Economia & Mercado

Austeridade e seus impactos na desigualdade durante a pandemia

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Se reflete em um aumento expressivo de desempregados, postos de trabalho encerrados, horas e salários reduzidos  |   Bnews - Divulgação Pixabay

Publicado em 28/07/2020, às 21h46   Ludmila Giuli, Silas Genário, Yuri Dantas e Fabrício Pitombo*


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É fato que o ano de 2020 será marcado em todas as economias mundiais como um ano de grandes despesas nos orçamentos públicos no intuito de reduzir o impacto econômico, social e sanitário da pandemia de Covid-19. O mundo foi profundamente afetado pela crise pandêmica e as cicatrizes econômicas são difíceis de sanar. Diante de um contexto em que a rápida contaminação compromete os deslocamentos de pessoas, o impacto no mercado de trabalho é grave e se reflete em um aumento expressivo de desempregados, postos de trabalho encerrados, horas e salários reduzidos, sendo que a extensão total do impacto é ainda maior considerando que a população em busca de recolocação não pode procurar uma nova oportunidade em virtude das medidas de isolamento social.

Somando-se a isso, coexistem o problema de inúmeras pequenas e médias empresas abrindo falência, e a educação de mais de um bilhão de alunos em todo o mundo sendo interrompida. Tudo isso nos leva a um ponto central que a pandemia nos legará pelos próximos anos: o aumento da pobreza e da desigualdade, que compromete qualquer perspectiva de crescimento econômico sustentado. Claramente, esses efeitos são distintos daqueles oriundos da crise financeira de 2008.

Sob tais aspectos, diversas medidas foram sendo adotadas em diferentes países na tentativa de retorno à “normalidade”. Entretanto, observando o desempenho econômico do Brasil nos últimos 5 anos, já poderíamos esperar que o impacto da pandemia seria grave: com forte redução dos investimentos desde 2014, o consumo privado passou a ser o principal componente responsável pelo crescimento econômico do Produto Interno Bruto (PIB) pela ótica da demanda, não obstante o aumento da taxa de desocupação no mercado de trabalho desde 2015 e as medidas austeras no corte dos gastos do governo - “engessados” pela Emenda Constitucional 95 de 2016 (EC 95/2016).

Devemos considerar que o novo regime fiscal proposto pela EC 95/2016 institui que, por regra, o gasto primário do governo (educação, saúde, assistência social) fica limitado por um teto definido pelo limite máximo do ano anterior corrigido pela inflação acumulada em 12 meses pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Ou seja, contrata-se uma redução do gasto público real per capita, tornando-se um empecilho para a oferta de serviços públicos e, portanto, o acesso de tais serviços por uma grande parcela da população brasileira em estado de vulnerabilidade social.

Ora, em um país de dimensões continentais e desigual como o Brasil, em que há evidências do efeito do crescimento dos gastos públicos na redução das desigualdades e estudos que apontam uma possível falácia na ideia de que políticas mais austeras levam ao crescimento econômico, é no mínimo de causar estranheza a aprovação da EC 95/2016, ficando a impressão de que um caráter concentrador de renda com aspectos elitistas foi ornamentado com embasamentos técnicos economicistas para passar a mensagem de que essa seria a única saída para o Brasil alcançar a retomada do crescimento econômico.

Cabe ressaltar que, em 2016, não poderia ser previsto que pouco tempo após a aprovação da EC 95/2016 fosse eclodir uma pandemia que forçaria o isolamento social e a interrupção quase que completa das atividades produtivas. Diante dessa nova realidade, o governo brasileiro, mormente por iniciativa parlamentar, teve que articular um incremento das ações estatais com o intuito de evitar que um desastre maior se sobrepusesse à Covid-19. Tais como: o Auxílio Emergencial (AE); Imposto de Produtos Industrializados (IPI) zerado em produtos médico-hospitalares; construção de hospitais de campanha; incentivos à fabricação de respiradores eletrônicos; adoção de linhas de créditos emergenciais para pequenas empresas; dentre outras.

Está em andamento uma tentativa de mensuração dos impactos sobre os rendimentos e as ocupações por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Covid-19, implementada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo as análises realizadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre essas informações, o Auxílio Emergencial (AE) abrangeu 26,3 milhões de domicílios, de modo que foi capaz de garantir rendimentos oriundos apenas do auxílio em cerca de 3,5 milhões de domicílios brasileiros. E esse impacto foi ainda maior em lares com faixa de renda mais baixa, onde os rendimentos do AE corresponderam a 103% daqueles que seriam habitualmente obtidos.  

Numa análise regional, os impactos do AE na renda domiciliar foram mais significativos nas regiões Norte e Nordeste, considerando que a renda média nessas regiões é menor, principalmente entre trabalhadores domésticos e conta-própria, cujo o AE médio chegou a atingir 87% e 46% a mais que a renda mensal destes trabalhadores, respectivamente. 

Deve ser observado que foi necessária uma mudança de comportamento do Estado, uma vez que tais ações estatais refletem um aumento das despesas governamentais, o que vai de encontro à ideia de austeridade defendida desde a aprovação do EC 95/2016. O reconhecimento do estado de calamidade abriu precedente para o descumprimento das metas de resultados fiscais e viabilizou o aumento de gastos durante a pandemia, livrando o Estado do grilhão chamado Teto dos Gastos. Apesar da maior liberdade de atuação, há ainda uma persistente dissonância e falta de planejamento entre as esferas federal, governamental e municipal que demandam esforços adicionais para a contenção da pandemia. 

Um exemplo dessa pouca articulação entre os entes federados, reside no fato de que mesmo com uma abertura de linha de crédito extraordinária a estados e municípios houve uma imposição vertical por meio de vetos presidenciais que acabam por onerar o funcionalismo público . Além de que, mesmo com medidas de aumento de liquidez e políticas de crédito disponíveis nas instituições financeiras, os bancos públicos e de desenvolvimento pouco têm sido articulados para amortecer os efeitos econômicos da pandemia.

É inegável que os gastos públicos até aqui ajudaram a evitar que o país caísse em um desastre social ainda maior do que o que estamos vivendo. Porém, como visto, esses gastos não são suficientes e muito menos devem acabar após a pandemia. De fato, dado o possível aumento da extrema pobreza e desigualdade, assim como a quebra de muitas empresas do comércio, a demanda por gastos públicos deve aumentar. Uma forte proposta nesse sentido é a transformação do auxílio emergencial em um programa de caráter permanente, sendo representada pela Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, lançada no senado no dia 21 de julho.

O próprio governo federal vem tentando implementar uma ampliação do Bolsa Família, chamada de Renda Brasil. Contudo, segundo o próprio Ministro da Economia Paulo Guedes, esse programa seria uma substituição de diversos outros programas sociais, incluindo o abono salarial, de forma que isso pode representar uma diminuição desses direitos para outras parcelas da população, permitindo a perpetuação da ideologia de austeridade fiscal.

A manutenção dos gastos públicos para que o país possa crescer e diminuir suas desigualdades em um cenário de pandemia e pós-pandemia não difere da trajetória percorrida por outras economias. Entretanto, o governo federal vem sinalizando a manutenção da agenda de reformas, bem como a manutenção do teto de gastos e da austeridade fiscal.

Mesmo com a taxa de juros real próxima a zero, o cenário atual desestimula o investimento e o consumo, fazendo com que a taxa de juros baixa tenha efeito praticamente nulo sobre a retomada do crescimento. A solução passa pelo papel do Estado como promotor do crescimento e da diminuição das desigualdades, que será imprescindível em um momento de reconstrução econômica e social após a pandemia.

*Autores:

Ludmila Giuli – Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA. Doutora em Economia pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Economia aplicada pela Universidade Federal de Alagoas. 

Silas Genário - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Economia na Faculdade de Economia da UFBA.

Yuri Dantas - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA. Mestrando em Economia pelo Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGE/UFBA). Graduado em Economia pela UFBA.

Fabrício Pitombo - Professor e Pesquisador da Faculdade de Economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA) e do Grupo de Estudos em Economia Política e Desenvolvimento (GEPODE/UFBA).

Classificação Indicativa: Livre

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