados após a pandemia. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 de abril de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/seguro-desemprego-tem-200-mil-pessoas-em-fila-de-espera-apos-coronavirus.shtml

[4] BROTERO, Mathias. Mais de 600 mil pequenas empresas fecharam as portas com coronavírus. CNN, Brasília, 09 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/04/09/mais-de-600-mil-pequenas-empresas-fecharam-as-portas-com-coronavirus>. Acesso em: 30 abr. 2020.

[5] BRASIL. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002, artigo 422. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 30 abr.2020.

[6] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do Inadimplemento das Obrigações, vol. V. Tomo II, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 77.

[7] FORGIONI, Paula. Contratos Empresariais –Teoria Geral e Aplicação -.2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 127.

[8] SCHREIBER, Anderson. Dever de renegociar. Gen Jurídico, 16 de janeiro de 2018. Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2018/01/16/dever-de-renegociar/>. Acesso em: 30 abr 2020.

[9] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19. Migalhas Contratuais, 27 de abril de 2020. Disponível em: <https://migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/325543/por-uma-lei-excepcional-dever-de-renegociar-como-condicao-de-procedibilidade-da-ação-de-revisaoeresolucao-contratual-em-tempos-de-covid-19>. Acesso em: 30 abr 2020.

[10] BRASIL. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002, artigo 187. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 30 abr 2020.

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