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Eleições adiadas. Transições de governo ainda mais prejudicadas?

Imagem Eleições adiadas. Transições de governo ainda mais prejudicadas?
Bnews - Divulgação

Publicado em 03/07/2020, às 06h52   Ícaro Bitar


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O pleito de 2020 está legalmente agendado para o dia 15 de novembro, ficando as cidades que necessitarão escolher seu prefeito em segundo turno com a eleição no dia 29 de novembro. Em face da pandemia que praticamente paralisou o país na segunda metade do primeiro semestre, iniciou-se uma discussão quanto à necessidade de adiamento na data da votação por preocupações sanitárias, sobretudo pela aglomeração de pessoas e o contágio daqueles que estarão à disposição da Justiça Eleitoral. 

Em que pese os possíveis benefícios que podem ser trazidos pela Emenda Constitucional 107/2020, um prejuízo causado pela tardança do pleito será da gestão a ser iniciada em primeiro de janeiro do próximo ano. O motivo? A péssima qualidade das transições de governo já tão sofríveis quando se trata de vitória de grupo político de oposição em face dos palanques ainda armados e fagulhas de rivalidade partidária entre vitoriosos e derrotados. 

Adianto aos que desejam continuar lendo este pequeno artigo: o assunto é bem específico e nada convidativo. Mas da mesma forma que navegar é preciso, tocar em determinadas feridas e abordar temas como este é um grito de alerta para quem vai sair da prefeitura de sua cidade e também para o próximo prefeito. Resolvi explanar este conteúdo como uma espécie de servido de utilidade pública. 
De início é importante saber que a imposição das transições de governos municipais tem fundamento constitucional nos princípios da eficiência, impessoalidade, publicidade, transparência, moralidade e continuidade do serviço público. Ora, se a Constituição Federal assim dispõe, impróprio pensar que possibilitar um bom processo de transição governamental não é nem de longe fazer favor para quem vai assumir as rédeas da prefeitura municipal. 

Explanar a realidade orçamentária do Município, dados bancários das contas públicas convênios vigentes com organismos públicos, contratos de serviços essenciais com necessidade de prorrogação pontual, o andamento dos programas sociais e obras em execução na municipalidade são alguns dos exemplos da necessidade de transição entre atual e a nova gestão.  

Encontra-se parado na Câmara dos Deputados desde junho de 2019 o Projeto de Lei Complementar nº. 381/2017 que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal para que os Chefes de Poder Executivo cujo mandato se encerre constituam, no prazo de até dez dias, contados da data de homologação do resultado oficial das eleições para esses cargos, comissão de transição de governo.  

Enquanto não votado, aprovado e sancionado fica valendo a tão ignorada Lei nº 10.609/2002, que estipula regras para a transição de governo no âmbito da Administração Federal, com aplicação análoga no âmbito estadual e municipal, afinal consagra o princípio republicano da alternância de poder.  
Nos quadriênios anteriores, esse processo geralmente instaurado por meio de decreto municipal acabou por ajudar e apresentar alguns resultados positivos que salvaguardou o 
princípio da continuidade administrativa, evitando que as novas gestões deparassem com verdadeiras terras arrasadas. Mas infelizmente na prática uma transição de governo municipal bem executada é exceção à regra.  

As cidades não precisam ficar sem limpeza pública e coleta de lixo nos primeiros dias do ano pelo fato da gestão que estava findando não ter tido o cuidado de deixar vigente, quando de sua saída, contratos essências e de natureza continuada que possuem a permissão legal para ultrapassar gestões administrativas, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional.  

Somente com um bom trabalho desenvolvido pelas equipes designadas ao processo de transição de governo, a nova gestão consegue iniciar sem a necessidade de recorrer aos polêmicos decretos de emergência administrativa, expedientes tão mal vistos pelos órgãos de controle. Mas para apresentar resultados satisfatórios essa eficiente transição requer tempo de trabalho, nada inferior a um 45 (quarenta e cinco) dias. E quando isso não acontece, iniciase a gestão e é declarada oficialmente aberta a temporada de contratações emergenciais.  
Os órgãos de controle, sem razões materialmente justificáveis e sem justa causa, não aceitarão como argumento de defesa para o festival de processos de dispensa de licitação nos primeiros meses de gestão o fato de que as eleições do ano anterior foram adiadas e atrapalharam o devido processo de transição de governo. Ao contrário, atribuirão comportamento desidioso ao gestor público e questionará a própria ocorrência da situação emergencial, numa tendência à idealização, distante do mundo real e das dificuldades da administração pública.  

Mas seria o curto tempo, ocasionado pelo adiamento das eleições, o fator determinante para tornar as transições de governo ainda mais prejudicadas? Ou o problema ainda permanece na inflamada relação política entre quem perde e quem ganha?  Apenas 30 (trinta) dias úteis separam a vitória de quem assumirá do adeus daquele que sairá. Ocorre que dificilmente quem perde a eleição e precisa conviver com a chacota dos vitoriosos (sem contar com os carros que passam com o som alto e a música “arruma a mala aê, arruma a mala aê” – interioranos nordestinos entenderão), preocupa-se em iniciar desde já o processo de transição. Com a chama do acirramento político acessa e o retardamento da organização transitória, perde a nova gestão, perdem os munícipes, perde a cidade.  
E o que perdem os prefeitos vítimas do ineficaz processo de transição causado pelo gestor anterior? Sono e sossego diante da marcação dura dos órgãos de controle no primeiro semestre. Não se deseja um salvo conduto preventivo aos novos prefeitos, longe disso. O que espera é um inédito bom senso para que se leve em consideração os casos onde a imprestável transição gerou consequências desastrosas nos primeiros meses de gestão e forçaram contratações emergenciais.  
Ressalvada a possibilidade de uma ineficiente pesquisa, pouco se sabe de improcedências em ações de improbidade administrativa ocasionadas por contratações emergenciais nos primeiros meses de governo sob o argumento de ausência de satisfatória transição de governo. Ou seja, o ônus é sempre de quem entra e age diante da terra arrasada que se deparou ao assumir seu mandato. 

Essencial também explicar aos prefeitos que precisarão arrumar as malas no fim do ano que a disponibilização de documentos e informações de interesse público é regra imposta pela Lei de Acesso à Informação, obrigação constitucional de fornecer aos cidadãos às informações públicas daquela cidade, conforme art. 5º, incisos XIV e XXXIII da CF/88, não se tratando de bom-mocismo.  
Eleições oficialmente adiadas e a sorte está lançada, ressaltando que o desejo meramente político de dificultar o início da gestão municipal dos próximos prefeitos impacta diretamente na vida dos munícipes, aqueles mesmos que um dia deram o mandato ao que está saindo. É dizer, sabotar o processo de transição é também um ato de ingratidão e que não tira somente afeição, mas tira também saúde e educação.  
De mais a mais, inviabilizar uma transição transparente, democrática e republicana pode configurar omissão grave, um ato de improbidade administrativa por contrariar os princípios constitucionais da legalidade, publicidade e transparência pública, alem de sérios prejuízos para a continuidade da Administração Pública municipal, principalmente da prestação de serviços públicos essenciais para a população local. Quem avisa amigo é! 

O desejo era concluir este artigo com uma mensagem reflexiva, cheia de emoção, de que a transição de governo precisa ser encarada pelos políticos que sairão e entrarão como uma corrida de revezamento onde a perfeita troca do bastão proporcionará sucesso de todos os envolvidos e a vitória será da equipe. Esquece, eles sabem disso melhor que ninguém mas a rivalidade e os palanques armados sobressaem! Problema é que quase sempre o benefício da equipe, digo, do povo, é o que menos importa.  

Ícaro Werner de Sena Bitar Advogado  - Especialista em Direito Eleitoral Membro da Comissão de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB; Membro fundador do Instituto de Direito Eleitoral de Alagoas - IDEA Especialista em Direito Administrativo; Especialista em Direito Constitucional Especialista em Licitações e Contratos 

Classificação Indicativa: Livre

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