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Ciência, Universidade e liberdade de pesquisa em tempos sombrios

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Bnews - Divulgação

Publicado em 05/05/2020, às 07h00   Penildon Silva Filho*


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O edital do novo modelo de concessão de bolsas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) foi publicado no dia 23 de abril do presente ano, gerando protestos e dúvidas acerca do futuro das instituições de pesquisa no Brasil, as Universidades. A nova política de concessão de bolsas para pesquisa nos cursos de graduação terá vigência de agosto deste ano a junho de 2021 e está alinhada com a diretriz política do governo Bolsonaro, do Ministério da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia de um profundo desprezo pelas Humanidades, Artes e Ciências Básicas. Não se trata aqui apenas de aversão à Ciência, ao pensamento científico, racional e argumentativo, aversão bem característica de um modelo político baseado mais na violência verbal e física de seus líderes e apoiadores. Trata-se de um projeto de disputa na produção do conhecimento, uma verdadeira disputa de hegemonia de valores, de conceitos, de verdades na Cultura, nas Artes e nas Humanidades que outros regimes autoritários, como o nazi-fascismo, já empreenderam no século XX.

Ao analisar a apresentação feita pelo próprio CNPq, que pode ser encontrada na internet (file:///C:/Penildon%20geral/ATIVAS/artigos.pessoais/CNPq%20-%20Modelo%20Concessao%20Bolsas%20-%20v5.pdf ), notamos algumas indicações do modelo que tenta se implementar. A atual gestão indica que deve haver uma “alinhamento e aderência com as temáticas definidas pelas estratégias e diretrizes na área de CT&I (Áreas de Tecnologias Prioritárias do MCTIC), visando o cumprimento da missão do CNPq e do MCTIC e a maximização do impacto socioeconômico do investimento em CT&I.” O documento indica que fora dessas temáticas definidas como prioritárias pelo governo federal não haverá financiamento, segundo uma lógica do atual governo de que as Humanidades, a Filosofia, as Artes devem ser subfinanciadas. O governo federal compreende que essas áreas não “teriam uma utilidade”.  

Esse modelo diverge do acúmulo que a humanidade tem tido na pesquisa e nas instituições que a promovem, notadamente as universidades. O modelo de Universidade que se tornou hegemônico no mundo foi o da Universidade de Pesquisa, muito inspirado na Universidade de Berlin, fundada por Wilhelm von Humboldt em 1809. Nossas instituições hoje se caracterizam por não serem apenas ligadas às atividades de ensino, mas de priorizar a pesquisa e a relação com a Sociedade na produção do conhecimento e nas atividades de ensino, com uma forte pós-graduação, professores dedicados à carreira universitária e imbuídos do interesse em fazer avançar as Ciências, as Humanidades e Artes em todas as áreas. A própria Universidade humboldtiana preconiza como centro da instituição uma faculdade de Ciências, Filosofia e Letras, modelo inclusive inspirador da criação da Universidade de São Paulo (1934), primeira universidade de fato no país.

É certo que podemos identificar na Universidade brasileira outras influências também, além dessa vertente da Universidade Alemã, que foi copiada por todos os países como forma de avançar na modernização da Sociedade, na industrialização e no crescimento cultural. O modelo da Universidade Francesa, a napoleônica, que suplantou a Universidade medieval e clerical depois da Revolução Francesa, era estatal com grande engajamento na formação de profissionais para o Estado e para a indústria, voltada para o progresso da Sociedade francesa, e com uma definição dos currículos, da forma de ingresso de estudantes e da carreira do professor definidos pelo Ministério da Educação. No Brasil, as universidades públicas, federais ou estaduais, seguem muito desse modelo estatal. O modelo norte-americano seguiu o modelo alemão da pesquisa, como bem fica nítida na “reforma Flexner”, mas muito ligado às demandas da região, da indústria, da agricultura, da formação de professores, do desenvolvimento econômico. Segundo Flexner, a Universidade havia se tornado “uma instituição conscientemente dedicada à busca do conhecimento, à solução dos problemas, à apreciação crítica das realizações e do treinamento do homem em um nível verdadeiramente elevado”. Uma instituição não somente do ensino, mas prioritariamente da pesquisa, da liberdade de investigação e da autonomia na busca do conhecimento.

Mais recentemente, o conceito de Multiversidade foi elaborado por Clark Kerr, que em palestras no início de 1963 e em escritos posteriores procurava analisar os caminhos trilhados pela instituição na contemporaneidade. A Multiversidade é compreendida como instituição com várias aptidões e talentos, prioridades e linhas de pesquisa, relações com a sociedade, seja do setor produtivo ou do setor público. Uma instituição como centro da moderna sociedade, em que o Conhecimento se torna a principal força motriz que promove a ascensão social, muda conceitos culturais, permite o avanço econômico, transforma sistemas políticos e institucionais, mas deixa de ser uma instituição com uma ideia força que a impulsiona e passa a expressar diferentes e contraditórios ideias, interesses e concepções. 

Kerr analisa uma nova realidade que é complexa e com a qual a Universidade tem que lidar, com demandas por vezes conflitantes, como a busca pela verdade e a compreensão da Sociedade assim como as demandas da indústria, da pesquisa na Ciência de ponta, como a aeroespacial , da informática, da automação, da inteligência artificial e dos novos materiais, a formação de professores, o apoio às políticas sociais de inclusão e à gestão pública, ao mesmo tempo em que convive com um novo público que adentra nas instituições.

O que se construiu mundialmente, tanto no ocidente quanto no oriente, na China, com a Tongshi Education Reform, indica uma instituição universitária e uma pesquisa que não discrimina determinadas áreas, pois se compreende que os conhecimentos em seus diversos campos não “precisam ter uma utilidade imediata” mas contribuem para o avanço da Sociedade. As Humanidades nos permitem analisar a sociedade humana, encontrar suas deficiências, suas desigualdades, suas assimetrias, suas injustiças, assim como identificar sua riqueza cultural, sua pluralidade, estimular seu senso estético e a criação, compreender como nossa mentalidade e psique funcionam. Isso tem “muita utilidade” se quisermos caminhar para a sobrevivência da espécie humana, para uma vida mais sustentável, digna, respeitosa com todos os grupos e viável, que não termine com a autodestruição da Sociedade.

Muito da agressividade do atual governo se dirige às Humanidades e à Filosofia, em comentários jocosos e descabidos, além de inapropriados para um gestor público que deve prezar pela sua compostura, respeito, decoro e sobriedade. O próprio ministro da Educação afirma que o governo não mais financiará pesquisas em Filosofia e Ciências Sociais, dizendo que esses alunos devem procurar “vender artesanato de durepox” para sobreviver. Para uma boa resposta, citamos Deleuze: “(...) Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado, nem à Igreja, que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A filosofia serve para entristecer. 

Uma filosofia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém, não é uma filosofia. A filosofia serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso. Não tem outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. Existe alguma disciplina, além da filosofia, que se proponha a criticar todas as mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu objetivo? Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam. Denunciar, na mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que forma tão bem a espantosa cumplicidade das vítimas e dos algozes. Fazer, enfim, do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral, da religião. Vencer o negativo e seus altos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a não ser a filosofia? (...) A tolice e a bizarria, por maiores que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia para impedi-las, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, para proibi-las, mesmo que seja por ouvir dizer, de serem tão tolas e tão baixas quanto cada uma delas desejaria.” (Deleuze, In "Nietzsche e a Filosofia")

O novo edital lançado em 23 de abril se baseia na portaria MCTIC nº 1.122 (19/03/2020), com texto alterado pela Portaria MCTIC nº 1.329 (27/03/2020), que lista a áreas consideradas elegíveis para receber financiamento: “Tecnologias Estratégicas: Espacial; Nuclear; Cibernética; e Segurança Pública e de Fronteira; Tecnologias Habilitadoras: Inteligência Artificial; Internet das Coisas; Materiais Avançados; Biotecnologia; e Nanotecnologia; Tecnologias de Produção: Indústria; Agronegócio; Comunicações; Infraestrutura; e Serviços; tecnologias para o Desenvolvimento Sustentável: Cidades Inteligentes e Sustentáveis; Energias Renováveis; Bioeconomia; Tratamento e Reciclagem de Resíduos Sólidos; Tratamento de Poluição; Monitoramento, prevenção e recuperação de desastres naturais e ambientais; e Preservação Ambiental; Tecnologias para Qualidade de Vida: Saúde; Saneamento Básico; Segurança Hídrica; e Tecnologias Assistivas”. Os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais serão financiados desde que “contribuam, em algum grau, para o desenvolvimento das áreas de Tecnologias Prioritárias do MCTIC”.

Essas temáticas são importantes, não há dúvida, mas o governo procura estabelecer uma contraposição entre as diferentes áreas que até o presente conviviam no interior das instituições, ao mesmo tempo em que diminui os recursos totais para a pesquisa e para a manutenção das universidades. Promove uma “canibalização” do ambiente universitário investindo muito menos do que em anos recentes, ao mesmo tempo em que busca criar uma competição entre as diferentes áreas, depreciando e atacando algumas.

Além da contraposição entre áreas, o governo trabalha com a contraposição regional, ao afirmar que não há recursos para todas as instituições e é preciso escolher algumas universidades como “centros de excelência”, um discurso trazido da década de 1990, de perfil elitista que identifica poucos centros de pesquisa na região sul-sudeste. As demais instituições, de outras regiões, devem se concentrar em atividades apenas de ensino. 

Entendemos que esse ataque às Humanidades, às Artes, às Letras e até às ciências básicas, como Matemática, Física, Química, Geologia e Astronomia, não é algo apenas movido pelo rancor de um segmento político com essas áreas, por serem críticas ao autoritarismo e ao projeto proposto para a Sociedade pelo governo. Trata-se de parte de uma estratégia mais ampla de substituição de um pensamento por outro, de afirmação de ideias, conceitos e verdades que se pretendem agora hegemônicos. Peter Cohen, diretor do documentário “Arquitetura da Destruição”, que ganhou vários prêmios, disse que “O nazismo também era estética” e Hitler “pregava que uma nova Alemanha surgiria, mais forte e bonita, num sonho ao qual só os artistas podiam dar forma.” 

O filme pode ser viso pelo YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=gDqGT4xepjQ) e serve para exemplificar que um projeto de poder também é um projeto cultural, artístico, moral, estético. No caso dos nazistas eles identificavam toda a arte moderna como degenerada, e por isso defendiam uma volta à arte clássica, grandiosa, “pura”, monumental, assim como defendiam uma raça pura de arianos que deveriam exterminar os judeus, os russos e eslavos de forma geral, além de homossexuais, ciganos, pessoas com deficiência, comunistas e democratas. 

Aqui no Brasil não há como negar que estamos no meio de uma guerra cultural, onde se desacredita na Ciência, afirma-se que uma pandemia não existe, se estimula aglomerações para defender a projeto político do presidente e manifestantes vestidos de camisas verde-amarelas ofendem as famílias dos mortos na pandemia na porta de hospitais e atacam os profissionais de Saúde na praça em frente ao Palácio do Planalto. Ao mesmo tempo se vê o discurso de ódio em escalada, a tentativa de reabilitação da ditadura militar e de torturadores de homens, mulheres e crianças pequenas. Ainda temos que aturar um discurso anticomunista importando diretamente da Guerra Fria que terminou em 1989, assim como narrativas completamente desvinculadas da realidade. Essa “guerra cultural” chegou à política de Ciência e Tecnologia e à Educação Superior, infelizmente.


*Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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