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Trabalhadores versus “aplicativos”: disputas no Brasil e no mundo

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Bnews - Divulgação Arquivo pessoal

Publicado em 19/03/2021, às 22h56   Pedro Albergaria e Victória Vilas Boas


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Nos últimos anos, as disputas entre as empresas que utilizam os aplicativos e os trabalhadores “plataformizados” têm ganhado notoriedade nos campos da produção das leis e da aplicação do direito nos contextos nacional e internacional. A mobilização da sociedade civil, das instituições e, principalmente, dos trabalhadores, tem sido relevante na luta a favor do reconhecimento do vínculo de emprego. Tais reivindicações derivam do conflito gerado pela classificação dos trabalhadores, pelas empresas, como supostos autônomos. Nessa seara, enquanto na Espanha houve o reconhecimento da condição de assalariamento dos entregadores pela Suprema Corte, no Brasil e nos Estados Unidos, as disputas em torno da regulamentação laboral estão acirradas nos espaços jurídico e legislativo.

Em setembro de 2020, na Espanha, o Tribunal Supremo decidiu que há vínculo de emprego entre os entregadores de aplicativo e a Glovo. Na decisão, consta que a empresa não meramente intermedeia restaurantes, lojas e entregadores, mas, em verdade, coordena e organiza o trabalho daqueles que realizam o serviço de entrega. Além disso, a sentença destaca que a Glovo, além de ser dona dos bens essenciais para a realização do serviço (como o “aplicativo”), é quem determina o preço, as condições de pagamento, a forma e a direção de realização dos serviços.

No Brasil ainda paira uma situação de incerteza jurídica em razão das divergências entre as decisões de instâncias inferiores. A última delas, no mês de outubro do último ano, foi a da 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (13ª Região) que decidiu pela existência do vínculo de emprego entre um motorista e a Uber, afirmando que o discurso de modernidade e de “empreendedorismo de si mesmo” trazidos pelas plataformas digitais representam, na realidade, “um retrocesso social e precarização das relações de trabalho” . Em sentido oposto, no mês de dezembro, segundo a decisão da 11ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul (4ª Região), o relator entendeu que a subordinação é inexistente e que a relação entre empresa e motorista é de parceria civil, negando, assim, o vínculo de emprego.

Já no Tribunal Superior do Trabalho (TST), em dois casos houve entendimento da corte no sentido de negar a existência de vínculo empregatício entre os trabalhadores e as empresas. Porém, ainda no âmbito dessa última instância, um último julgado contou com o voto do Relator Ministro Maurício Godinho Delgado, em dezembro, no sentido do reconhecimento dos cinco elementos caracterizadores do vínculo empregatício. Esse julgamento, todavia, ainda não tem caráter definitivo, pois foi suspenso em razão do pedido de vista dos outros dois desembargadores. Assim, de acordo com os resultados que vêm ocorrendo, não se pode afirmar que haja um entendimento uniformizado ou consolidado no judiciário brasileiro.

Já as disputas travadas no âmbito legislativo referem-se aos embates na produção de normas jurídicas alternativas às trabalhistas tradicionais. Nesse caso, as companhias apelam para a tentativa da criação de uma “nova” categoria jurídica fora do escopo da relação de emprego.

Na Espanha, a figura jurídica do trabalhador autônomo economicamente dependente (TRADE) foi criada no ano de 2007 e, nos últimos anos, passou a ser utilizada por algumas empresas de delivery de plataforma. Essa “nova” figura consiste em uma categoria entre as de empregado e autônomo. De acordo com a Lei 20/2007, do Estatuto do Trabalho Autônomo espanhol, o TRADE é aquele que, com a liberdade para organizar o seu trabalho, exerce uma atividade predominantemente a um cliente, do qual recebe 75% da sua remuneração total. Contudo, a figura do TRADE não correspondeu às expectativas espanholas. Em primeiro lugar, não houve a migração esperada da força de trabalho para essa forma de contratação. Em segundo, o grau de precarização manteve-se elevado, gerando insatisfação entre esses trabalhadores.

A respeito do contexto brasileiro, a criação de uma figura que busca fugir do vínculo empregatício ficou por conta do Projeto de Lei (PL) 3748/2020 lançado na Câmara dos Deputados depois do “Breque dos Apps” do dia 1 de julho. O PL proposto pela deputada Tábata Amaral (PDT-SP) cria uma terceira via entre empregados assalariados e trabalhadores autônomos e institui o regime do “trabalho sob demanda”.

Em seu Art.1º, parágrafo único, ele deixa claro que os trabalhadores enquadrados ali não serão contemplados com os dispositivos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Embora o projeto anuncie fornecer condições básicas de trabalho, ele, por exemplo, 1) não obriga as empresas a concederem férias, descanso semanal remunerado e em feriados e 2) condiciona a remuneração com base no tempo de atividade efetivamente prestada, desconsiderando o tempo dos entregadores posto à disposição das empresas.

Em relação ao cenário estadunidense, uma nova regulação foi aprovada, a Proposition 22, por meio de um referendo na Califórnia em 3 de novembro de 2020. Anteriormente a essa proposta, foi implementada, em janeiro daquele ano, a Assembly Bill 5 (AB5), lei estadual que classifica motoristas e entregadores como empregados. Nesse seguimento, as grandes companhias, como a Uber e a Lyft, compuseram uma coalizão na defesa de seu modelo de negócio, sob a lógica da necessidade de uma legislação específica em benefício da suposta flexibilidade dos “colaboradores”. Com 58% dos votos, a Prop22 substituirá a designação dos empregados pelos independent contractors, rebaixando assim os direitos trabalhistas, a exemplo do salário mínimo e dos benefícios relacionados à saúde e à segurança do trabalho e seguro-desemprego.

No segundo semestre de 2020, essas empresas investiram cerca de 205 milhões de dólares em campanhas favoráveis à implantação dessa norma. Através das propagandas massivas, foi difundido que, se porventura ocorresse a derrota da Prop22, muitos trabalhadores seriam desligados das plataformas e os preços dos serviços seriam elevados em cerca de 25%. Além disso, as empresas insistiram na retórica de que os motoristas e entregadores são independentes e que possuem liberdade para definir a jornada de trabalho. Entretanto, estudos da Universidade da Califórnia informaram que, diferentemente do alardeado pelas campanhas midiáticas das empresas, a remuneração dos trabalhadores aumentaria em 30% e que o acréscimo do valor do serviço seria de apenas 10%.

Vale ressaltar que essa vitória é significativa para os interesses empresariais, pois as companhias permanecerão atuando sem cumprir a legislação do trabalho e poderão ampliar esse padrão de contrato “independente”. Após o resultado, foi divulgado nos veículos de imprensa que tanto o CEO da Uber quanto o da DoorDash comemoraram a vitória da Prop22 e deixaram claro que esse projeto está para além do estado californiano.

Portanto, o que se observa, tanto no mundo como no Brasil, é que as propostas de regulação das ditas “novas formas de trabalho”, seja por meio do TRADE, do Projeto de Lei nº 3.748/2020 ou da Prop22, encontram-se abaixo do padrão garantido às relações tradicionalmente empregatícias. Por óbvio, quanto menos regulação protetiva existir, mais livre o capital se encontra para explorar a força de trabalho. Quanto menores os limites para a exploração, maior é a lucratividade para as empresas que gerem essa força de trabalho.

No país espanhol, a mais alta corte de justiça já rejeitou a aplicação de qualquer figura jurídica aos entregadores de aplicativo que não seja a empregatícia. Quais motivos podem levar o judiciário brasileiro a uma decisão definitiva diferente, considerando a grande semelhança entre as realidades dos contextos laborais? Haveria, como na disputa no âmbito legislativo, tanto no contexto estadunidense quanto brasileiro, a sobreposição do valor político sobre o valor jurídico da causa? É possível esperar uma decisão baseada em um conjunto de valores que agradem as empresas em detrimento dos trabalhadores?


Autores:

Pedro Albergaria – é pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Direito pela Faculdade de Economia da UFBA. 

Victória Vilas Boas - Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA), Graduanda em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA,  e projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA)

Classificação Indicativa: Livre

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