Educação

O Enem, o Sisu e o calendário escolar

Imagem O Enem, o Sisu e o calendário escolar
Bnews - Divulgação

Publicado em 17/05/2020, às 17h04   Penildon Silva Filho*


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Na semana que passou o Brasil viu ganhar relevo a questão da manutenção ou adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que é utilizado pela maioria das instituições e ensino superior no país, especialmente pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU), adotado pelas universidades federais e estaduais. O debate sobre o ENEM é de fundamental importância para a Educação brasileira, seja na Educação Básica ou superior. Esse exame na última edição teve 5,1 milhões de inscritos e o número de participantes foi 7,5% menor do que o de 2018, quando 5,5 milhões de estudantes fizeram a prova, mas mesmo assim ele representa a principal porta de entrada para os estudantes da Educação Superior. Surpreendentemente, a posição até o presente momento do Ministério da Educação (MEC) de manter o calendário do ENEM, e por conseguinte do SISU, não guarda nenhuma relação com questões pedagógicas ou acadêmicas, nem toma o devido cuidado para evitar a ampliação das desigualdades na Educação.

O primeiro aspecto pedagógico que corrobora com o adiamento do ENEM é o fato de que não haverá qualquer prejuízo para as instituições de ensino superior com uma entrada mais tardia dos alunos nos cursos de graduação. É do conhecimento de todo o país e também do MEC que as instituições federais e estaduais estão com as atividades suspensas, e com certeza na volta às aulas presenciais haverá a compensação dos dias parados e um período de adequação do calendário acadêmico com o calendário civil. O semestre 2020.1 não terminará em junho, conforme previsto no início desse ano, e o semestre 2020.2 também não terminará em dezembro. Haverá naturalmente um término do ano letivo 2020 depois do ano civil, e o ano 2021 não será iniciado no mês de fevereiro ou março, podendo iniciar em maio de 2021 ou até mais tarde, a depender da evolução da pandemia, e a entrada dos alunos também será posterior, logo não há necessidade de fazer o ENEM em novembro e o SISU em janeiro, pois os alunos teriam que ficar esperando pelo menos quatro ou cinco meses para entrar. 

Na verdade, haverá prejuízo acadêmico com essa manutenção de datas, pois os alunos quando concorrem no SISU em janeiro e precisam esperar tanto tempo para iniciar as aulas em muitos casos desistem dos cursos, se desestimulam, deixam mais vagas ociosas nas instituições, o que configura um desperdício de recursos públicos. Um planejamento adequado e que leve em consideração os recursos investidos na Educação Superior demanda um alinhamento desses calendários, do ENEM e do SISU, por parte do MEC, com as universidades. Um diálogo maior entre o MEC com as Universidades significará maior eficiência e economia de recursos públicos.

Um segundo aspecto a ser enfrentado é que dos 44 milhões de alunos da Educação Básica Superior, 85% estão em instituições públicas, e é notório que essas redes de ensino estão paradas e não permitem que os alunos possam se preparar para a competição do ENEM. Simultaneamente, as instituições privadas, que respondem por apenas 15% do total de alunos, estão conseguindo implementar estratégias para usar novas tecnologias e educação a distância. O perfil do aluno de escola privada é bem distinto do estudante de escola pública, aqueles têm mais acesso à computadores, cinema e audiovisual por internet, têm condições socioeconômicas melhores que permitem maior conforto para estudar em casa, acesso a biblioteca dos pais e toda sorte de auxílio.

A Educação que deveria servir para diminuir as desigualdades sociais, tentando garantir aprendizagem e oportunidades a todos, com prioridade pedagógica e até apoio material e financeiro aos mais vulneráveis, será substituída por outra Educação em que as desigualdades seriam ampliadas e o direito à aprendizagem da ampla maioria dos alunos não estará sendo respeitado, assim as condições mínimas para concorrer em um certame, o ENEM, que vai influenciar o resto da vida desses jovens. Se queremos garantir justiça pedagógica e social no ENEM, precisamos garantir que as diferenças econômicas e financeiras não sejam as determinantes para conseguir se preparar melhor, e –por conseguinte precisamos adiar a realização do ENEM.

Anteriormente, há cerca de um mês, houve um esforço para colocar as escolas públicas com a modalidade a distância, e agora se volta a falar dessa demanda, apresentada supostamente como fácil de ser implementada e acessível a todos. Entretanto isso não corresponde à realidade, seja porque os professores não tiveram a oportunidade de ter uma formação para usar as novas tecnologias educacionais ou não têm ainda os recursos tecnológicos adequados, seja pelo fato dos alunos não terem as mesmas facilidades de acesso à rede, acesso a computadores e locais adequados para estudos nas suas casas. Insistir ou forçar que a Educação Básica substitua totalmente as aulas presenciais por Educação a Distância (EAD) sem uma preparação para os professores, sem recursos tecnológicos disponíveis, sem material pedagógico desenvolvido especialmente para essa modalidade e com ausência do acesso da maior parte dos alunos é aprofundar as desigualdades e destruir as oportunidades de ampla maioria da população. 

A EAD é importante e deve ser desenvolvida, mas ela deve ser de qualidade, com recursos pedagógicos e humanos que garantam essa qualidade ao mesmo tempo que os alunos devem ter acesso à tecnologia necessária, sem perder de vista que nem tudo pode ser feito a distância. O processo de alfabetização e das séries iniciais do Ensino Fundamental precisam da mediação de um professor em sala de aula, da convivência com os colegas, de espaços apropriados para essa aprendizagem. Nada impede que as tecnologias sejam usadas e estimuladas com as crianças, desde que com responsabilidade e acompanhamento adequado, mas esses recursos não podem substituir a presencialidade nessa fase da vida.

Em pesquisa publicada nesse momento pelo Cetic.br, departamento do Comitê Gestor da Internet do Brasil, que monitora a adoção de tecnologias de informação há 15 anos, o Brasil tem um alto nível de exclusão digital, tanto de primeira ordem quanto de segunda ordem. Essa pesquisa, amplamente divulgada, indica que pelo menos 70 milhões de brasileiros atualmente têm acesso precário à internet ou não têm nenhum acesso. Logo, além das desigualdades sociais, raciais, sanitárias e ambientais que se intensificam na pandemia, há a outra dimensão da disparidade socioeconômica: a desigualdade digital. Mais de 42 milhões de pessoas nunca acessaram a rede. Dos cidadãos das classes D e E já conectados, 85% utilizam a internet só pelo celular e com pacotes limitados. Isso inviabiliza o trabalho universal e democrático com todos os alunos no acesso às tecnologias digitais. 

Uma alternativa seria garantir computadores e internet para todos os alunos da Educação Básica e Superior, e há recursos que podem ser utilizados para essa finalidade. O Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) arrecadou, desde que foi criado, em 2001, pelo menos 25 bilhões de reais, reunindo taxas de contribuição pelos serviços, certificação, outorgas e multas das empresas de telecomunicações. Esses valores são brutos e não são atualizados, logo esse montante deve ser muito maior. Esse fundo foi criado na época das privatizações das “teles” como contrapartida social para universalizar o acesso às comunicações, e está na hora de ser investido, mas praticamente nada foi utilizado para a sua destinação final.

Outro fundo, o Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações), um fundo contábil, formado pela arrecadação da Taxa de Fiscalização de Instalação e da Taxa de Fiscalização de Funcionamento, cobradas pela Agência Nacional de Telecomunicações, acumula R$ 80 bi desde 1997. São duas fontes de recursos que poderiam ser acessadas para investir em nossa Educação. Conheça mais nos links: https://teletime.com.br/18/11/2015/desde-que-foi-criado-fust-arrecadou-quase-r-20-bilhoes-fistel-acumula-r-677-bi-desde-1997/ e https://www.anatel.gov.br/setorregulado/arrecadacao-fistel 

Mesmo que esse investimento seja feito, o que seria alvissareiro também para alavancar a Economia brasileira com a compra de equipamentos e contratação de serviços, o resultado pedagógico não é imediato, pois demora tempo para garantir essa estrutura e preparar as aulas e conteúdo “on line” e formar os professores.

Na realidade atual do Brasil, a EAD seria inviável, pois demanda trocas de dados mais sofisticadas, como download, streaming e vídeo aulas, mas o acesso por franquia de dados a usuários pobres é considerado de baixa qualidade e não responde a essa demanda. Existem dois tipos de desigualdade, uma de primeiro nível —ter ou não acesso— e outra desigualdade de segundo nível —acessar, mas com diversos graus de limitações. No caso da Educação essa desigualdade de segundo nível é intransponível e abarca a maioria das pessoas se somada à desigualdade de primeiro nível.

Não há motivação pedagógica para manter a data do ENEM, não é interessante para as universidades, não prestará um serviço relevante para os 85% de alunos das escolas públicas e aprofundará as desigualdades e injustiças no campo social e educacional. A motivação para a manutenção se situa em outro campo, fora do educacional e social, se prende mais a uma estratégia geral do governo federal que insiste em acabar com o isolamento social. Como as escolas da Educação Básica e universidades reúnem 44 milhões de alunos no nível básico e 7 milhões no nível superior e totalizam 2,5 milhões de professores nos dois níveis, tornou-se uma peça importante na disputa política do governo contra governadores, prefeitos, comunidades científicas, movimentos sociais, judiciário e o Congresso para acabar com o isolamento social e supostamente provocar a retomada do crescimento econômico. Essa captura da Educação para interesses econômico-financeiros e agora políticos de disputa na sociedade não contribui em nada para a aprendizagem das crianças e jovens e para o sucesso acadêmico e pessoal deles.

*Penildon Silva Filho é professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e doutor em Educação

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