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WhatsApp Pay e o avanço do capitalismo monopolista de vigilância

Imagem WhatsApp Pay e o avanço do capitalismo monopolista de vigilância
Bnews - Divulgação

Publicado em 23/06/2020, às 17h24   Elizabeth Oliveira*


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No último dia 15, o Whatsapp começou a disponibilizar, no Brasil, a sua mais nova funcionalidade: pagamentos e transferência de dinheiro. Esse é um passo significativo dentro do projeto mais amplo do Facebook (o controlador do aplicativo de mensagens) de se tornar um jogador de peso nos mercados globais de serviços financeiros. Fazem parte de sua estratégia os lançamentos de uma criptomoeda mundial própria (a Libra) e de uma carteira digital (chamada Novi), com a qual a empresa de Mark Zuckerberg pretende oferecer outros serviços, como empréstimos e pagamento de contas e de transporte público.

As inovações tecnológicas destinadas à oferta de produtos financeiros — chamadas de fintechs — não são uma exclusividade do Facebook, claro. As finanças têm sofrido profundas transformações através dos processos de digitalização e dataficação (monetização de dados). Participam ativamente dessas mudanças desde os tradicionais bancos e seguradoras até as startups (como o Nunbank) e bigtechs. Estas últimas são as conhecidas mega plataformas globais — Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Samsung, Uber, Tencent, Alibaba — que estão em pleno processo de expansão no universo dos serviços financeiros, onde também são chamadas de techfins. A pandemia está sendo uma conjuntura claramente favorável para essa incursão.

O Banco Mundial afirma que esse fenômeno proporcionará maior inclusão financeira, algo que, no Brasil, possui particular relevância, principalmente por conta da existência de cerca de 45 milhões de desbancarizados movimentando mais de R$ 800 bilhões por ano. Mas, considerando a hipótese de que as bigtechs sejam a via de enfrentamento da exclusão financeira, quais serão os custos econômicos, políticos e sociais desse processo? Existem muitas questões a serem examinadas, mas, por ora, vejamos, ao menos, dois aspectos que são especialmente críticos para a economia brasileira.

1º) O potencial risco de elevação do nível de concentração
Como bem sabemos, o sistema bancário brasileiro já é bastante concentrado e as fintechs operadas pelas startups tem despertado grande esperança na melhora desse cenário. No entanto, a verdadeira ameaça ao poder dos bancos não reside nestas jovens e disruptivas empresas, mas sim no Facebook e demais techfins. 

O Banco Central está acompanhando a (rápida) entrada das super plataformas nesses novos espaços, tendo em vista os “novos e complexos trade-offs entre estabilidade financeira, competição e proteção de dados”ii que poderão surgir. Em relação aos bancos, essas corporações possuem substanciais vantagens competitivas em escala e em informações, além dos efeitos de rede intrínsecos ao seu modelo de negócios. 

O Facebook, por exemplo, possui nada menos do que 2 bilhões de usuários ativos no mundo e 120 milhões, no Brasil. Estes usuários servem como abundantes e valiosas fontes de dados pessoais que lhes fornecem, conscientemente ou não, informações monetizáveis através de posts, fotos, vídeos e curtidas, sem falar nos rastreadores de navegação na internet fora da rede social que capturam sites visitados, compras online e muitas outras informações.

A análise dos dados realizados por meio de inteligência artificial produz microssegmentação e previsões de comportamentos que são “empacotados” e comercializados na forma de diversas soluções de suporte ao marketing, vendas e comunicação de outras empresas. A partir de agora, com o Facebook Pay, boa parte dessa base de usuários e dados pode proporcionar um rápido ganho de escala em qualquer serviço financeiro que a rede social de Zuckerberg se proponha a oferecer, o que tem uma importância vital quando se tem em vista a dinâmica competitiva global. 

Na Índia, por exemplo, empresas com enormes bases de usuários já dominam o mercado de meio de pagamento, cuja estimativa para 2023 é de US$ 1 trilhão. O Google e o Walmart possuem, respectivamente, 75 milhões (no Google Pay) e 60 milhões (no PhonePe) de clientes. O Facebook, por sua vez, aguarda há dois anos aprovação regulatória para se inserir nesse estratégico mercado através do lançamento do mesmo serviço que acabou de disponibilizar no Brasil, mas sua gigantesca vantagem competitiva (uma base de 400 milhões de usuários indianos) tem sido, ao mesmo tempo, seu maior obstáculo perante os reguladores.

A trajetória do Facebook Pay no Brasil através do lançamento da nova função de pagamentos no Whatsapp parece seguir o mesmo script que normalmente as bigtechs adotam quando se inserem nos mercados financeiros: estreiam com meios de pagamento e depois se lançam nos mercados de crédito, seguro, poupança e investimentoiii. 

Mais do que formar um pool de serviços financeiros, a estratégia da rede social e das outras bigtechs inclui a criação de um amplo ecossistema de funcionalidades para evitar que o usuário sinta necessidade de utilizar a plataforma de concorrentes. Isso pode ser constatado na tendência mundial à construção de super aplicativos. Dois dos casos mais notórios são os chineses WeChat e Alipay, superapps controlados, respectivamente, pela Tencent e Ant Financial (do Alibaba). O pioneiro WeChat, em sua origem, era um mero aplicativo de mensagens como o Whatsapp. Hoje se tornou, simultaneamente, um aplicativo de transporte, de entrega, de paquera, de marcação de consultas médicas, de pagamento, dentre mais de 100 funções. Com “mais de 1 bilhão de usuários ativos, movimentando o equivalente a US$ 7 trilhões”iv no último trimestre de 2018, o WeChat e o Alipay tornaram-se gigantes globais e poderosos concorrentes das plataformas do Vale do Silício.

2º) O fortalecimento do capitalismo de vigilância
Associado ao primeiro aspecto, a entrada das bigtechs no mundo dos serviços financeiros está atrelada à propagação da vigilância e da regulação dos comportamentos por meio de sistemas algorítmicos (computacionais). Conforme já declarado por um representante do Facebook, informações sobre transações monetárias no Whatsapp podem ser utilizadas para fins publicitáriosv. E, como mostrado acima, esse é tão somente o primeiro passo nos planos do Facebook de participação nos mercados financeiros. 

Consideremos os mercados de crédito. A concessão de empréstimos, por exemplo, é tradicionalmente baseada numa análise de histórico de pagamentos a fim de minimizar a probabilidade de inadimplência. Nos últimas anos, no entanto, a gestão de risco de crédito vem incorporando cada vez mais dados alternativos (como atividades em redes sociais), prática que impacta negativamente, em especial, a população economicamente mais vulnerável. Se se espera que as bigtechs proporcionem inclusão financeira de desbancarizados, como fazê-lo na ausência desse histórico? Como saber se serão bons pagadores? É precisamente a partir da vigilância digital de todos os aspectos da vida dessas pessoas — de tudo o que elas fazem ou deixam de fazer em seus smartphones, de seus círculos de amizade, da situação econômica até de seus vizinhos — que se calculará o risco de inadimplência.

E aqui vale ressaltar: essas informações não ficam guardadas na empresa que fez a coleta, pois há um pujante mercado de serviços baseados em dados pessoais. Estes circulam pelos mercados e alimentam modelos matemáticos que julgam as pessoas e afetam várias áreas de suas vidas. Segundo Cathy O’Neil — doutora em Matemática pela Universidade Harvard que deixou para trás o trabalho de análise de risco de investimento em Wall Street ao perceber o caráter nocivo da economia algorítmica —, esses modelos provocam “distorções cruéis” em vários âmbitos: “avaliação de professores, policiamento, sentenças judiciais, concessão de empréstimos ou seguros, planos de saúde, escalas de horário ou triagem de currículos.”vi.

As controvérsias não param por aí. Os dados pessoais são utilizados inclusive para a formação de opinião política. Não podemos esquecer o escândalo do Facebook no caso da Cambridge Analytica em 2016: dados de mais de 70 milhões de usuários da rede social nos Estados Unidos foram utilizados pela campanha de Donald Trump para influenciar seus votos sem que eles soubessem. Outros 17 milhões de usuários de distintos países, inclusive do Brasil, também tiveram seus dados explorados para fins políticos pela mesma empresa. O financiamento de canais propagadores de fake news e de teorias da conspiração estão aí para mostrar que a relação entre as bigtechs e a política não ficaram no passado.

Há muito o que se problematizar sobre a incursão das mega plataformas nos novos mercados, mas, considerando os dois aspectos acima discutidos, as contradições parecem irrevogáveis: os elementos — as tecnologias, a imensa base de usuários e de seus dados — que lhes permitem ampliar o acesso ao crédito e a outros produtos são os mesmos que provocam simultâneos impactos negativos sobre a concorrência e a democracia. O avanço do capitalismo monopolista de vigilância não parece um preço razoável a se pagar em nome de uma suposta inclusão financeira. A solução das péssimas condições socioeconômicas em que se encontra grande parcela da população brasileira não passa pela consolidação de uma economia de dados pessoais, mas sim pela superação do atual padrão de desenvolvimento dependente e neoliberal.

*Elizabeth Oliveira - Professora e Pesquisadora da Faculdade de Economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA) e do Grupo de Estudos em Economia Política e Desenvolvimento (GEPODE/UFBA).

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