Educação

A proposta de cobrança de mensalidades nas universidades públicos pelo governo Bolsonaro: mitos e inverdades

Imagem A proposta de cobrança de mensalidades nas universidades públicos pelo governo Bolsonaro: mitos e inverdades
Bnews - Divulgação

Publicado em 29/11/2018, às 09h03   Penildon Silva Filho*


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Durante a campanha eleitoral, alguns veículos de comunicação começaram um ataque sistemático às universidades federais, tentando desqualificá-las com informações inverídicas, tendenciosas e que tinham o objetivo de preparar o terreno para um processo de privatização, sucateamento e utilização do sistema de vouchers para financiar com dinheiro público as faculdades particulares.

Acompanhando essa campanha midiática, entre o primeiro e o segundo turnos, um dos filhos do então candidato Bolsonaro, Eduardo, no dia 9 de outubro em pronunciamento (disponível na internet) defendeu abertamente que as universidades federais eram ineficientes, seu ensino ideologizado e que se deveria seguir o modelo de gestão das instituições privadas. Só não explicou porque as instituições privadas seriam superiores, na opinião dele, se praticamente não têm atividades de pesquisa científica básica e aplicada, inovação tecnológica, de extensão universitária, de produção artística, literária e filosófica, se concentram na reprodução do conhecimento em um ensino precarizado por relações de trabalho vergonhosas com seus professores, sem qualquer expressão na produção científica nacional e internacional.

Ele também defendeu que fossem cobradas mensalidades nas universidades federais para todos os alunos e que em alguns casos de maior vulnerabilidade social fossem dados vouchers, quantias de dinheiro, para alunos escolherem se queriam estudar em instituições privadas ou públicas. Agora, depois de terminado o pleito, o jornal O Globo em editorial de 25 de novembro último, endossou essa campanha articulada com o projeto político privatista, num raciocínio que desnuda o desprezo pela democracia que alguns atores da cena política nutrem e pela sua aversão da participação do povo nas decisões políticas. Nos primeiros parágrafos, o editorial abre defendendo a cobrança de mensalidades, informa que o tema não constou do programa do então candidato e que apenas em reportagem no Estado de São Paulo na penúltima semana de outubro apareceu a notícia de que a equipe do então candidato pretendia “instituir a cobrança no ensino superior público para alunos em condições de pagar”. E completa “Sem alarde, pelo menos na campanha, para não chamar a atenção dos conhecidos opositores da ideia”. Ou seja, o importante é impor uma mudança radical na Educação Superior, sem chamar atenção, sem necessidade de apresentar isso durante a campanha para conhecimento dos eleitores, vistos como um “estorvo para a boa gestão empresarial do Estado”. Agora depois da eleição dever-se-ia aproveitar para fazer o que deve ser feito, na opinião deles.

O editorial paradigmático, pois permite conhecer as entranhas de como os “liberais” brasileiros pensam, apresenta algumas inverdades: que a maioria dos alunos das universidades públicas são ricos, que não há cursos noturnos, que os pobres estão fora das universidades. É alarmante o grau de desconhecimento da realidade brasileira dos últimas 15 anos por parte dessa parte da imprensa e da equipe do presidente eleito, e a insistência em um discurso que já era equivocado na década de 1990, mas que naquele momento encontrava alguma base na realidade das universidades federais, enquanto hoje é extremamente anacrônico.

Há 20 anos, o perfil de estudantes das universidades era realmente mais elitizado, contudo passamos nesse período pelo REUNI, o programa de Reestruturação das Universidades Federais, que mais do que triplicou o número de vagas nas instituições, ampliou os cursos noturnos e instituiu as cotas, em âmbito nacional. Por isso não há sentido em repetir argumentos que não têm qualquer relação com a realidade. O Reuni criou 18 novas universidades federais no Brasil, enquanto que na Bahia saltamos da posição de termos apenas uma universidade federal, a UFBA, para termos hoje seis universidades em nosso Estado: a Universidade Federal do Sul da Bahia, a Universidade Federal do Oeste da Bahia, a Universidade Federal do Recôncavo Baiano, a Universidade Federal do Vale do São Francisco e a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, além da UFBA. Em Salvador, a UFBA passou de 17 mil alunos de graduação e pós-graduação stricto sensu em 2003 para termos hoje 37 mil alunos de graduação e 7 mil alunos de mestrado e doutorado. Antes, a UFBA tinha apenas um único curso noturno, a Licenciatura em Física, e hoje temos um terço das vagas em cursos noturnos. Além dessa expansão, contamos com a política de ações afirmativas no acesso às universidades, e 50% das vagas na UFBA e no Brasil todo são destinadas aos alunos de escolas públicas, respeitando as características étnico-raciais desse segmento; e passamos a contar com políticas de permanência para contribuir com as condições mínimas de sobrevivência dos alunos cotistas através do PNAES – Programa Nacional de Assistência Estudantil. O PNAES oferece assistência à moradia estudantil, alimentação, transporte, à saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche e apoio pedagógico.

O malfadado editorial supracitado repete a argumentação de um estudo do Banco Mundial para tentar comprovar sua tese sem base real em favor da cobrança de mensalidades. Nesse “estudo” divulgado pelo Banco Mundial e alardeado pelo governo Temer, apresenta-se um quadro fantasioso de que a Universidade Pública, especialmente a federal, é o espaço dos privilegiados, dos ricos, dos endinheirados, e que por isso o Brasil deveria privatizar essas instituições, como prova de que assim estaria entrando na modernidade.

O Banco Mundial já é velho conhecido no Brasil. Em 1997 publicou um outro estudo que afirmava que para os países subdesenvolvidos e pobres como o Brasil a única prioridade governamental deveria ser o Ensino Fundamental, e o que estivesse antes desse nível de ensino, como as creches e a Educação Infantil, assim como as fases seguintes, como Ensino Médio, Educação Profissional e Educação Superior, não deveriam ter financiamento público. O resultado disso foi a inexistência de creches e escolas para as crianças pobres nesse período e um decreto do governo FHC que proibia a criação de novas escolas técnicas, além de uma diminuição do financiamento da Educação Superior Pública.

Além do Banco exaltado pelo atual governo brasileiro não apresentar dados ou modelos consistentes que comprovem seu discurso, também parece que procura ignorar a mudança na Universidade Pública entre 2002 e 2015. A presença de jovens negros na universidade cresceu 268% nesse período, e a diferença da inclusão nas universidades foi reduzida de 80,1% de brancos e 18,9% de negros em 2002 para 58,7% de brancos e 40,3% de negros em 2015. São dados do IBGE e do Censo da Educação Superior. A política de cotas foi implantada e funcionou, gerou justiça social, diminuiu as desigualdades históricas, os segmentos mais pobres pela primeira vez entraram na Universidade e nos Institutos Federais de Educação. Diga-se de passagem que a metodologia do Banco Mundial nesse estudo considerou que as famílias que ganham a partir de dois salários mínimos são “abastadas”.

Outro estudo recente da ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das IFES, os reitores das Federais) comprova que 66,19% dos alunos matriculados nas universidades federais têm origem em famílias com renda média per capta até 1,5 salários. Se consideradas apenas as regiões Norte e Nordeste, esse percentual atinge 76,09% e 76,66%, respectivamente.

O argumento de que a cobrança de mensalidades seria um elemento de justiça social pois taxaria os ricos, além de ser fantasioso pelo fato de dois terços dos estudantes no Brasil serem pobres, também peca pelo fato de que a verdadeira justiça social se daria por meio de uma reforma tributária que desonerasse o consumo e as baixas rendas e passasse a taxas mais as altas rendas, que no Brasil tem pouca taxação, e que começássemos a cobrar impostos sobre lucros e dividendos de empresas, grandes fortunas, heranças individuais. A mudança da estrutura tributária que hoje tributa os trabalhadores assalariados e livra de impostos os grandes empresários seria a verdadeira justiça redistributiva, e assim os ricos iriam pagar mais pelos serviços públicos que os pobres. Isso sem mencionarmos a sonegação e a não cobrança de débitos tributários no Brasil, o que por si só geraria uma receita suficiente para resolver vários problemas estruturais, como o financiamento de políticas públicas e da Previdência Social.

É lamentável que no atual momento histórico as Universidades Públicas sejam alvo de ataques dessa natureza, inconsistentes e frágeis. Essas instituições têm importância para o desenvolvimento nacional, para o avanço nas pesquisas científicas, para a formação de profissionais e na Cultura e identidade nacionais.

E cabe a pergunta: justamente agora que os pobres entraram na Universidade Federal, pretendem tirar esse direito deles com a cobrança de mensalidades, a extinção das cotas e a diminuição da rede federal?

Esses ataques estão ao lado das tentativas de criminalização da Academia (e o caso da prisão e suicídio do reitor da UFSC Cancellier é um exemplo disso), ao lado da estratégia de criminalização dos artistas, dos movimentos de Direitos Humanos, e indicam que o objetivo de tanto esforço é justamente a destruição da inteligência brasileira.

*Penildon Silva Filho é professor da Ufba e doutor em Educação. Escreve para o BNews às quintas-feiras

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