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Uma mudança de cenário no Brasil

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Bnews - Divulgação Arquivo pessoal

Publicado em 27/04/2021, às 12h05   *Penildon Silva Filho


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O patamar da luta política no Brasil passou por uma transformação nos últimos dois meses, aumentando o espaço e a capacidade de influência política da oposição e diminuindo o espaço do governo federal. Esse “ponto de virada” em que nos encontramos pode ser muito benéfico para as políticas públicas, incluindo a Educação. Isso não significa que as dificuldades para derrotar o neofascismo ou o neoliberalismo tenham deixado de existir. Nas pesquisas de opinião sobre a avaliação do governo ou intenção de voto para presidência, Bolsonaro perdeu muitos pontos, e Lula já desponta como favorito nessa disputa, mas o atual governo mantém uma base social fiel e em muitos casos militante, que faz manifestações e mobilizações reais e virtuais. Também é inegável a base parlamentar e institucional que o atual governo criou e mantém de forma eficiente.

As recentes decisões em abril do STF que ratificaram as posturas assumidas pela Corte em março de declarar a incompetência da vara de Curitiba para julgar Lula e a suspeição de Moro não devem ser subavaliadas O grande edifício discursivo construído desde 2014, com o início da “Operação Lavo Jato”, de mentiras e lawfare que viabilizaram o golpe contra Dilma, a prisão de Lula e depois a manipulação das eleições de 2018 para eleger o miliciano, tinha alicerces na criminalização da política e dos partidos. Esse período causou marcas profundas no Estado brasileiro e nas políticas públicas, com significativos prejuízos para todas essas políticas, especialmente com as emendas constitucionais 95 e 186, a reforma trabalhista e a desmobilização das instituições do Estado.

Ao mesmo tempo, o agravamento da pandemia, do número de casos e óbitos, o fracasso completo do governo na organização da estrutura do SUS para resistir à doença e a sabotagem deliberada em 2020, que impediu a compra de vacinas, e em 2021, que continua a evitar a chegada de novas vacinas, contribuem para caracterizar o crime de genocídio cometido pelo atual governo. Ao desastre sanitário soma-se o desastre econômico, provocado desde o governo Temer e no primeiro ano do governo Bolsonaro por uma agenda de austeridade fiscal, privatizações, ausência do Estado no planejamento econômico e em todas as áreas. 

Esse desastre advindo do receituário neoliberal foi potencializado pela pandemia, e a pandemia foi potencializada pela ausência do Estado nas políticas públicas, seja de Saúde, com cortes no orçamento desde 2017 com a aprovação da emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais por 20 anos, ou na recusa do atual governo em prover a ajuda emergencial às pessoas em vulnerabilidade, empresas em situação de dificuldade e entes federados que sofrem os efeitos da pandemia em suas contas  públicas.
O estado de desastre econômico, sanitário e social do Brasil vem sendo encarado como uma oportunidade para o governo e seus apoios neofascista e neoliberal. A situação de desorganização social, falta de possibilidade de mobilização, fome, miséria, desespero, é vista como a janela de oportunidade para a implementação radical das propostas do neoliberalismo. Foi assim com a aprovação da emenda constitucional 186, que utilizou a desculpa de um auxilio emergencial pífio para draconianamente colocar o teto de gastos como mais importante que a vida das pessoas ou o desenvolvimento econômico. Está sendo assim com o desmonte do aparato legal e institucional de proteção ambiental, que deve provocar a destruição completa dos biomas da Amazônia e do Pantanal antes da data de 2030, prometida pelo atual presidente para que se acabe com o desmatamento ilegal no país. A famosa frase do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, de que “enquanto durar a pandemia vamos passar a boiada” também se aplica à legislação, recentemente mitigada, mas não banida, de liberação do uso e aquisição de armas, com o claro objetivo de armar as milícias que darão apoio paramiliar ao governo quando o apoio político não for suficiente. A boiada também se aplica à proposta de “autonomia do Banco Central”, que na verdade é uma blindagem contra iniciativas de futuros governos que tentem modificar a agenda econômica do país.

Nesse quadro, avança a resistência ao governo. A instalação da CPI sobre a Covid no Congresso, que terá certamente muito material para comprovar o dolo do presidente e sua equipe na atuação do enfrentamento à pandemia, avança. A maior crise nas forças armadas desde 1977, que teve em 2021 a demissão dos chefes das três forças militares, indica que Bolsonaro não tem base social e política-institucional nesses espaços para seus delírios golpistas. Basicamente o presidente miliciano foi uma aposta de alguns generais que atuaram fortemente para desestabilizar Dilma e ocupar o máximo de cargos no governo federal desde 2019, sem qualquer projeto de país ou de Nação. Mas são poucos generais e que não representam a instituição como um todo. O STF mantém uma posição crítica ao governo, finalmente cumprindo suas obrigações constitucionais, coisa que ficou muito rara nos anos da lawfare contra Lula e de derrubada do governo Dilma. Isso ficou claro na decisão do Tribunal em determinar a instalação da CPI do Covid, no veto a trechos na legislação sobre liberação da compra de armamentos, nos constantes limites e obrigações impostos ao governo para o enfrentamento da pandemia.

As forças neoliberais do governo Bolsonaro aproveitam o resto de seu mandato para implantar sua agenda profundamente vinculada aos interesses do capital rentista, capital multinacionais e interesses antinacionais. Uma agenda que ficou anacrônica com os anúncios do pacote do governo norte americano de ajuda às famílias e empresas (1,9 trilhões de dólares) e um programa de apoio à infraestrutura do país, às energias limpas, à pesquisa científica e tecnológica e à ampliação dos serviços gratuitos de Saúde (2,25 trilhões de dólares). 

O governo Biden evidentemente não transformou profundamente os alicerces do modelo estadunidense, ele apenas está implementando um pacote para permitir uma retomada econômica em que os grandes grupos capitalistas continuarão a lucrar. Também é um pacote de retomada da economia com os EUA forçados pela competição chinesa, que a pelo vapor está ultrapassando tecnologicamente o império. Ao mesmo tempo, o governo americano atual aumenta o quadro de disputas e tensão internacionais, ameaçando a paz mundial numa escalada discursiva, militar e de sanções contra a Rússia e a China. 

Mas a mudança e o abandono, mesmo que temporário, da austeridade fiscal irracional, recessiva e destruidora pela maior potência capitalista indica que o credo do “austericídio”, com as emendas constitucionais 95 e 196, a “autonomia do Banco Central” e a recusa em ajudar as pessoas em vulnerabilidade e as empresas em dificuldades por conta da pandemia são deletérios para a sobrevivência do próprio sistema. Esses argumentos devem servir para fortalecer um projeto de desenvolvimento nacional alternativo no Brasil, que deve ser muito mais arrojado que a proposta de Biden, pois devemos tocar na reforma tributária, na democratização da renda, no investimento em políticas públicas e no “projetamento” econômico de Estado, que tem sido extremamente bem sucedido na China.

O principal desafio colocado para o Brasil no momento está em intensificar a luta pela vacinação universal e gratuita em todo o mundo, em garantir a ajuda emergencial para pessoas e empresas enquanto durar a pandemia e fortalecer a luta para a construção do impeachment de Bolsonaro e Mourão e pela realização de eleições imediatamente. 

Isso abre a necessidade de construção de maiorias na sociedade, dialogando com todos que tenham possibilidade de se engajar na construção de um novo país, um novo paradigma de economia baseada na produção, no mercado interno, na dinamização das forças produtivas e implementação de uma forte política industrial, e ao mesmo tempo em bases sustentáveis e priorizando uma transição econômica e ecológica para uma economia de baixo carbono, de sustentabilidade e saúde na produção de alimentos e na reconstrução de nossas cidades. São aspectos que apresentam mais possibilidades de crescimento econômico do que de obstáculos.

A superação das imensas desigualdades econômicas e sociais, a construção efetiva de sistemas de saúde, educação, assistência social e pesquisa científica e tecnológica são precondições para uma cidadania plena do povo, e simultaneamente para criar as bases para um desenvolvimento sustentável socialmente, economicamente e ambientalmente. 

O desafio estará em ampliar alianças para viabilizar um amplo processo de transformação, mas fazer isso lastreados em um programa renovador. As mesmas forças neoliberais que usufruem de benesses e privilégios nos governos Temer e Bolsonaro não hesitarão em abandonar o barco bolsonarista quando ele não tiver mais serventia, e estabelecerão uma agenda conservadora para dar “governabilidade” a um futuro governo, uma agenda que pode frustrar as esperanças de nosso povo e da comunidade internacional. 

Um plano alternativo de desenvolvimento deve ser discutido com todos os setores interessados na mudança substantiva da política nacional, e nele precisaremos inserir as reformas estruturais, como a tributária, a urbana, a agrária, a bancária, a implementação de uma política industrial que busque uma reindustrialização do país em novas bases, uma reforma na regulação dos meios de comunicação, uma reforma na Segurança Pública. Sem as reformas estruturais ao lado do forte investimento na Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia não será possível promover as transformações que são esperadas por um contingente significativo de pessoas que esperam uma mudança.

*Professor da UFBA e doutor em educação

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