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Impactos da Escola Sem Partido sobre a vida de nossas crianças

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Bnews - Divulgação

Publicado em 24/11/2018, às 19h12   Penildon Silva Filho*


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O último nome veiculado para ser ministro da Educação do futuro governo é de Ricardo Vélez Rodríguez, professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Perfeitamente alinhado com o novo governo e numa confusão ideológica e histórica, ele defende que a educação seja recolocada “a serviço das pessoas” e não para “perpetuar uma casta que se enquistou no poder”. Chega ao ponto de contrariar o que todos sabemos sobre o golpe civil-militar de 1964 e a ditadura que matou comprovadamente mais de 470 pessoas no Brasil, e prendido e torturados milhares de pessoas, denominando esse evento de “intervenção” e o elogiando, além de acreditar que o Enem é “instrumento de ideologização”. No ano passado, e estamos utilizando como fonte o blog pessoal dele, ou seja, pode ser verificado por quem se interessar, falou o seguinte sobre o projeto Escola sem Partido: “uma providência fundamental”. Ele insiste na mesma confusão discursiva e cognitiva do recém nomeado ministro das Relações Exteriores, sendo que este último acredita que o marxismo influenciou a Revolução Francesa em 1789, apesar de Marx ter nascido em 1818, como pode ser visto no blog deste outro futuro ministro. Não surpreende, pelo fato de terem sido indicados pelo mesmo interlocutor do presidente recém eleito.

Nessa confusão teórica, histórica e filosófica, muito afeita ao momento em que a política é o campo das “fake news” e das frases de efeito sem conexão com a realidade, e que a raiva e o ódio têm mais peso do que a razão e a sobriedade, o ministro até então indicado (até então pois tudo pode mudar em pouco tempo...) teima em dizer que o sistema de ensino estaria contaminado por uma “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista” e “destinado a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade”, e por isso ele defende a Escola Sem Partido. O projeto de lei do Escola sem Partido acabará com qualquer possibilidade de prevenção efetiva da violência sexual, pois ele proíbe a educação sexual nas escolas e propõe deixá-la inteiramente a cargo das famílias, assim como tolhe o debate sobre o racismo e o debate sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Dessa maneira, esse projeto, sem qualquer base teórica do campo educacional e que será a pedra de toque dessa nova gestão, deixará nossas crianças muito mais vulneráveis e expostas à violência. E assim acabará por ter o efeito inverso ao que afirma na sua justificativa, que seria “livrar as crianças do debate sobre sexo e da exposição ao sexo e às questões de gênero...”. O resultado será mais violência, e essa nova gestão será responsável pelo aumento e/ou pela impunidade dos níveis de violência contra nossas crianças.

Vejamos com atenção, e usando razão, coisa pouco valorizada nos dias atuais. Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - Ipea, órgão do governo federal, um quarto dos estupros de crianças ocorrem nas famílias, no interior do núcleo familiar. Isso ocorre e muitas dessas crianças não sabem que são abusadas, e muitas jovens também não sabem que são estupradas e homens não são ensinados em suas famílias sobre o que é sexo consentido e violência sexual. Muitos pais, talvez a maioria deles, não estão dispostos a falar abertamente sobre sexualidade com seus filhos, e outros tantos reproduzem preconceitos machistas, reservam à mulher um papel subalterno, passivo e submisso diante dos desejos e da violência dos homens. Isso não é uma opinião, é um fato. Segundo a ONU Mulheres, em 2017, “para prevenir a violência decorrente do machismo, é necessário promover a igualdade de gênero em escolas e universidades”, o que o Brasil se comprometeu a fazer, e por isso no ano passado o Brasil foi alertado por essa organização para não se desviar desse compromisso.

Em matéria amplamente divulgada por vários meios de comunicação, inclusive de perfil conservador, o Brasil teve aumento de 83% nas notificações de violências sexuais contra crianças e jovens entre 2011 e 2017, segundo boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde em junho de 2018, na gestão Temer, que não é exatamente um exemplo de governo de esquerda (essa é uma ironia que acabei de fazer, em tempo atuais temos que alertar algumas pessoas sobre ironias...). Segundo o Ministério, no período foram 184.524 casos de violência, sendo 58.037 contra crianças e 83.068 contra adolescentes. Os registros mostram que a maioria dos casos ocorreu dentro de casa, no núcleo familiar mais próximo, geralmente foram familiares os agressores. Os casos de violência contra as crianças se deram em 69,2% das vezes dentro de casa, no grupo dos adolescentes, foram 58,2% dos casos dentro de casa. E os casos que se repetem foram de 33,7% entre as crianças e 39,8% entre os adolescentes.

Podar a escola e a impedir de trabalhar a temática da educação sexual e das questões de gênero, para ensinar às crianças que as meninas não devem se deixar abusar e aos meninos que é errado cometer abuso contra as meninas vai contra todos os especialistas e organizações que lutam pelos direitos das crianças. Assim por exemplo afirma Itamar Gonçalves, da ONG Childhood Brasil, que trabalha para sensibilizar governos e sociedade na defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Ele afirma: “Para mudar esse cenário é importante criar ambientes que sejam acolhedores e inclusivos nos espaços frequentados por crianças e adolescentes, nas famílias, escolas, igrejas. Um trabalho de prevenção se faz com informação, especialmente sobre o funcionamento do corpo, a construção da sexualidade, visando empoderar nossas crianças”. Essa política do futuro ministro da Educação, embora embalado numa miríade de confusas e desconexas afirmações em favor da moral, dos bons costumes e da “família”, atenta contra os direitos das crianças, favorece e facilita a vida dos estupradores e dos abusadores.

Da mesma maneira, podemos dialogar sobre o racismo, que essa confusa formulação do futuro ministro insiste em dizer que não devemos trabalhar nas escolas, e da mesma forma as questões de gênero, como se a escola fosse apenas o lugar de ter conhecimentos ascéticos e descontextualizados, ou seja, o lugar da visão de mundo do partido de quem defende a “Escola sem Partido”. Alguém ainda arrisca dizer que não existe racismo no Brasil? Ou que não existe discriminação contra as mulheres? Alguém é ingênuo ou pensa que existem ingênuos para propalar a inexistente “Democracia Racial” brasileira? Depois de tantas pesquisas do IBGE, desde o ano 2000 até hoje, que indicam que os negros ganham 30% a menos que os brancos, mesmo com o mesmo nível de escolaridade, e que as mulheres ganham 30% a menos que os homens no mesmo nível de escolaridade, alguém ainda insistirá nesse discurso fora da realidade? E os casos de violência contra os negros, especialmente contra os homens, jovens e negros, que amargam um índice de mortes violentas bem superior ao dos brancos? O Atlas da Violência 2018 preparado pelo IPEA em parceria com o Fórum da Segurança Pública, lançado agora em junho de 2018, reafirma o que se tem nas pesquisas desde o ano de 2001: há desigualdade racial na violência. Em 2016, segundo esse relatório, a taxa de homicídios dos negros foi de 40,2 por 100 mil negros e dos brancos foi de 16 por 100 mil brancos. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios dos negros cresceu 23,1% e de não negros caiu em 6,8%. A taxa de homicídios de mulheres negras nesse período foi 71% maior do que entre não negras.

A Escola não deve se debruçar sobre a desconstrução do racismo e da discriminação contra as mulheres? A Escola não deve afirmar e trabalhar pedagogicamente que brancos e negros, homens e mulheres devem ser igualmente respeitados, ter os mesmos direitos, ser igualmente valorizados? A Escola não deve abrir mão desse papel de contribuir com a mudança de valores, de atitudes e de percepções da realidade, inclusive contribuir para a mudança de visão de mundo das próprias famílias. Porque a Escola deve representar o estágio civilizatório que atingimos até aqui no Brasil, que não aceita essas discriminações e violências.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais dos diversos níveis e modalidades da Educação foram construídos em longos debates no Conselho Nacional de Educação, nas conferências de Educação nos municípios, estados e nacionais, nas universidades, nas instituições da Educação Básica e hoje apresentam um razoável avanço da Sociedade brasileira ao afirmar que a Escola deve ser o espaço de formação desses valores de igualdade, de combate à discriminação, de afirmação da justiça. E muitas vezes a família não apresenta esses valores, e não é por isso que devemos fechar os olhos, devemos sim dialogar com as famílias para evitar violência contra as crianças e adolescentes, dialogar para superar visões de discriminação racial e de gênero.

Quem é da área da Educação, e não fica inventando frases de efeito sem base científica alguma, sabe que a Escola é primeiro lugar onde se detectam crianças que sofrem violência física, crianças que sofrem violência sexual, casos de vulnerabilidade extrema, casos de violência dentro de casa, e se abster de intervir nessas situações, por um discurso tosco de que a Escola não deve intervir em “questões familiares”, é um crime de omissão, e nós professores não somos criminosos. Infelizmente, o atual governo, depois de fazer um discurso sem base científica de que iria combater a violência e os “bandidos” durante a campanha eleitoral, agora elegeu os professores como principais inimigos, e tenta incitar as famílias contra os professores, caracterizando-os como criminosos. Presta assim desserviço ao que vínhamos construindo, que é uma aproximação cada vez maior entre família e escola como melhor caminho para superar as dificuldades acadêmicas e as desigualdades sociais. Essa aproximação entre família e escola tem uma base de pesquisas que indicam o efeito positivo para a aprendizagem dos alunos e o sucesso dos mesmos na escolaridade e na ascensão social.

*Penildon Silva Filho é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e mestre e doutor em Educação também pela Ufba.

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