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Neutralidade, liberdade de expressão e ações abusivas em tempo de guerra digital

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Publicado em 08/08/2020, às 13h09   Diêgo Aric Souza e Adson Santana


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"Os lugares mais sombrios do inferno são reservados aqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral".
Dan Brown In: Inferno, 2013.

Como ser neutro em tempos tão devastadores e complexos? Parece um exercício difícil e, de fato, é. Ainda mais nas plataformas digitais. É aí que se torna quase imperativa a necessidade de ver e ser visto; de ter algum posicionamento, independentemente se ele serve para a construção de um debate ou para a exposição gratuita do outro. Será que a crítica ao outro realmente faz a diferença? Temos a liberdade de fala e de ação, mas, em que medida isso não pode se tornar grosseiro e invasivo?
Há uma guerra digital em curso. E é inegável a urgência em sermos bons combatentes.  Quando falamos de guerra digital estamos chamando atenção para as disputas de narrativas, mas também estamos apontando para a liberdade de expressão. A Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789, supõe que a "livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem”, bem como "a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo”. Da mesma forma, a Constituição brasileira, promulgada em 1888, indica no artigo 5º que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...] V - é livre a expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais”.

Beira à incredulidade pensar que, mesmo com esse poder de fala e expressão, nós temos hoje um cenário no qual muitos cidadãos brasileiros têm clamado por um retrocesso, inclusive com perdas das conquistas expressas na Constituição e conseguidas através de movimentos sociais. Após um histórico não muito distante, alicerçado na negação de direitos, clamar pela volta da ditadura militar, o Al – 5, o armamento da população e a venda dos nossos recursos naturais supõem a aceitação de um futuro que restringe nosso poder de fala e suprime o direito de cada cidadão de ir e vir na sociedade. 
O indivíduo poder se expressar é um direito humano e o seu pensamento é um valor nato, porém isso não significa, ofensa e discriminação. O ato de fazer acusações gratuitas sem provas, difamar e atacar a reputação alheia em nome do ódio, ego, crenças e paixões pessoais, reverbera um contexto de barbárie humana, onde o que vale é quem ganha no grito e no mau viver. Nem tudo pode ser dito, principalmente, quando limita a liberdade do outro. Cada palavra que dizemos em nome da nossa liberdade e que fere o semelhante está sujeito à penalidades.

O que mais vemos nas plataformas digitais é uma enxurrada de vídeos e textos impregnados de discursos ofensivos e/ou de ódio. Mas, diante do que foi dito até o momento, será que estamos preparados para colocar nossos discursos e expressões nas plataformas interacionais? Preparados ou não, as interações virtuais são uma constante, ainda mais em tempos de pandemia. Resta saber como lidar de forma virtual com indivíduos que são de verdade, que sentem; e lidar consigo mesmo. Falar e se expor, de diversas maneiras, parece que provoca certo “alívio” nos sujeitos, afinal, é um direito de cada um se mostrar de acordo com o que acredita. Contudo, fica a impressão de que estar interagindo em plataformas digitais é meramente um ato que se enquadra aos modismos sociais de época, ou seja, postar e repostar informações têm o cunho de satisfazer o ego, mesmo que com argumentos vazios - ao pensar na produção intelectual, por exemplo -, do que, de fato, disseminar e produzir conhecimento. “Todo mundo posta, porque eu não o farei? pois bem!

É a ditadura tecnológica, como nós nomeamos, uma forma impositiva de ser e estar em ambiente virtual. O acelerado toma conta do que é paulatino. Pitty já diz que há uma “pane no sistema”, e estamos re (des) configurados. Se por um lado campanhas, lives, homeoffice, movimentos de combate ao preconceito, cartilhas informativas, descomplicações técnicas, cursos, formações e auxílios tecnológicos ajudam os sujeitos em contexto social, por outro, a exclusão, a intempestividade e o desrespeito tomam forma e ficam em evidência. 

Um exemplo disso é que, por mais que estejamos conectados, ninguém tem a obrigatoriedade da resposta imediata a sua demanda. Ligações, mensagens de WhatsApp, vídeo chamadas, reuniões online e afins, são realidades desses tempos desafiadores, mas precisamos entender o tempo do outro. Aceitar que alguém não quer falar ou não está preparado para dialogar, também é um ato de cuidado e respeito pelo espaço da outra pessoa.

Outro ponto é que as redes sociais não foram feitas para agradar nossas particularidades, muito menos as pessoas com quem se interage nessas mesmas plataformas. Menos julgamentos e mais respeito com o que cada um escolhe expor ou que deixa de fazê-lo. Já vivemos um momento em que as fakenews ganharam uma projeção maior do que as informações verdadeiras e/ou apuradas pelos meios de comunicação e, lidar com exposições virtuais de suposições sobre a vida pessoal do outro, nos parece não só abusivo, como passível de responsabilidade jurídica. A liberdade de expressão anda de mãos dadas com o livre arbítrio, mas não é a mesma coisa. O último tem origem teológica e mais conhecido pelos versos bíblicos, tudo me é permitido, mas nem tudo me convém – como bom senso não se ensina... Reflita, caro leitor. Você não pode confundir “inadequação de posts”com seus preconceitos pessoais. Lute para mudá-los, ou, simplesmente, aceite que cada humano é único e diferente, na mesma medida.

O que nos parece é que estamos, segundo uma perspectiva cristã, vivenciando um inferno. Para além do que é religioso, as chamas da arbitrariedade e falta de noção se constituem como armadilha para aqueles que não sabem equilibrar seus preconceitos com a liberdade de expor aquilo que pensam. Esse é um solo fértil para o atentado moral e medicamento nocivo à saúde mental dos que se utilizam das plataformas digitais em rede. 

Por fim, fica a dica: conviva com seu “inferno” pessoal e seus demônios escondidos e salve sua dignidade em tempos tão difíceis. A sua liberdade de expressão, ao invés de se constituir como um “anjo Gabriel”, pode ser, insistentemente, seu pior pesadelo: um “Lucífer alado”, não personificado, mas aterrorizante.

Diêgo Aric é graduado em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia e professor universitário.

Adson Santana é Jornalista e mestre em comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). É pesquisador de narrativas transmidiáticas no jornalismo factual de atualização contínua nas redes sociais digitais e convergência tecnológica.

Classificação Indicativa: Livre

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