Educação

Estado, laicidade e Educação no Brasil

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Bnews - Divulgação

Publicado em 21/12/2018, às 09h10   Penildon Silva Filho


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O conceito de Estado Laico está ligado aos princípios do Liberalismo Político e remonta à Revolução Francesa. É importante registrar isso pois em tempos atuais esses valores e ideias não têm sido respeitados e passaram a ser atacados violentamente no debate público nacional, devido à confusão ideológica e à ignorância profunda de conceitos básicos em História e Sociologia. É interessante observar que muitas lideranças políticas ligadas ao fundamentalismo religioso ou segmentos que defendem o regime ditatorial no Brasil vêm atacando o princípio do Estado Laico com afirmações de que se trata de uma invenção de Esquerda, ou socialista ou soviética. 

Na verdade o conceito de Estado Laico ganha relevo político com a Revolução Francesa, que foi uma Revolução burguesa, assim como a Revolução Inglesa do século XVII e a Revolução Americana que culminou com a independência dos Estados Unidos em 1776, movimentos de afirmação do Capitalismo e de superação do regime anterior do Estado Absolutista, este último assentado no direito divino dos reis e com a justificava de seu autoritarismo com uma ideologia política arcaica que não separava o Estado e a esfera pública das religiões. Essa confusão dos setores retrógrados que desconhecem a própria doutrina do Liberalismo que dizem reverenciar já aconteceu em momentos anteriores da História brasileira. Anísio Teixeira, um dos maiores educadores brasileiros, ao lado de Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Fernando de Azevedo, Demerval Saviani e outros, foi duramente atacado por segmentos da Igreja Católica nos anos 1930 a 1960, com impropérios de que o baiano era defensor de uma Educação soviética, contra a família tradicional, contra a Igreja.

Naquela época o ideal de Anísio e de vários outros educadores que se reuniam em torno do Manifesto dos Pioneiros dla Educação Nova de 1932 era o conceito de Educação Pública, Gratuita, Laica, de Qualidade, Universal. Naquele momento, e acredito que até hoje, a proposta mais arrojada para a Educação era que essa não fosse para poucos, sendo ofertada a todos de forma igual, sem ter dois sistemas educacionais dirigidos para as diferentes classes sociais que reproduziam as posições de classe na Sociedade, por isso Educação universal e pública. Também que fosse uma Educação gratuita, pois vários segmentos naquele momento defendiam que mesmo as escolas ligadas ao governo cobrassem mensalidades. Por fim, a Educação laica para que as escolas trabalhassem a Ciência, a Cultura, os valores da Democracia sem fazer proselitismo religioso e respeitassem as crenças ou ausência de crença dos estudantes. O referencial teórico de Anísio Teixeira era John Dewey, um liberal norte americano que trabalhava no campo da Filosofia com o Pragmatismo e tinha o ideal da Democracia como o lugar das pessoas educadas e preparadas para exercer sua cidadania, fundamentalmente com essas condições criadas pela escola pública.

Mesmo não tendo nada de marxista, e nesse caso friso isso apenas para garantir uma precisão histórica em nosso texto e não para dizer que o marxismo não seja um referencial teórico e metodológico interessante, Anísio com seu referencial em Dewey foi duramente atacado justamente pelos fundamentalistas religiosos daquela época, que exatamente como hoje tinham seus interesses econômicos intimamente ligados ao ensino privado que recebia recursos públicos. É interessantíssimo observar que a proposta da família Bolsonaro para a Educação Superior e Básica são os “vouchers”, ou cheques distribuídos pelo poder público para que as pessoas possam escolher a escola privada que lhe interesse, exatamente a proposta defendida por Carlos Lacerda na década de 1950 e 1960 quando ele representava o lobby do ensino privado, sempre associado ao conservadorismo de costumes. Os setores conservadores hoje no Brasil são então pré-liberais políticos, não alcançam os ideais da Revolução Francesa, as elites que hoje atacam o Estado de Direito e subvertem os princípios da Constituição de 1988 para alcançar seus interesses econômicos são de perfil escravocrata, não admitem a Democracia Liberal, aquela meramente formal, e a utilizam para construir a exacerbação do processo de expropriação de riqueza e poder. 

É notável que os militares no momento da Proclamação da República, no século XIX, preconizavam a separação entre o Estado e a Igreja, o próprio Estado Laico, com o estabelecimento de uma esfera pública, dos serviços públicos e políticas públicas, completamente apartada da religião, e isso não significava o ataque às diferentes crenças, apenas o respeito a todos elas e a proibição de que o Estado privilegiasse uma delas. É irônico que em pleno século XXI segmentos militares estejam em aliança com setores do fundamentalismo religioso, com forte presença política na esfera do Estado e presença empresarial no campo da Economia, promovendo o retorno a uma situação pré-liberal e de atrelamento do Estado aos interesses particulares de determinadas denominações religiosas e seus braços partidários.

Nesse contexto, a Educação passa a ser o principal alvo de uma força política que tem duas faces complementares que se retroalimentam: o conservadorismo fundamentalista e os interesses econômicos de uso dos recursos públicos da Educação. A Educação tornou-se o campo de disputa de concepções de mundo, demonstrando justamente o que os setores ultraconservadores não admitem: não existe Educação neutra, e o discurso da Escola isenta e neutra nada mais é do que a busca por uma escola de uma concepção de mundo bem delineada, de um determinado “partido” ou ponto de vista na Sociedade. Assim temos mais uma comprovação de que o Estado é um campo de disputa de concepções e interesses, e essa disputa cultural tem repercussões econômicas e políticas.

Os setores conservadores fundamentalistas afirmam clamar por uma Escola neutra, mas têm interesse num currículo que seja o espelho de suas crenças, como por exemplo a colocação da Teoria da Evolução de Darwin no mesmo patamar do criacionismo, ou até mesmo com a proibição do ensino da Evolução afirmando que caberia aos pais falar sobre a origem da vida. Falar da origem do Universo há 13 bilhões de anos no Big Ben pode virar uma heresia para aqueles que fazem uma leitura literal da Bíblia e dizem que a Terra tem apenas quatro mil ou dez mil anos. Outro exemplo se apresenta na História, com a relativização do golpe de 1964 como se fosse um movimento de reação a uma suposta revolução comunista em curso pelas mãos do então presidente João Goulart, numa visão deturpada e falseadora que procura esconder os objetivos do então governo com as Reformas de Base, de perfil reformista dentro do próprio Capitalismo. Foram reformas que já tinham ocorrido em vários outros países capitalistas mas que aqui sofriam resistência da classe dominante herdeira da Casa Grande escravista, que não aceitava a reforma agrária ou a reforma urbana, dentre outras.

A Revolução Francesa, impulsionada pelo Iluminismo e por toda uma corrente de pensamento do liberalismo político, havia indicado a necessidade da separação entre Igreja e Estado, e isso não significa ser contra as religiões ou preconizar um Estado ateísta, mas simplesmente estabelecer que a religião deve pertencer ao espaço privado de cada indivíduo, e que o Estado deve garantir a pluralidade cultural e religiosa, com o respeito a todos os credos e respeito àqueles que não têm crença alguma. Não cabe ao Estado legislar sobre qual deve ser a crença de cada indivíduo, nem usar recursos públicos para proporcionar o proselitismo religioso de qualquer ordem ou perseguir e estigmatizar grupos específicos. Ao Estado cabe garantir o bem estar de todos, os serviços públicos de Educação, de Saúde, de Segurança Pública, da Previdência Social, da promoção da inclusão social, cultural e econômica. Ao Estado cabe cuidar dos “negócios públicos”, garantindo o desenvolvimento da sociedade e de sua Ciência e tecnologia para promover a desenvolvimento sustentável.

Nessa visão, a Educação deve ser o Espaço da Ciência, da Cultura, da pluralidade pedagógica, do estímulo ao senso crítico e o espaço do questionamento, não cabe na Educação democrática e de qualidade o apelo ao argumento de autoridade, mas a comprovação de hipóteses pela observação, pela apresentação de provas e contraprovas, pela capacidade de argumentação. A decisão do Supremo Tribunal Federal agora em 2018 que estabeleceu a possibilidade do ensino religioso nas escolas com o caráter de proselitismo escancara que a alta corte do país não entendeu o que estava julgando ou se encontra aprisionada em equívocos terríveis de que escolas mantidas com recursos públicos agora poderão fazer doutrinação religiosa.

Evidentemente isso não é um fenômeno recente, a disputa pela compreensão do que deve ser o Estado e a Educação é antiga. Em fevereiro de 2012, um promotor do Ministério Público na Bahia causou espanto em alguns e comentários de admiração de outros ao aplicar uma penalidade inusitada a um jovem da cidade de Maracás que havia derrubado um muro de uma igreja católica do município com seu carro, além de não ter carteira de habilitação. O promotor, louvado pela mídia nativa, decidiu que o jovem deveria reconstruir o muro derrubado e assistir às missas durante os domingos de um mês. A situação causa surpresa pois nem o jovem, nem o Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça ou a mídia compreenderam que se rasgou um princípio básico da Democracia, a separação entre igreja e Estado.  Quando o Ministério Público decreta uma pena em que um indivíduo deve ser “educado” frequentando uma religião, no caso a católica, como se sentirão os evangélicos, os adeptos do Candomblé, os islâmicos, os budistas e os ateus? Trata-se de mais uma violação do Estado Democrático de Direito, ao lado de várias outras violações em curso. 

Já tivemos no Brasil outras situações dessa natureza. O Estado do Rio de Janeiro amargou leis populistas de políticos oportunistas que impunham o ensino do criacionismo em escolas públicas. Lamentavelmente há várias gestões em que governantes cedem espaços públicos para construções de templos religiosos, espaços que deveriam ser bens públicos de cidadãos, que são desrespeitados por ações que buscam apenas estabelecer relações de trocas eleitorais entre políticos menores e sacerdotes que transformam seus fiéis em moeda de troca eleitoral. Esse comportamento é uma demonstração da cultura política atrasada em que o espaço público não é preservado como o espaço do bem comum, do respeito às diferenças e da construção da cidadania, do conhecimento e da inclusão.

Até a década de 1970 os adeptos do Candomblé eram perseguidos pela polícia, mas até hoje há programas de televisão que insistem em literalmente demonizar essa crença e outras que sejam diferentes das crenças dos donos dessas emissoras. São emissoras de TV e rádio que existem através de concessões públicas e deveriam respeitar a nossa Constituição que estabelece o respeito à diversidade de credo.  Nossa lei também estabelece o caráter educativo e informativo que as emissoras de televisão e rádio deveriam ter, cujo cumprimento não se observa.

Depois do Rio de Janeiro, em muitos estados e prefeituras há grupos que lutam para estabelecer o ensino religioso nas escolas públicas, utilizando espaços e recursos financeiros públicos que deveriam estar sendo direcionados para a melhoria dos prédios escolares e da remuneração dos professores. Esse fenômeno de invasão do espaço escolar por interesses desses grupos vem acompanhado de uma crescente radicalização religiosa. Em muitos lugares do mundo e no Brasil há demonstrações de intolerância, disseminando o ódio contra culturas diferentes, o racismo, a intolerância religiosa, a homofobia e o preconceito contra as mulheres. A recuperação da função do Estado Laico, especialmente na Educação, torna-se essencial para a uma verdadeira Democracia hoje, pois a Educação tem o compromisso justamente com a antítese desses elementos, com a pluralidade, a convivência pacífica entre os diferentes, com a valorização da diversidade e o ensino de uma visão racional e democrática de mundo.

Doutor em Educação e professor da UFBA
E-mail: [email protected] 

Classificação Indicativa: Livre

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