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Que País é esse?

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Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 08/04/2021, às 19h21   Luiz Filgueiras


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Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (Constituição Federal)

É o Brasil: cujo governo e o seu Presidente boicotam, sistematicamente, todas as recomendações da ciência e da OMS para combater o vírus que propaga a COVID-19; minimizando a doença, se opondo ao uso de máscara, estimulando aglomeração, desqualificando o isolamento social e dificultando-o ao não dar condições materiais à maior parte da população para ficar em casa, recomendando remédios “milagrosos” sem amparo na ciência, negando a importância da vacina e fazendo “corpo mole” para a sua aquisição. Consequência: uma tragédia sanitária e a transformação do Brasil em ameaça, e pária, internacional.

É o Brasil: cuja Câmara de Deputados, no dia em que morreram mais de 4 mil pessoas – aproximando o país da marca de 350 mil vítimas do Coronavírus -   acabou de aprovar a privatização e mercantilização da vacina, permitindo que empresas privadas (leia-se o grande capital) comprem vacinas, com a constituição de uma fila paralela à do SUS, definida pelo Programa Nacional de Vacinação do Ministério da Saúde. Em um momento em que há uma guerra dos Estados Nacionais por mais doses das diversas vacinas existentes, em razão da incapacidade das principais empresas farmacêuticas em atender a todos. Essa decisão atende aos interesses das grandes empresas, que são as que terão capacidade de atuarem na compra de vacinas. Portanto, o argumento de que a medida não concorrerá com a vacinação pública não “cola”. Além disso, na história brasileira de vacinação, o SUS nunca precisou de empresas privadas para realizar a tarefa de saúde pública que lhe cabe. Consequência: agressão à Constituição e legalização da desigualdade social imoral existente no país, agora no processo de vacinação; a potencial constituição de um mercado clandestino criminoso de venda e compra de vacinas; e possibilidade do governo se livrar, ou reduzir, a pressão para que compre vacinas. 

É o Brasil: cujos deputados e deputadas, em bom número eleitos pela onda bolsonarista de 2018, em uma articulação da escória empresarial e o “Centrão”, abrem as portas à privatização da saúde pública, como sempre esperando dividendos futuros dessa cretinice. A obrigação de doar parte das vacinas compradas ao Estado, que ninguém duvide, será objeto de iniciativa desses mesmos parlamentares, no sentido de permitirem aos empresários poderem incluir essa doação na condição de isenção fiscal, ou seja, doar com o dinheiro público. Consequência: mais uma vez, a desmoralização do parlamento e da política institucional.

É o Brasil: cujos empresários de transportes em Belo Horizonte, criminosamente, organizaram uma vacinação particular clandestina, tendo por alvo seus familiares e amigos; furando a fila pública do SUS. A descoberta do crime e a investigação em curso está indicando, com grande probabilidade, que as vacinas aplicadas eram falsas (soro fisiológico); o que não anula a canalhice. Não houve qualquer reação por parte das empresas mais importantes sediadas no país condenando essa iniciativa. Consequência: juntamente com a privatização da vacinação, citada anteriormente, reconhece-se, pelas classes dominantes, o seu direito à saúde acima dos demais cidadãos, amparado no seu poder econômico e político.

É o Brasil: cujas forças armadas estão sendo cúmplices (por omissão ou participação direta) do Governo Bolsonaro em suas ações e políticas que agravam a tragédia sanitária que acomete o país. Como se isso não bastasse, não disponibilizam leitos ociosos (até 85%) em seus hospitais para o atendimento de pessoas (civis) que estejam infectadas pelo vírus; hospitais esses que poderiam, e deveriam, fazer convênios com o SUS nessa fase mais aguda da pandemia. Segundo auditoria do TCU, essas unidades consumiram pelo menos R$ 2 bilhões do Orçamento da União em 2020. Consequência: transformação das forças armadas de instituição de Estado em instrumento político de governo; e sua desmoralização junto à população, constituindo-se em uma “casta” apartada do demais brasileiros.

É o Brasil: cujo Ministro do STF liberou, na fase mais crítica da difusão do vírus e a pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), a realização de encontros religiosos de forma presencial, com o argumento de que a proibição dessas reuniões seria uma extrapolação de poder dos estados e municípios e poderia ferir a liberdade religiosa. Na decisão, o magistrado defendeu que o momento da pandemia pede cautela, mas reconheceu a “essencialidade” da atividade religiosa para dar “acolhimento e conforto espiritual”. Dias sombrios, em que “líderes” religiosos se vacinam fora do país e, ao mesmo tempo, estimulam e convocam seus fiéis a se aglomerarem e assumirem o risco de se infectarem e morrerem. Consequência: disseminação do vírus, colapso hospitalar e funerário; e politização da pandemia através da instrumentalização da religião.

É o Brasil: cujas autoridades responsáveis por executar as medidas contra a pandemia não conseguem aplicá-las conforme a recomendação de todos os epidemiologistas e cientistas presentes no país, em virtude da ausência da participação e apoio do Governo Federal e de pressões de empresários de setores econômicos, principalmente das áreas do comércio e dos serviços, mais atingidos pelas medidas restritivas. Daí o absurdo de se abrir no atual momento, por exemplo, escolas, academias, cultos religiosos presenciais etc. Consequência: mais uma vez, a politização da pandemia, a desmoralização do isolamento social como medida imprescindível para conter o espalhamento do vírus, a confusão de informações à população e a reiterada ameaça de colapso (ou colapso de fato) hospitalar e funerário.

É o Brasil: cuja parte minoritária da população, mas significativa em termos absoluto, desconhece solenemente a existência e gravidade da pandemia, praticando o negacionismo propagado por Bolsonaro e o seu governo; um verdadeiro vírus social aliado do vírus biológico na ampliação da tragédia sanitária que atinge o país. Aglomerações de todo tipo: festas, baladas, praias, cassinos etc. Consequência: mais uma vez, a confusão e divisão da sociedade, a difusão do vírus e o descrédito da autoridade pública.

É o Brasil: cuja parcela mais consciente e organizada do povo, juntamente com as Instituições da sociedade civil e do Estado de Direito, apesar de se oporem ao desmonte social, político e econômico promovido pelo neofascismo, e moderarem as suas consequências (com sucessivas crises, mudanças de ministros e recuos do governo), não conseguiram até aqui, lamentavelmente, dar um basta ao Governo Bolsonaro e a sua necropolítica genocida. Consequência: Bolsonaro e o neofascismo, preparam sistematicamente, com idas e vindas, o autogolpe de Estado, ao tempo em que vai desmontando o Estado brasileiro e suas instituições.

Em suma, é o Brasil, e a sociedade brasileira naquilo que ela tem de pior e mais perverso: a desigualdade e os privilégios escancarados, o caráter predatório de sua classe dominante (em especial a grande burguesia), o perfil grosseiro e estúpido de parte de sua classe média, a ignorância e a manipulação de seus segmentos sociais mais empobrecidos e subordinados através de vários tipos de expediente (inclusive com a instrumentalização da religião), o individualismo e a intolerância. O Brasil vive hoje uma anomia social, é uma sociedade desmontada e destruída (na economia, nas relações sociais, na política, na cultura, na educação, na saúde etc.) pelo Governo Bolsonaro e o neofascismo. É urgente pará-los.

Luiz Filgueiras - Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.

Classificação Indicativa: Livre

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