Economia & Mercado

Renda Básica: entre suas propostas e desafios

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Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 27/08/2020, às 15h23   Cyro Faccin e Pedro Argollo*


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A pandemia do Coronavírus gerou um profundo colapso econômico, interrompendo algumas importantes cadeias globais de valor. O FMI prevê uma queda na taxa do crescimento ecômico brasileiro na escala de -9,1%. Este cenário provoca, então, o desamparo da população. Principalmente a camada mais vulnerável da sociedade, que acaba por ter uma necessidade ainda maior do auxílio direto do Estado. Portanto, gerir a crise não se limita somente aos serviços públicos essenciais, como a saúde, mas também em maneiras de contornar o grande efeito depressivo da interrupção econômica, que se traduz no desemprego.

A principal medida econômica adotada para reduzir a vulnerabilidade da camada mais pobre foi o programa do Auxílio Emergencial. Consiste, resumidamente, em parcelas de R$ 600,00 focalizadas na população do mercado informal e dos desempregados, que não tenham direito ao seguro-desemprego. Sua duração ainda não foi definida integralmente, mas já foram programadas no mínimo 5 meses, podendo ainda se estender. Segundo estudo do Ministério da Economia, o auxílio retirou, temporariamente, 72% das famílias da extrema pobreza, enquanto a ONU indica um percentual menor, mas ainda considerável, de 32%. Metade dos recursos utilizados para o auxílio foram destinados para as famílias presentes nos primeiros 3 decis de renda, ou seja, para as famílias 30% mais pobres do Brasil. Outro estudo com objetivo de entender os impactos desse programa social na economia doméstica foi elaborado pelos professores da UFPE, Ecio Costa e Marcelo Freire. No estudo, focalizado na realidade dos municípios brasileiros, podemos observar que o Auxílio Emergencial foi mais impactante em cidades que já possuíam grande número de beneficiados do Bolsa Família, ou seja, predominantemente na região Norte e Nordeste do país. 

O Renda Brasil surge agora como uma tentativa de continuidade do programa do Auxílio Emergencial, visto que o governo vê agora nesta política uma utilidade eleitoral, angariando forças para 2022. Ainda que o Renda Brasil não seja tão abrangente quanto o programa atual, este visa ser maior do que o Bolsa Família, adicionando cerca de mais de 8 milhões de pessoas à faixa de elegibilidade para receber o benefício, segundo Paulo Guedes. O programa não foi apresentado oficialmente até a presente data, mas apesar disso já é possível tecer breves comentários sobre o programa, suas finalidades e possíveis impactos. Consiste em uma nova política de renda mínima focalizada que distribuirá uma quantia, segundo veículos jornalísticos, compreendida entre R$ 250,00 a R$ 300,00 por mês para a parte mais vulnerável da população. Para possibilitar o surgimento do Renda Brasil o governo prevê a extinção de cerca de 27 programas de assistência social existentes, entre eles estão: Bolsa Família e o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Com a extinção dessa quantidade de programas de assistência social, várias configurações familiares que dependem diretamente dos programas que não apenas o Bolsa Família serão atingidas negativamente, como por exemplo as pessoas que dependem do programa Farmácia Popular, ou até dos aposentados que recebem o BPC (benefício que representa hoje um salário mínimo para idosos em situação de risco).

Portanto é necessário analisar com cuidado os projetos de políticas de renda para a população. Logicamente a primeira vista é positivo distribuir recursos monetários para retirar uma parcela da população da pobreza. O problema é que este tipo de assistência não pode vir acompanhado da redução de direitos e políticas sociais historicamente construídas pela população brasileira, intimimamente ligadas ao trabalho. Como o seguro desemprego e a educação e saúde pública e gratuita. É importante destacar isto, pois a ideia de Renda Básica, especialmente a universal, não é inédita no cenário acadêmico, e a busca por sua possibilidade política e econômica comumente traz ao debate a extinção de outras políticas como forma de alocar espaço e de substituição da ação estatal. Portanto, para compreendermos isto, precisamos primeiro entender a ideia de distribuição de uma Renda Básica, e seus desmembramentos em políticas focalizadas como vemos no Renda Brasil. Estas se originam em duas diferentes propostas: o Imposto de Renda Negativo e a Renda Básica Universal.

A proposta do Imposto de Renda Negativo (IRN) foi formulada por Milton Friedman, em 1962, sobre a premissa do estabelecimento de um IR que somente seja aplicado para pessoas com rendimento a partir de certo patamar. Para o restante que recebem abaixo deste nível, seria concedido um benefício para complementar a renda até o patamar definido anteriormente. Esta ideia se traduz, então, como uma política de transferência de renda focalizada que substituiria todos os programas sociais de transferência de renda, assegurando um mínimo de renda, mas evitando uma rede social robusta composta por serviços públicos e garantias de renda, como o seguro desemprego, que fortalecem a posição dos trabalhadores na negociação no mercado de trabalho. 

Por sua vez, a proposta da Renda Básica Universal não tem um fundador claro, mas tem em Philippe Van Parijs um de seus maiores defensores atualmente, e referência neste estudo. A Renda Básica Universal seria a instituição de um rendimento automático e mensal para todos os cidadãos, sem nenhuma exigência ou seletividade. Na prática, esta proposta se assemelha com a anterior.  Cria-se assim o esqueleto de um benefício líquido (imposto líquido) para os vulneráveis, enquanto os mais ricos pagariam uma taxação em nível maior do que o rendimento que receberão. 

Ambas propostas ganharam relevo do debate público pré-pandemia, no contexto dos repetidos anúncios do”fim do trabalho”.Este pensamento do “fim do trabalho” indica o que seria uma aparente tendência de um número cada vez maior de extinção dos postos de trabalho a partir da evolução tecnológica.. A partir deste cenário do “fim do trabalho”, defendido por Van Parijs, identifica-se uma intensa precarização do trabalho, e uma consequente queda dos rendimentos dos trabalhadores. Portanto, a única medida que poderia frear e parar este fenômeno seria a Renda Básica Universal. Esta serviria como um piso mínimo incondicional, mas que, na visão de Van Parijs, não deveria substituir medidas de política pública e bem-estar social que proporcionem rendimentos que estejam em um patamar superior ao da RBU, dando uma possibilidade de barganha salarial muito maior ao trabalhador em relação ao empregador..

É interessante destacar como as propostas, já em sua formulação, têm a ideia de aceitar o desemprego como algo natural da economia capitalista, e acabam por caducar a ideia de Pleno Emprego de Keynes e a possibilidade de um Estado Desenvolvimentista. Principalmente a proposta do Imposto de Renda Negativo de Friedman traduz esse ideal diferente de política econômica do Estado apenas como uma medida que leva apenas ao endividamento estatal e à aceleração inflacionária.

As duas propostas abrem também as portas à reduções dos custos do trabalho, já que impostos e contribuições sociais (como os do seguro-desemprego, FGTS e a previdência pública) deixariam de ser pagos pelo empresário, transmitindo estes custos ao estado. 

Como já vimos, é inegável o impacto positivo na realidade econômica dos mais pobres destes programas de renda mínima, sobretudo no contexto brasileiro, no entanto devemos também pensar nas implicações destes programas na forma como estão sendo discutidos, onde o seu financiamento é apresentando como dependente de cortes noutros programas sociais, e na forma como têm impactos na organização do trabalho.  Estas medidas não se traduzem em nenhuma limitação concreta à precarização do trabalho e ao aumento do desemprego nos anos que virão, servindo apenas como um nível mínimo que salvaguarda os que não mais conseguem se inserir no mercado, ao qual deve ser deixado o comando da economia.

*Cyro Faccin - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Faculdade de Economia - UFBA. Graduando em Ciências Econômicas na Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (FE/UFBA). 

*Pedro Argollo - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Faculdade de Economia - UFBA. Graduando em Ciências Econômicas na Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (FE/UFBA).


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