Educação

O golpe contra o Novo Fundeb e a “iniciativa privada”

Imagem O golpe contra o Novo Fundeb e a “iniciativa privada”
Bnews - Divulgação

Publicado em 13/12/2020, às 16h44   *Penildon Silva Filho


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A Câmara do Deputados aprovou na quinta-feira, dia 10 de dezembro, o projeto 4372/20, que regulamenta o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). O texto estabelece regras para a distribuição dos recursos do fundo a partir de 1º de janeiro de 2021, quando o Fundeb passa a ser permanente. A aprovação do Novo Fundeb foi saudada em agosto do presente ano por ter uma série de avanços. A experiência do Fundeb iniciada em 2007 demonstrou ser exitosa e a aprovação do Novo Fundeb também por emenda constitucional permitiu perenizar o Fundo definitivamente, aumentar seus recursos com mais complementação da União, dos atuais 10% de complementação da União ao Fundo para 23% até 2026; ao estabelecer que pelo menos 70% do recursos deveriam ser para a remuneração dos professionais da Educação; e ao definir o critério do “Custo Aluno Qualidade”(CAQ) como valor mínimo que deve ser investido ao ano por cada aluno, que saltará de 3 mil reais para 5.700 reais. Entretanto a aprovação da regulamentação contrariou essas vitórias do mês de agosto ao estabelecer que entidades privadas, ligadas a igrejas ou não, de caráter filantrópico podem receber recursos públicos e o recurso para pessoal do setor público pode ser desviado para pagamento de empregados de empresas privadas.

Os movimentos sociais da Educação, entidades acadêmicas ligadas ao campo educacional e os partidos de oposição protestaram e lamentaram essa aprovação, pelo seu conteúdo e por ter havido um descumprimento do acordo feito pelo relator, deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), com a Oposição. O que ficou patente é que o relator esperou o fim do ano, prometendo destinar recursos apenas para as escolas públicas, para nesse momento aprovar uma lei que destina recursos para interesses privados E como há a necessidade de aprovação da regulamentação rapidamente, até final de dezembro, para que os recursos do Novo Fundeb sejam destinados aos diversos entes federados, a estratégia do relator associado ao governo federal é forçar a provação desse desvirtuamento no Senado Federal no fim de ano, quando é mais difícil haver mobilização social e dos gestores municipais e estaduais que perderão com essa nova situação.

Emendas apresentadas pela base do governo acabaram desfigurando o Fundo para permitir a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, contrariando o espírito do Fundeb em vigência desde 2007 e do Novo Fundeb aprovado com a Emenda Constitucional 108 em 2020, que constitucionalizou o Fundeb. A privatização da oferta de educação técnica e profissional correrá com a destinação de recursos públicos para instituições conveniadas ou “parceiras” com o poder público, sobretudo as entidades do Sistema S. O Sistema S já conta com muitos recursos públicos, financiados por contribuições na folha de pagamento dos trabalhadores e que são repassadas para o custo final dos produtos das empresas, mas esse sistema hoje não conta com transparência, não é auditado por nenhum órgão de controle como CGU e TCU, cobram mensalidades de seus alunos, são muito restritivos no acesso a seus serviços e acabam por financiar a estrutura das federações de indústrias no Brasil todo. É uma anomalia que mesmo depois da extinção do imposto sindical para as entidades dos trabalhadores ainda perdure esse financiamento público para a classe patronal. Esse formato torna o sistema ineficiente, caro e sem transparência. Nesse ponto não há limite para esses repasses, que também podem, além do Sistema S, aumentar o lucro de empresas de Educação.

Fica formalizada e estimulada a privatização na educação infantil (creche e pré-escola) e na educação especial por convênios irrestritos, sem limites para as parcerias entre o poder público e as instituições privadas (conveniadas) nessas etapas e modalidades. Isso inclui entidades ligas às empresas, outras vinculadas a igrejas aliadas de deputados e engajadas no processo de empoderamento financeiro e eleitoral de seus dirigentes. A um só tempo, o que se pretende com essa medida é desviar recursos da Educação Pública, financiar projetos políticos que têm entidade “filantrópicas” como instrumento de viabilização e comprometer o ensino laico, um princípio da Educação brasileira, pois essas entidades via de regar não seguem as diretrizes curriculares nacionais da Educação infantil e do ensino fundamental aprovadas no Conselho Nacional de Educação, que garantiriam uma Educação de qualidade, laica e plural, com respeito às diferenças. Trata-se de desviar recursos públicos de sua finalidade precípua que seria a Educação Pública e aumentar o poder financeiro e ideológico de grupos contrários ao Estado Democrático de Direito.

Além disso, o projeto de lei aprovado, ironicamente no Dia Internacional dos Direitos Humanos, permite a privatização de 10% das vagas do ensino fundamental e médio, atendendo especialmente aos interesses de entidades confessionais, filantrópicas e supostamente sem finalidade lucrativa. O discurso usado na Câmara dos Deputados foi de que com 10% estelecer-se-ia um limite máximo de financiamento privado. Entretanto, os dados hoje indicam que menos de 1 % das vagas no Ensino Fundamental e Médio estão nessa modalidade de escolas, logo essa medida é um estímulo à privatização. Muitas entidades surgirão rapidamente, especialmente aquelas ligadas a empresas, políticos e igrejas que têm um projeto de poder e econômico, que serão potencializadas com o benefício dos recursos que deveriam ser públicos.

Muito provavelmente o maior sistema de ensino público do mundo é o brasileiro, que atende 42 milhões de crianças e jovens na Educação Básica, e a possibilidade de se apropriar desses recursos significará que até 4,2 milhões de alunos apenas no Ensino Fundamental e Médio estarão em entidades privados com financiamento público. A ironia dessa situação é que o discurso neoliberal geralmente empregado pelos deputados da base do governo Bolsonaro e também dos antigos governos Temer e Fernando Henrique Cardoso não encontra sintonia com a proposta concreta de subsídio estatal para interesses privados. Esses atores políticos e sociais professam um mercado livre e distanciamento do Estado, mas buscam a qualquer momento se beneficiar de benesses públicas. Onde está a livre iniciativa e a eficiência do setor privado para se manter autonomamente?

Uma outra possibilidade aberta por essa regulamentação que já estava prevista desde a reforma do ensino médio de 2016 no governo Temer é a privatização das atividades de contraturno escolar, algo inédito na educação brasileira. As instituições conveniadas, novamente as comunitárias, confessionais e filantrópicas ligadas aos interesses religiosos e políticos mais fortes no Congresso Nacional poderão se apropriar de 30% do custo aluno do FUNDEB para ofertar atividades extracurriculares aos estudantes das escolas públicas. As atividades no contraturno são aqueles para favorecer uma Educação integral com jornada de aulas estendida, como atividades esportivas, culturais, científicas e sociais para favorecer uma formação de todas as dimensões do ser humano , e a jornada ampliada é para permitir que as crianças e jovens possam permanecer mais tempo nas escolas, favorecendo sua formação, sua segurança e permitindo aos pais poderem trabalhar durante o dia enquanto seus filhos estejam em situação adequada.

Consideramos que o conceito e as práticas da Educação Integral são afeitos à Escola Pública, gratuita, laica, para os dois sexos, de qualidade, pois essa instituição pública pode garantir o ensino da Ciência, da Cultura e das artes, o desenvolvimento da Cidadania Ativa e da participação em Sociedade, o respeito aos Direitos Humanos. Uma instância privada, com interesses econômicos, políticos ou confessionais-religiosos, não tem o “ethos” necessário a essa concepção. Não é surpresa que a contribuição de Anísio Teixeira para a Educação abarque essas dimensões, a pública e gratuita e a Integral e laica, sendo que Anísio, ao lado de Darcy Ribeiro, Paulo Freire e vários outros educadores sempre estiveram à frente dos embates políticos em defesa da Escola Pública, se contrapondo aos interesses privatistas que estiveram presentes desde a década de 1930 e permanecem até hoje. 

Nas décadas de 1950 e 1960 o principal artífice do setor privado era Carlos Lacerda, um dos articuladores de desestabilizações institucionais contra os governos de Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas e de golpes como o de 1964 e que defendia a adoção de “vouchers” vales para financiar a escola privada com recursos públicos. Nos dias atuais os articuladores desse campo privatista são o ministro da Economia Paulo Guedes, uma grande base parlamentar do “Centrão” e do governo federal e grandes grupos religiosos, midiáticas e políticos que se articulam com uma pauta fundamentalista. A votação dos parlamentares no último dia 10 de dezembro é pública e pode ser encontrada em muitos sites, a exemplo de: https://www.sinprodf.org.br/confira-quem-sao-os-deputados-que-aprovaram-inclusao-de-escolas-privadas-no-fundeb/ 

A reversão desse quadro ainda é possível no Senado Federal, a quem cabe revisar, corrigir e adequar à Constituição as matérias aprovadas na Câmara. O acompanhamento dos representantes parlamentares nas duas casas do Congresso é essencial para que a Democracia se efetive enquanto um espaço ampliado de realização dos anseios populares e não apenas de grupos econômicos poderosos.

*Doutor em Educação e professor da UFBA

Classificação Indicativa: Livre

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