Política

A Vacina, Rodrigo Maia e o Impeachment de Bolsonaro

Arquivo Pessoal
Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 27/10/2020, às 18h05   Luiz Filgueiras*


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Nos últimos dias, de novo, Bolsonaro cometeu mais um crime de responsabilidade; desta feita, desautorizando o seu Ministro da Saúde, afirmou que o Governo Federal não comprará a vacina “chinesa” contra a COVID. O motivo não dito: caso comprasse estaria legitimando a associação do Instituto Butantã, órgão do Governo de São Paulo, com a empresa chinesa SINOVAC; e, por extensão, dando crédito ao Governo de São Paulo. 

Mais uma vez, como vem fazendo desde o início da pandemia, politiza no pior sentido um assunto crucial, de vida ou morte, para o povo brasileiro. E pior, já há algum tempo, vem fazendo campanha contra a vacinação, qualquer que seja a vacina que venha a ser viabilizada. Um atentado explícito à saúde pública, um comportamento irresponsável e, no limite, genocida.

Portanto, as razões para a sua interdição política, ou seja, o seu impeachment, estão mais do que evidenciadas; principalmente se considerarmos o conjunto de sua obra: ataque às Instituições democráticas e ao Estado de Direito; prevaricação com relação à destruição da Amazônia e do Pantanal; propaganda e distribuição de uma droga (Cloroquina) comprovadamente ineficaz no combate à COVID, conforme inúmeras pesquisas médicas nacionais e internacionais; permanente boicote ao Ministério da Saúde, mesmo agora com um ministro militar, conspirando abertamente contra o combate à COVID, com a negação da gravidade da pandemia e da importância do isolamento social; submissão vergonhosa aos interesses dos EUA, comprometendo a soberania nacional; interferência na Polícia Federal para proteger a sua família; quebra de decoro, com a publicação de um vídeo de conteúdo pornográfico no Twitter e, por fim, mas não menos grave, a evidente ligação de sua família com o crime organizado no Rio de Janeiro (as milícias), através de esquemas corruptos, fisiológicos e nepotistas com dinheiro público, que o Poder Judiciário vem tratando morosamente.

Até meados de agosto, 1458 pessoas e organizações assinaram 52 pedidos de impeachment de Bolsonaro; o mais antigo está em “análise” na mesa do Presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, há mais de 600 dias. Não existe obrigação legal para que ele coloque qualquer pedido em votação. Os autores dos pedidos pertencem aos mais distintos campos políticos: desde ex-aliados de Bolsonaro, partidos de esquerda e organizações sociais da sociedade civil, até cidadãos individuais indignados com os atos e comportamentos do Presidente. 

Tendo em vista o conjunto da obra acima apresentado, bem como a reação do mundo político e da sociedade civil, a pergunta que precisa ser respondida é a seguinte: por que Rodrigo Maia não vê motivo suficiente para a aceitação de nenhum dos pedidos até agora protocolados? 

A resposta não pode ser procurada em alguma preferência pessoal ou idiossincrasia de Rodrigo Maia; ela depende, de um lado, do entendimento que se tem sobre o conteúdo e significado do Governo Bolsonaro e, de outro, da identificação dos interesses que o Presidente da Câmara representa no parlamento brasileiro. 

De um lado, o Governo Bolsonaro é uma convergência, impulsionada por distintas razões, de duas tendências e interesses políticos presentes na sociedade brasileira: uma, mais antiga, pode ser identificada como sendo o campo político neoliberal (o capital financeiro, a burguesia cosmopolita, o imperialismo e seus prepostos presentes nos partidos políticos, na mídia corporativa, no Ministério Público e nos Poderes Judiciário e Legislativo). E outra, mais recente, é o campo da extrema-direita, em particular o neofascismo, que tem em Bolsonaro e sua família sua expressão maior. Portanto, o Governo Bolsonaro se constitui em uma junção bizarra entre neoliberalismo e neofascismo.

Esse casamento, no entanto, é problemático. As forças políticas neoliberais estão preocupadas com a pauta econômica (contrarreformas, privatizações, desregulação, desnacionalização, quebra de direitos sociais e trabalhistas etc.); enquanto o campo neofascista, com Bolsonaro à frente, privilegia o combate à democracia liberal (se possível sua destruição) e o exercício da “guerra cultural”, que engloba a forma negacionista como seus integrantes abordam e enfrentam a pandemia da COVID. Desse modo, há uma tensão permanente entre esses dois campos, que convivem no interior do Governo Bolsonaro, e que de tempos em tempos se agudiza – como agora, mais uma vez, em razão da pandemia; especificamente com relação à questão da vacina e da sua aplicação.

Mais recentemente, entretanto, desde a prisão de Fabrício Queiroz, que fragilizou enormemente Bolsonaro e sua família, assim como suas milícias digitais, o campo neoliberal vem submetendo-os a constrangimentos sucessivos e ameaçando-os de diversas maneiras: processos, prisões e, no limite, acenando com a possibilidade do impeachment. Essa nova conjuntura vem se desenvolvendo desde o mês de julho, com derrotas sucessivas de Bolsonaro no judiciário e no parlamento, que desembocou em um recuo em suas ameaças às Instituições democráticas e na sua aproximação em relação à “velha política” (o Centrão).

Em suma, chantageado pelas forças neoliberais, Bolsonaro, para sobreviver, mudou momentaneamente de comportamento; colocou em segundo plano a estratégia antidemocrática e a “guerra cultural”, e passou a apoiar mais fortemente a agenda econômica neoliberal - representada por Paulo Guedes no interior do governo e Rodrigo Maia no parlamento. Ambos são instrumentos das forças neoliberais no jogo de “morde e assopra” em relação à Bolsonaro, na tática de chantageá-lo, controlá-lo e, no limite, submetê-lo à execução de seus interesses. Divergências eventuais entre Guedes e Maia dizem respeito, principalmente, não ao conteúdo das propostas e defesa dos interesses neoliberais, mas sim a como viabilizá-los politicamente. 

Rodrigo Maia está sentado em cima de todos os pedidos de impeachment porque não interessa aos interesses das forças políticas neoliberais derrubarem Bolsonaro, apoiado por elas eleitoralmente e cujo governo acabou se constituindo em uma solução, ainda que momentânea e problemática, para dar continuidade à agenda pró-mercado que se instalou no poder com o Golpe de 2016 e o Governo Temer. O impeachment abriria uma nova conjuntura, de grande incerteza, que poderia fortalecer as forças democráticas e antineoliberais; por isso, enquanto Bolsonaro não se constituir em um empecilho incontornável aos interesses do “mercado” e seus prepostos estes o manterão – apesar das tensões e dos incômodos.

Conclusão: o impeachment de Bolsonaro não depende de denúncias ou da existência de provas de crimes de responsabilidade e da falta de decoro; o conjunto da sua obra, juridicamente, é mais do que suficiente para justificar e viabilizar o seu afastamento. No entanto, os interesses das poderosas forças políticas neoliberais presentes no interior de seu governo e na sociedade civil continuam a sustentá-lo, mantendo-o no “fio da navalha”.  Por isso, os males que a sociedade brasileira vivencia desde o Golpe de 2016, e mais especificamente o genocídio que está sendo cometido contra o povo brasileiro na atual pandemia da COVID, não devem ser creditados apenas a Bolsonaro e aos neofascistas; as forças políticas neoliberais têm responsabilidade decisiva nos acontecimentos, em razão de permitirem, irresponsável e cinicamente, a continuação desse governo apesar de todas as barbaridades já cometidas.


*Luiz Filgueiras - Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.

Classificação Indicativa: Livre

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