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A Cor do Defeito. O Defeito da Cor.

Imagem A Cor do Defeito. O Defeito da Cor.
Bnews - Divulgação

Publicado em 04/07/2020, às 16h49   Diêgo Aric Souza e Cleyton Brandão*


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Você deu alguma importância quando contei que o Maboke, aquele tata kisaba que alugava um cômodo na casa de dona Balbiana, disse que os espíritos dos mortos perseguem seus assassinos, atrapalhando a vida deles por todo o sempre ou até que seja feito um trabalho de limpeza?

Ana Maria Gonçalves in: Um Defeito de Cor. 

Quando você, amigo leitor, finalizar a leitura deste escrito e compartilha-lo em suas redes sociais – esperamos mesmo que você faça isso –, um corpo negro terá sido alvejado por uma bala de fogo em nosso país... e não terá sobrevivido. Então, isso o assusta? É o Brasil. Século XXI. Traços latentes de uma civilização tóxica e eurocêntrica, movimentada pela discórdia que o preconceito e a discriminação insistem em marcar na pele do povo negro. 

Nós, seres humanos, nos diferenciamos dos outros animais por duas características principais: o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. O primeiro nos permite armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entende-las. O segundo nos permite realizar o movimento de pinça com os dedos, que, por sua vez, possibilita a manipulação e coordenação com precisão. Essas duas características somadas viabilizam que nós, seres humanos, realizemos diversas ações no mundo, como puxar o gatilho de uma arma de fogo contra corpos negros.

Em 2017, a ONU afirmou que, a cada 23 minutos, um jovem negro era assassinado no Brasil. O último Atlas da Violência do Ipea ratificou esta triste e padecida realidade do povo preto em solo brasileiro, atestando que 75% das vítimas de homicídios no Brasil são negras. Como será que chegamos até aqui? Podemos responder isto a partir de um fato sobre a gênese do problema: de tantos escândalos do nosso país, o maior de todos foi a escravização dos povos negro-africanos, confirmando o genocídio cotidiano do povo negro no Brasil. 

Nesta “pátria amada” em que vivemos – com a licença de Elza Soares – a carne mais barata do mercado é e sempre foi negra. O aliciamento de negros para serem escravizados no Brasil é uma realidade da nossa história e revela os desdobramentos na vida desses sujeitos. Em 13 de maio de 1888, o país aboliu, oficialmente, o processo escravizatório de negros, sendo o último a tomar tal atitude dentro do continente americano. A decisão levou em conta pressões internas e internacionais, principalmente da Inglaterra, que se beneficiaria economicamente com a extinção da escravização em solo brasileiro. O Brasil recebeu cerca de 4,8 milhões de escravizados africanos, além dos negros nascidos na “terra brasílis”.  

Mesmo após o fim da escravização, o então governo brasileiro não adotou medidas e/ou políticas públicas a fim de integrar o povo negro a sociedade. Fora das capitais, grandes fazendeiros persistiram na escravização ilegal – visto que o analfabestismo e a exclusão social não possibilitavam acesso as informações, fazendo com que os escravizados nem soubessem de suas liberdades – e, nos grandes centros urbanos, a população preta era, progressivamente, marginalizada e afastada, formando, assim, os chamados “morros”, “guetos” e “favelas”. 

Ainda hoje, nos interiores dos estados que compõem nossa república federativa, existem casos de escravização de pessoas negras. Em janeiro de 2020, o Ministério Público do Trabalho divulgou o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e de Tráfico de Pessoas, onde constatou-se que mais de 10 mil seres humanos foram resgatados no Pará após serem encontrados em situação de trabalho escravo, entre os anos de 2003 e 2018. A média por ano é de 627 trabalhadores durante 16 anos. Mais de 6 mil trabalhavam na agropecuária, mesmo número de analfabetos ou que não chegaram a completar o 5º ano. Agora fica a pergunta: adivinhem a cor e a raça dessas pessoas em questão? Sim, a maioria era preta.

Frente a essas questões, classificamos o Brasil como um país racista. Uma pátria que nega seu povo heroico de brado retumbante; e que, infelizmente, não conquistou a igualdade, mesmo com penhor. Racismo é a ação de discriminar todo um grupo social por causa de sua raça, etnia, cor ou religião. Ele está diretamente ligado a negação da dignidade da pessoa humana. 

É preciso entender também que racismo não diz respeito somente a cor da pele, mas configura-se como um sistema de opressão e relações de poder, e os brancos sempre obtiveram poder em detrimento dos negros. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência, que permite a exclusão do convívio social, bem como a possibilidade de uma educação qualificada e acesso a moradia e saneamento básico dignas.

A sociedade brasileira é e reproduz diariamente práticas racistas. E, em uma sociedade estruturada pelo racismo, nenhum espaço que a compõe estará isento dessas práticas, inclusive as instituições que as (re) ordenam. O racismo é subhumano e estrutural. Processos institucionais e condutas individuais são decorrentes de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. Ele é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição”. 

Neusa Souza – mulher, negra, nordestina, escritora e médica psicanalista –  deixou seu legado em formato de livro com a triste constatação de que, “a sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre a cor negra e posição social inferior”.

Pensar que ser racista se resume a matar ou destratar gravemente uma pessoa ou grupo de indivíduos negros é uma ideia ilusória. Racismo é um sistema de opressão e poder que nega direitos ao povo negro. Trazer à tona estas problemáticas para serem (re) pensadas, analisadas e debatidas na sociedade, é um passo importante para dignificar esses indivíduos. Não é à toa que Bia Ferreira canta e grita para todos ouvirem que COTA NÃO É ESMOLA, apesar de muitos privilegiados pensarem o contrário. 

Por fim, deixamos aqui com vocês a esperança de um futuro possível: que a educação de base – sobretudo pública – seja transformadora, ressignificante e ressignificada, a fim de formar cidadãos conscientes do seu papel social na contemporaneidade, além de ser combativa no que concerne o enfrentamento de preconceitos e discursos discriminatórios enfrentados rotineiramente pela população negra e, assim, construir movimentos basilares para uma educação humanizada e descolonizada sob pilares de uma era crédula, indenitária e que busca a igualdade. Mas, essa é a nossa esperança para o futuro. Para o agora, pedimos que vocês não esqueçam que um corpo negro será assassinado dentro de alguns minutos... o que você vai fazer para impedir isto? Com esse escrito, estamos fazendo algo. A palavra de ordem é: luta, sempre!

*Diêgo Aric Souza é Relações Públicas e professor universitário. . Especialista em Mídias Oficiais e Gestão em RP. Mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

*Cleyton Brandão é graduando da Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Jornalismo pela Universidade Salvador (UNIFACS). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC - UFBA). 

Classificação Indicativa: Livre

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