Educação

O governo Bolsonaro, o Estado e as políticas públicas

Imagem O governo Bolsonaro, o Estado e as políticas públicas
Bnews - Divulgação

Publicado em 03/01/2019, às 11h49   Penildon Silva Filho*


FacebookTwitterWhatsApp

Dia 1º de janeiro, assumiu o governo Bolsonaro e dia 2 os ministros começaram a tomar posse, em cerimônias que permitiram ter conhecimento sobre as ações do novo governo, por meio dos discursos do presidente e de seus assessores mais diretos. Duas edições do Diário Oficial da União ajudaram a descortinar a linha política do governo que se inicia, nos permitindo passar da fase de conjecturas para a fase da constatação do que realmente está sendo implementado, o que viabiliza uma análise mais consistente.

Há várias linhas ideológicas e de propaganda que se cruzam e se complementam para viabilizar o projeto do novo governo, projeto que pretende iniciar um novo regime político, algo mais profundo. O discurso em favor “da família, da moral e dos bons costumes”, contra as políticas sociais e de reparação social tenta manter coeso um setor social mais identificado com o conservadorismo e contrário aos recentes avanços sociais de parcelas da população que passaram a compartilhar e disputar espaços antes muito restritos e elitizados. O governo utiliza um discurso em defesa da “meritocracia” mas apenas procura preservar privilégios contra a ascensão dos negros, das mulheres, dos grupos de quilombolas, indígenas, nordestinos e da população LGBT.

Há a linha da “defesa da segurança para os cidadãos de bem” que rapidamente evoluiu da instrumentalização do medo da população em relação à criminalidade interna do país para tentar utilizar de forma tosca a retórica antiterrorista e beligerante contra nações que em nada ameaçavam o Brasil, como os países árabes, Venezuela, Cuba e Nicarágua, tornando o Brasil um apêndice dos interesses imperialistas dos Estados Unidos, posição que ele só tem a perder, inclusive em termos da segurança. Essa tônica estava muito presente na preparação da posse do novo mandatário, na aproximação com o governo de Israel com a mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, que terá impactos extremamente negativos sobre a Economia nacional, além de expor o Brasil a um conflito com a qual nós não tínhamos nenhuma interseção ou problema.

A crônica do repórter da Folha e do UOL Paulo Sampaio na cobertura da posse em Brasília nos dá a impressão de que não estamos mais vivendo no mesmo país de quatro anos atrás. O enviado da UOL nos relata que em Brasília os hotéis estão instruindo as camareiras a vigiar os hóspedes para saber se eles têm mais de um celular ou verificar se aparentemente seriam “tipos suspeitos”; nas festividades, nas cerimônias e reuniões só se fala de ameaça de atentados terroristas, embasados por uma notícia de que um grupo, que não se sabe qual e se há provas disso, havia anunciado um atentado, ao lado de um policiamento ostensivo e intimidatório (ver no site). Os relatos da imprensa sobre a forma como foram tratados os profissionais da mídia dão conta do desrespeito e da paranoia de uma estratégia tupiniquim farsesca de uma “guerra ao terror”, claramente forçada e com objetivos diversionistas.

O apelo à “moral e aos bons costumes”, e sobre isso não fica claro do que se trata, vem ladeado pela tentativa de instrumentalização da religião para interesses claramente políticos e segregacionistas. O diversionismo aqui também toma conta do palco, pois afirma-se que se tem que defender a “pátria” dos que atentam contra os valores do governo, que devem ser extirpados, mas ao mesmo tempo se fala em unidade; prega-se a extermínio das ideologias, como se o governo não tivesse também uma ideologia extremamente autoritária e ditatorial, e se faz o discurso do “pacto nacional”. O governo recém empossado ataca violentamente os professores e todo o campo da Educação com bobagens infantis de que se vai deixar de “formar militantes políticos” nas escolas mas ao mesmo tempo se fala de inclusão.

Usa-se a linguagem de sinais - LIBRAS na posse presidencial, mas no dia seguinte se extingue a secretaria do MEC responsável pela inclusão de todos os grupos historicamente discriminados, como surdos, cegos, pessoas com deficiência, índios, quilombolas, negros, pessoas que demandam a alfabetização e a educação de jovens e adultos, a SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão

O diversionismo, o uso de chavões vazios e do medo da violência ou do terrorismo como estratégia de controle social, recurso bem antigo e já estudado em outros regimes autoritários, aliado à intolerância contra os diferentes, os negros, as mulheres e os LGBTs, o medo e o ódio ao pobre, tudo isso tem o objetivo de mobilizar essa parcela da população que se anestesiará enquanto o verdadeiro projeto econômico será implantado. Melhor dizendo, o projeto iniciado no governo Temer será agora aprofundado, não haverá uma ruptura, mas uma continuidade radical. Não é casual que muitos quadros do governo Temer continuaram, projetos de lei de Temer serão tocados à frente pelo novo governo, como a reforma da Previdência, e a mesma intenção privatista e de defesa dos interesses rentistas e estrangeiros são assegurados.

Chama a atenção o discurso do super ministro da Economia nesta quarta-feira, pois nele podemos identificar todos os sofismas e os interesses presentes no núcleo do governo. O ministro Paulo Guedes diz que o problema da Economia foi a “gastança” dos governos de Lula e Dilma, e que se gastou mais do que se arrecadou e por isso devemos cortar gastos e diminuir o tamanho do Estado. Isso é uma besteira. De 2003 a 2015 o governo federal teve apenas superávits, que variaram entre 2,5%, 3,5%, 4%, a depender do ano. Nunca o Brasil teve tanto superávit quanto nesse período. Esses dados podem ser acessados facilmente nos registros do Ministério da Fazenda e do Banco Central. E foi justamente nesses anos que o Brasil criou 18 novas universidades federais, mais do que duplicou seu número de alunos nas instituições de ensino superior federais, criou mais de 500 campi de escolas técnicas, além de ter criado o Fundo Nacional de Manutenção da Educação Básica e Valorização do Magistério, o Fundeb, que multiplicou por mais de vinte o recurso transferido pelo governo federal para Estados e municípios. Foram duas informações falsas na mesma frase, a de que houve gastança e a que os gastos foram insustentáveis; ao lado de uma conclusão falsa para qualquer estudante de Economia minimamente estudioso, a de que as finanças do Estado são iguais às finanças de uma família, como se o Estado não tivesse características, capacidades e atribuições diferentes do que a família tem com seu orçamento.

O mesmo senhor afirmou que o Estado brasileiro se “agigantou”, é muito grande e por isso deve ser desmontado. Outra bobagem. Segundo a OCDE - Organização dos Países para a Cooperação e Desenvolvimento, em 2015 o Brasil tinha 12% de sua população economicamente ativa no setor público, juntando os servidores das três esferas. A Espanha tinha 16%, a Suíça tinha 18%, a Inglaterra tinha 23%, a Dinamarca tinha 25%. Os Estados Unidos tinham cerca de 24%. O Estado brasileiro não é gigante, e por sinal teria que ampliar seus serviços públicos se quisermos que a população tenha acesso a todos os níveis de ensino, da creche à pós-graduação, e acesso aos diferentes níveis do atendimento à Saúde, primária, intermediária e de alta complexidade, além da Assistência Social, da política de desenvolvimento agrário e outras. Mas não se trata de uma bobagem enunciado por falta de conhecimento, ela é enunciada para preparar o terreno para o desmonte das políticas públicas que mais atendem à população pobre e para privatizar empresas estratégicas como Eletrobras, Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, empresas muito cobiçadas pelo capital estrangeiro.
O que o ministro escondeu foi que o Governo Federal gasta hoje 45% de seu orçamento com o pagamento de juros e serviços da dívida pública, de um orçamento global de 2,168 trilhões de reais comprometemos 978 bilhões apenas para aumentar os lucros dos rentistas e dos credores do Estado brasileiro. Essa é a verdadeira gastança, convenientemente escondida! O gasto com a Previdência é de 21,76%, mas segundo a Constituição do Brasil, e pelo menos até agora ela não foi emendada nesse ponto, a Previdência faz parte da “Seguridade Social”, que abarca também a Saúde e a Assistência Social, sendo que os impostos reservados para a Seguridade bancam todo o necessário a essas três finalidades, não há déficit. Favor verificar o relatório final da CPI da Previdência que atuou em 2016 e 2017, tem dados muito interessantes.

Todo o interesse em desmontar a previdência e fazer com que os brasileiros tenham um sistema tão precário e injusto como o do Chile, além de manter o congelamento dos gastos sociais por 20 anos, é apenas para garantir o pagamento dos juros da dívida pública, hoje a principal fonte de renda do setor hegemônico na Economia, o capital financeiro.

A diminuição da máquina pública destruirá o pouco de Estado de Bem Estar Social construído desde a Constituição de 1988, mas essa destruição também não contribuirá em nada para a retomada do crescimento. Perguntamos: durante os dois anos de governo Temer nos quais o ajuste fiscal foi imenso e se aprovou a reforma trabalhista com a promessa de que seriam criados empregos, tivemos crescimento econômico? A resposta é negativa, e nem o déficit público foi evitado, durante dois anos o governo Temer ficou com déficits de 180 bilhões ao ano, os cortes nas políticas públicas foram imensos. O teto de gastos foi aprovado, a reforma trabalhista também, mas sem o protagonismo do Estado para retomar o crescimento, o setor privado não reagiu com novos investimentos.

Na contramão da crise para os trabalhadores, um setor da Economia lucrou mais na crise do que antes dela, os lucros dos bancos sempre estão crescendo, mas a pobreza está aumentando, o Brasil voltou ao mapa da fome do ONU, o desemprego se manteve bem alto, em 13%, e o número de empregos precários sem carteira assinada superou o número de empregos formais (pois esse era o objetivo da reforma trabalhista mesmo). Todavia a Economia não reagiu, e não reagirá enquanto o Estado não intervier.

O protagonismo do Estado não é uma característica apenas dos regimes socialistas, no Capitalismo isso não é novidade também. John Maynard Keynes lançou as bases e operou o “New Deal” que tirou os Estados Unidos da Depressão de 1929 com pesados investimentos estatais e com a indução ao crescimento pela ação do Estado. Desde então e até hoje o Capitalismo lança mão de um protagonismo forte do Estado para reativar a Economia, especialmente em momentos de crise.

Hoje o país que mais cresce no mundo e se tornará a principal potência em poucos anos é a China. Esse país abriu espaço para empresas privadas, mas mantém o Estado como planejador e principal ator da Economia chinesa. É a planificação econômica, o protagonismo dos investimentos e das empresas estatais que garantem o dinamismo da potência que em breve superará os Estados Unidos. Está na hora de observar os projetos que dão certo no mundo e estão em ascensão, e com certeza o projeto rentista e financeiro que apenas aprisiona o Estado para garantir lucros para o capital improdutivo não é o caminho vitorioso hoje no planeta.

Não é possível debater políticas públicas de Educação, de Saúde, de Assistência Social e outras sem enfrentar o debate do Estado, seu papel, seu protagonismo, seu tamanho e responsabilidades, e a viabilidade dessas políticas sociais depende da reorientação do aparato estatal para atender aos interesses das maiorias e deixar de ser prisioneiro de interesses privatistas e do capital improdutivo.

Parece-nos que o discurso do novo governo de que deve-se combater as ideologias, de que se terá uma política externa sem viés ideológico, que se terá uma economia sem viés ideológico, cabe como uma crítica ao próprio enunciador de tal discurso tosco. Atacar a China como foi feito pelo novo chanceler e pelo novo presidente é um comportamento puramente ideológico de direita, pois a China é o principal parceiro comercial do Brasil e esse comportamento vai apenas prejudicar os interesses econômicos nacionais. Ou o Brasil prejudicará seus interesses econômicos apenas para satisfazer um alinhamento aos Estados Unidos numa guerra fria extemporânea e sem sentido? Em outra frente, o Brasil provocará um estremecimento sério com os países árabes apenas para fazer um “mimo” para os interesses imperialistas de Israel, com a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém? A comunidade árabe consume produtos brasileiros, especialmente do agronegócio, numa proporção muito superior às trocas com Israel, e essa comunidade já anunciou que fará retaliações econômicas caso o fundamentalismo brasileiro se imponha sobre os interesses econômicos.

Essa dubiedade, com forte componente ideológico, guardou o pior desastre para ser anunciado depois da posse, com a proposta de extinção das vinculações constitucionais para as políticas públicas. E trata-se de mais uma proposta que não foi apresentada pelo então candidato a presidente Bolsonaro, os eleitores não tomaram conhecimento dessa proposição até ontem. Usando um discurso antipolítico e contra os “corruptos que afundaram a Economia brasileira”, o ministro da área apresentou dia 2 de janeiro sua proposta de que o Orçamento deve deixar de ter percentuais constitucionais fixos para Educação, Saúde, Assistência, Previdência, e que deve agora ser inteiramente decidido pelo congresso, para satisfazer aos interesses dos parlamentares (favor assistir o discurso de posse de Paulo Guedes). Se hoje os recursos para essas políticas públicas são insuficientes e a população clama por melhorias nos serviços, imaginem quando a Constituição for desfigurada os recursos mínimos deixarem de ser obrigatórios? Será o caos para os mais pobres, para os trabalhadores. Ou seja, mais uma dubiedade e uma contradição que deve ser desvelada. A situação realmente é séria.

*Penildon Silva Filho é doutor em educação e professor da Ufba

Classificação Indicativa: Livre

FacebookTwitterWhatsApp

Tags