Coronavírus

Coronavírus e a crise Político-Econômica

Imagem Coronavírus e a crise Político-Econômica
Bnews - Divulgação

Publicado em 27/05/2020, às 17h00   Luiz Filgueiras*


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A crise econômica mundial e a pandemia do Coronavírus ocorrem em um ambiente político-econômico-social construído nas últimas quatro décadas sob a hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo - que constituiu uma nova forma de desenvolvimento capitalista, com a extinção do pacto socialdemocrata e o desmonte do Estado de Bem-Estar Social.

Os resultados desse “novo capitalismo” foram desastrosos para a maioria da população mundial, mesmo nos países ditos “avançados”: instabilidade e crises financeiras reiteradas, concentração de renda escandalosa, ampliação da pobreza, aumento do desemprego estrutural, precarização do trabalho, retirada de direitos sociais e trabalhistas, exclusão, desenraizamento social e grandes movimentos migratórios.

Agora, em um cenário nacional e internacional de desidratação do Estado Social e de baixíssimo crescimento econômico, ou mesmo estagnação no caso do Brasil, com tensões econômicas e políticas de toda ordem, o surgimento e evolução da pandemia do Coronavírus desencadeou uma crise sanitária, econômica e social de caráter mundial - afetando gravemente cada país em particular e as relações internacionais entre os Estados. A agressividade e letalidade do COVID-19, assim como a sua grande velocidade de difusão, teve como resposta mais satisfatória, em praticamente todos os países, o isolamento social - para desacelerar a contaminação em massa, tendo em vista a inexistência de uma vacina.

O isolamento social, por sua vez, só pode ser viabilizado com a suspensão das atividades econômico-sociais não essenciais. A consequência imediata, em cada país, foi a eclosão imediata de uma crise econômica pela impossibilidade de manter a maioria das atividades produtivas, retroalimentada pela queda da demanda em razão do aumento do desemprego e da desocupação (autônomos e informais) e da queda dos rendimentos dos que ainda podem trabalhar. A derrubada do nível de atividade foi abrupta e ampla, em curto espaço de tempo - dando origem a uma recessão mundial.

Nas relações internacionais as consequências também foram avassaladoras: as cadeias produtivas se desorganizaram, o comércio internacional e os fluxos de capitais encolheram drasticamente; além disso, a crise sanitária evidenciou a dependência dos EUA e dos países europeus para com a China, no que se refere aos equipamentos e insumos necessários ao combate do COVID-19 - colocando em questão a estratégia das multinacionais, referendada por seus Estados de origem, de transferência de suas plantas industriais, principalmente para o leste asiático.

Em todos os países, a resposta à crise econômico-social-sanitária está sendo dada através de políticas públicas, que viabilizam renda para a população que deve ficar reclusa (trabalhadores informais e assalariados de setores não essenciais), ao mesmo tempo em que garantem a sobrevivência das micro e pequenas empresas: renda mínima, crédito, suspensão de dívidas e pagamentos de serviços básicos (luz e água, aluguel etc.). Como em todas as crises, o Estado é, mais uma vez, o último bastião do capitalismo. Portanto, não há contraposição entre garantir renda e sobrevivência das famílias, de um lado, e cuidar da saúde da população, de outro. Mas o sucesso do isolamento social e a atenuação da crise econômica dependem de ampla atuação do Estado, através de políticas socioeconômicas e sanitárias. Estas últimas relacionadas à ampliação de leitos hospitalares e UTIs, e à produção e aquisição de equipamentos, insumos e testes - para monitorar a difusão da pandemia.

No Brasil, entretanto, com um governo neofascista, que nega a gravidade do Covid-19 e contrapõe a saúde e a vida das pessoas à economia, a crise econômico-social e sanitária está sendo enfrentada de forma claudicante e irresponsável - com Bolsonaro sabotando diariamente a efetividade do isolamento social, única forma de impedir o colapso do sistema de saúde que já está ocorrendo. A ação do Presidente da República e de setores empresariais, estimulando e reivindicando a suspensão do isolamento social, em momento de pico da pandemia, está empurrando o país para uma tragédia sanitária de proporções inimagináveis. Em particular, essa tragédia atingirá duramente os segmentos mais pobres e de menor renda, moradores das periferias, que não contam com saneamento básico, dependem da rede pública de saúde e têm dificuldade (financeira e habitacional) de praticar o isolamento.

Esse crime é facilitado pela insuficiência do apoio que vem sendo dado à parte da população mais fragilizada: três parcelas de R$ 600 (R$ 1.200 para mulheres chefes de família), para os trabalhadores informais (autônomos e microempreendedores) e beneficiários do Programa Bolsa-Família; pagamento de parte do salário do empregado formal (benefício calculado com referência no valor do seguro-desemprego), possibilitando à empresa redução da jornada de trabalho com proporcional redução salarial por até 90 dias; e crédito às micro e pequenas empresas. Adicionalmente, a demora (proposital?) em operacionalizar os benefícios, que vem ocorrendo, só agrava a situação. O apoio aos estados e municípios, aprovado pelo Congresso Nacional há duas semanas, ainda não foi sancionado por Bolsonaro. Além disso, quando visto de forma agregada, destaca-se o desigual montante de recursos disponibilizados pelo Estado para setores do grande empresariado (só para os bancos, R$ 1,2 trilhão, 16,6% PIB), quando se compara com os auxílios emergenciais aos trabalhadores mais vulneráveis (R$ 98,2 bilhões) e às pequenas e médias empresas (R$ 34 bilhões).

Dado o que se observou até agora, pode-se fazer as seguintes constatações: 

1- A extrema desigualdade e concentração de renda, a fragilidade do sistema de saúde e a desestruturação do mercado de trabalho, marcas históricas da sociedade brasileira, mas aprofundadas pela política e reforma neoliberais nas últimas décadas, estão evidenciando toda a sua perversidade nesse momento de pandemia do Coronavírus e recessão econômica. Os moradores das periferias e favelas, os pobres e os mais fragilizados estão sofrendo mais.

2- Por outro lado, fica evidente a importância do país ter um sistema de saúde universal (o SUS) que, apesar do financiamento insuficiente e dos ataques historicamente desferidos contra ele pelos agentes da medicina corporativa, tem sido primordial no enfrentamento da pandemia. Na sua ausência, a situação seria de calamidade total.

3- O papel central desempenhado pelo Estado em todos os países, tanto no combate à pandemia quanto no enfrentamento da crise econômico-social; tarefas que não podem ser assumidas pelo setor privado. O Estado passou a gastar para além de regras, metas e “ajustes” fiscais, além de poder ampliar a base monetária.

4- Apesar disso tudo, para os neoliberais o protagonismo do Estado e as políticas de combate à crise na pandemia, mesmo insuficientes, são passageiros; terminada a urgência tudo deve voltar como antes. A política econômica continuará a mesma: o ajuste fiscal deve ser permanente e continuar balizando todas as ações do governo, assim como novas contrarreformas neoliberais serão propostas. O congelamento dos salários, dos concursos e das promoções dos servidores públicos até o final de 2021, aprovado pelo Congresso, antecipa a manutenção da política de desestruturação do Estado brasileiro após a pandemia. 

5- Portanto, a tragédia sanitária, assim como o reconhecimento de segmentos das classes dominantes da enorme desigualdade social existente, assim como da importância do SUS e da produção de ciência e tecnologia, não serão suficientes para sensibilizar o grande capital (que ainda sustenta Bolsonaro e Guedes); não há qualquer determinismo que aponte para uma mudança política significativa, que altere ou freie o projeto neoliberal que infelicita a maioria da população brasileira. Por isso, a derrota da barbárie, iniciando-se com a cassação da chapa Bolsonaro/Mourão (em razão de fraude eleitoral), e com mudanças a favor dos trabalhadores e de uma sociedade mais justa, dependerá da ação política das forças político-sociais democráticas e antineoliberais - agora e após a pandemia.

*Luiz Filgueiras - Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.

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