Educação

O armamento da população e a Educação

Imagem O armamento da população e a Educação
Bnews - Divulgação

Publicado em 17/01/2019, às 17h52   Penildon Silva Filho*


FacebookTwitterWhatsApp

Na última terça-feira, dia 15 de janeiro, o presidente Bolsonaro assinou o decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no país, e representantes do governo deram declarações de que o porte de armas (que é diferente da posse) será flexibilizado em medidas provisórias a serem enviadas ao Congresso. Agora, cada cidadão poderá ter pelo menos quatro armas de fogo, e poderão levar esses armamentos para o trabalho legalmente em algumas circunstâncias. A grande “inovação” do decreto diz respeito à mudança de paradigma na definição de quem pode ter acesso às armas, sobre a comprovação de necessidade de se ter uma arma na hora de registrá-la. Antes, o cidadão apresentava seus motivos à Polícia Federal e a instituição julgava se havia de fato a necessidade. Agora, alguns grupos terão acesso automaticamente, tais como: agentes públicos, inclusive os inativos, da área de segurança pública; integrantes das carreiras da Agência Brasileira de Inteligência; da administração penitenciária; do sistema socioeducativo, desde que lotados nas unidades de internação; militares ativos e inativos; residentes em área rural; e residentes em áreas urbanas de unidades federativas que tinham, em 2016, taxas acima de dez homicídios por cem mil habitantes conforme os dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Por esse último critério hoje todos os Estados e os centros urbanos de médio e grande porte se enquadram nessa situação, e isso significa que todos terão automaticamente o direito de ter armas. 

Em entrevista à BBC Brasil, o professor João Paulo Martinelli, criminalista do curso de direito penal do IDP-São Paulo, corrobora com essa interpretação. Segundo ele "Até hoje o interessado teria que demonstrar a efetiva necessidade para a aquisição de arma de fogo. Agora foram inseridas hipóteses em que há presunção da necessidade. Se o requerente se enquadrar em alguma delas, não será necessário demonstrar a necessidade. São muitos grupos. A regra, que era não poder ter arma de fogo, passou agora a ser exceção, pois é muito fácil se enquadrar nessas hipóteses. Como fiscalizar essa posse?" 

Para os pretendentes a possuir uma arma com crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência em casa será preciso apenas fazer uma declaração de que há um lugar seguro dentro da residência, como um cofre, para as armas ficarem fora do alcance desses grupos de risco, uma grande temeridade e até uma hipocrisia, pois exporá nossas crianças e adolescentes ao risco constante. Observemos a quantidade de pessoas com habilitação para dirigir carros que provocam mortes e acidentes com sequelas no trânsito das cidades e nas estradas, trata-se de pelo menos 50 mil pessoas por ano mortas assim. Constatamos que o argumento de que basta a pessoa estar habilitada tecnicamente e não ter antecedentes criminais ou de outros  delitos é um sofisma e uma hipocrisia dos que argumentam que apenas pessoas “capacitadas” terão acesso a armas letais. Se isso fosse verdade, não teríamos a violência no trânsito que já temos hoje.

Mas o que isso tem a ver com o debate educacional e a vida nas escolas e universidades brasileiras? Essa medida não seria para diminuir a criminalidade em áreas de conflagração, armando a população obediente às leis, “pessoas de bem” como muito se apregoou no discurso eleitoral, extremamente ideológico e longe da realidade dos defensores da indústria de armamentos? As escolas e universidades não estariam longe desse debate, sem precisar se incomodar com uma decisão que seria apenas do “âmbito privado” daqueles que decidissem se armar? Num momento em que as ações das empresas fabricantes de armas explodem em mais de 450% em nosso país desde outubro do ano passado e que várias empresas estrangeiras anunciam o interesse em se estabelecer no Brasil, almejando aumentar seus lucros com a nova postura governamental, é fundamental avaliarmos o impacto dessa medida sobre a vida de nossas crianças, adolescentes e jovens, além de professores e outros profissionais da Educação a partir da nossa experiência e da experiência em outros países.

Em 7 de abril de 2011, um homem de 23 anos de nome Wellington Menezes de Oliveira, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, entrou em sua ex-escola na Zona Oeste do Rio de Janeiro, bairro de Realengo, atirou contra alunos em salas de aula lotadas, foi atingido por um policial e depois se suicidou. O crime foi por volta das 8h30 da manhã.

Ele não tinha antecedentes criminais, tinha família, vivia normalmente em endereço fixo, era reservado e nunca se envolvia em brigas ou condutas ilegais, teve acesso à escola com certa facilidade por ser ex-aluno e conhecido da comunidade, um típico “homem de bem”. Logo após o incidente, 11 crianças tinham morrido (10 meninas e 1 menino) e 13 ficaram feridas (10 meninas e 3 meninos). As crianças tinham idades entre 13 e 16 anos; como foram em sua maioria meninas assassinadas é importante salientar essa misoginia, do ódio às mulheres que tende a potencializar o feminicídio no Brasil de hoje com a liberação das armas de fogo. Feminicídio é o assassinato de pessoas apenas por serem mulheres, e esse caso de 2011 foi exemplar, assim como os assassinatos diários de mulheres por companheiros ou ex-companheiros que não se conformam com o fato de algumas trabalharem, outras terem decidido terminar os relacionamentos ou simplesmente não quererem permanecer em casa, sendo apenas uma “dama recatada e submissa do lar”. As testemunhas da chacina de Realengo no Rio informaram que o assassino se referia às meninas como “seres impuros” e posicionava a arma em suas testas para matá-las. Os meninos ele tentava acertar nos braços e nas pernas. Precisamos avaliar como os homens machistas e violentos usarão essa facilidade agora de adquirir e usar as armas de fogo, e combater essa possibilidade.

Quando invadiu a escola, Wellington portava dois revólveres calibre 38 e equipamento para recarregar rapidamente as armas, comprados com ajuda de duas outras pessoas no mercado clandestino de armas. Esse mercado deve ser muito ampliado agora com a colocação de mais armamento nas mãos da população civil. Segundo testemunhas, Wellington caminhou no dia do atentado calmamente para a escola, entrou no colégio dizendo que faria uma palestra, subiu as escadas e procurou as salas de aulas cheias. 

Isso não teria acontecido se houvesse um controle maior sobre armas, que podem cair na mão do crime organizado facilmente mas também ser principalmente usadas pelos “homens de bem”, pessoas inseridas socialmente na sociedade que por frustrações, acessos de machismo, homofobia e racismo podem usar as armas para afirmar sua pretensa superioridade ou compensar frustrações e recalques. 

Vejamos agora o que deve acontecer no Brasil observando outro país que já tem a liberação de armas de forma ampla, os Estados Unidos. Em abril de 2018 foi publicado estudo pela "Revista de Estudos da Criança e da Família" sobre ataques a tiros em escolas dos EUA, demonstrando que os mesmos estavam se multiplicando rapidamente, matando mais pessoas nos últimos 18 anos que em todo o século XX.  O autor principal desse estudo, Antonis Katsiyannis, da Clemson University, apontou que entre 2000 e 2018 foram 66 mortes em 22 ataques a tiros em massa em escolas, e o quantitativo foi mais alto que os 55 mortos em 22 ataques nas seis décadas de 1940 a 1999.
Antonis Katsiyannis nos informa que "em menos de 18 anos, já vimos mais mortes relacionadas a ataques a tiros em escolas do que em todo o século XX", disse "Uma tendência alarmante é que a ampla maioria dos atiradores do século XXI eram adolescentes. Isso sugere que hoje é mais fácil para eles terem acesso a armas e que eles sofrem mais frequentemente de deficiências mentais ou capacidades limitadas de resolução de conflitos". O estudo indica que o problema virou uma epidemia, um caso de Saúde Pública. Essa constatação só fortalece nossa percepção de que deveríamos no Brasil encarar uma série de problemas como de Saúde e de Educação, ao invés de tratá-los pelo prisma da repressão violenta. Mas essa nossa percepção não dá lucros para a indústria de armas, e por isso não ocupa espaços na mídia dependente de anúncios comerciais.

Na nação que se notabilizou por defender essa suposta liberdade para se armar, mas na verdade significou a liberdade de matar e morrer cada vez mais sem ter diminuído os índices de violência, o impacto da liberação de armas se faz muito presente no ambiente escolar, que deveria ser o espaço de acolhimento, da paz, da formação em direitos humanos e para o exercício da convivência com os diferentes e em Sociedade. Infelizmente nos Estados Unidos a

Escola é cada vez mais o espaço do medo, da intolerância, da falta de capacidade de viver em paz. 
No Instituto Politécnico da Virgínia, em 16 de Abril 2007, houve 32 mortos pelo estudante sul-coreano Seung-Hui Cho, vítima de bullying. O estudante não tinha antecedentes criminais, tinha família e estudava na mesma escola das vítimas. Na Escola primária de Sandy Hook, Newtown, em 14 de Dezembro de 2012 foram 27 mortos, mais o atacante Adam Lanza. Na Escola de Bath, Michigan, em 18 de Maio de 1927 foram 25 mortos por Andrew Kehoe, que explodiu a escola, matando 18 alunos e mais sete pessoas, com mais de 60 pessoas feridas. Na Universidade do Texas, em Austin, no 1º de Agosto de 1966, foram 18 mortos por Charles Whitman, que escalou uma das torres do campus da Universidade do Texas e começou a disparar aleatoriamente. Na Escola Marjory Stoneman Douglas, Parkland, em 14 de Fevereiro de 2018 foram 17 assassinados por Nikolas de Jesus Cruz, de 19 anos, aluno daquela escola secundária da Florida. No Liceu de Columbine, Littleton, 20 de Abril de 1999 foram 12 alunos e um professor assassinados, depois os estudantes que promoveram a matança, de 17 e 18 anos, se suicidaram. Esse talvez seja o crime dessa natureza mais divulgado e que estimulou um documentário muito interessante de Michael Moore, “Tiros em Columbine”. 
No Liceu de Red Lake, Minnesota, em 21 de Março de 2005, foram nove mortos. O assassino foi Jeff Weise, de 16 anos, matou os avós a tiro, na sua casa, e seguiu para a escola, numa reserva índia do Minnesota. Pouco passava do meio-dia quando entrou no liceu e matou a tiro cinco alunos, um professor e um segurança, suicidando-se em seguida.

Vários colegas garantiram que sorria enquanto disparava. Na Universidade de Roseburg, Oregon, em 1º de Outubro de 2015 foram nove mortos, o assassino foi um aluno, Chris Harper-Mercer, de 26 anos, que matou oito colegas e um professor. Na Universidade Católica de Oakland, Califórnia, 2 de Abril de 2012 foram sete mortos por Ono Goh, outro ex-aluno de 43 anos, entrou na faculdade, fez a recepcionista refém e depois atirou nos alunos. Na Universidade de Iowa, em 1º de Novembro de 1991 foram seis mortos por Gang Lu, um aluno de doutorado da universidade. Outro “homem de bem”...  Na Universidade de Santa Monica, Califórnia, em 7 de Junho de 2013 foram seis mortos; na Escola de Stockton, na Califórnia, em 17 de Janeiro de 1989 foram cinco mortos (mais o atacante); e na Escola de Westside, Jonesboro, em 24 de Março de 1998 foram 5 mortos, sendo que nesse caso foram dois adolescentes de 11 e 13 anos que mataram os colegas. Na Escola de Wolfrock, em Lancaster, no dia 2 de Outubro 2006 foram cinco mortos, e o assassino, Charles Roberts, tinha 32 anos e era motorista de caminhão na região. Ele entrou na Escola e foi para a única sala de aula da escola frequentada pela comunidade amish local, dispensou os rapazes e as outras pessoas adultas, amarrou os pés das meninas, com idades entre os seis e os 14 anos, e começou a disparar, apontando a arma à cabeça de cada uma, e cinco faleceram. Suicidou-se quando a polícia chegou ao local. Esses e outros casos podem ser pesquisados no link: https://www.publico.pt/2018/02/15/mundo/noticia/os-20-piores-tiroteios-em-escolas-e-universidades-norteamericanas-1803207 e no link: https://internacional.estadao.com.br/blogs/radar-global/os-piores-ataques-a-tiros-em-universidades-e-escolas-dos-eua/ 

Não foram casos provocados por pessoas com antecedentes criminais ou ligadas ao narcotráfico, terrorismo ou qualquer organização criminosa, foram pessoas que, se não tivessem acesso às armas, não cometeriam os crimes. Já existe um crescente movimento nos Estados Unidos procurando aumentar o controle sobre armas ou banir a circulação das mesmas, mas o lobby dessa indústria, que financia candidatos a deputados, senadores e presidentes, impede que sejam tomadas medidas racionais em defesa das pessoas e de sua Saúde. 

No Brasil também a indústria de armamentos financiou vários políticos que hoje estão no poder, inclusive o presidente e o chefe da casa civil, que defendem os interesses de seus financiadores, além de terem uma posição política e ideológica do confronto, da eliminação dos adversários, da repressão, da afirmação de uma masculinidade exacerbada e garantida por armas e violência (algo muito démodé mas ainda que resiste em amplos setores), e fundamentalmente amparados por uma estratégia política de criar medo e insegurança como forma de garantir a manipulação da Sociedade, para que essa abra mão de seus direitos civis e políticos ou não lute pelos direitos sociais e encontre uma saída efetiva para a violência, gerando mais insegurança e mais medo como estratégia de dominação. A liberação de armamentos não vai gerar mais segurança, pelo contrário, gerará mais mortes, medo e insegurança, fortalecendo a espiral do controle da Sociedade do Medo, além de mais lucros obviamente.

Está muito claro que a Educação, da creche à pós-graduação, tem um papel muito importante na disputa de valores nessa Sociedade, corroída pelo medo e pelo pavor que isola os indivíduos, provoca um embotamento na percepção da realidade e leva diferentes grupos a criarem e extremarem seus ressentimentos e ódio aos diferentes, vistos como ameaças. Nos últimos anos assistimos no Brasil ao aparecimento e ao fortalecimento de aparelhos ideológicos que reproduziram esse discurso do ódio contra as mulheres, contra os pobres, contra os negros, contra os índios, LGBTs e outros, basta ver os índices de violência contra esses grupos, e também discursos de busca da prosperidade pessoal através do individualismo, da ganância e da ostentação financeira em todos os setores. Esses aparelhos são meios de comunicação, uma parcela das igrejas (falo parcela pois muitas comunidades religiosas mantem-se ligadas à solidariedade e em busca da Paz), corporações e instituições estatais, movimentos golpistas, comunidades virtuais como redes sociais, estas últimas patrocinadas a partir do exterior. A Escola pode e deve ser o contraponto a essa onda da violência, do medo e da sociedade armada; a disputa cultural (Cultura no sentido amplo)é essencial para nossa Sociedade avançar e os educadores têm papel destacado nessa disputa.

Hoje estamos assistindo a uma invasão de dezenas de terras indígenas e ao assassinato de lideranças desses povos depois que o atual governo deu a senha para atacar seus direitos, e infelizmente não temos na Sociedade uma indignação à altura das atrocidades feitas contra os índios. Esse exemplo de violência se coloca ao lado de diversos que se multiplicam, acompanhados da indiferença da população e do egoísmo. Pode ser a expulsão e perseguição à população de rua em São Paulo; pode ser o assassinato de travestis nas cidades brasileiras; pode ser a caça aos trabalhadores sem-terra que procuram apenas a oportunidade de produzir e não morrer de fome; podem ser as manifestações sociais que reivindicam direitos, como recente foi a passeata do Movimento Passe Livre duramente reprimida pela PM de São Paulo. E toda essa violência e indiferença é acompanhada da campanha pelo armamento da Sociedade, que procura inclusive criar uma impressão falsa, uma confusão entre crimes comuns e movimentos sociais e grupos sociais desprivilegiados. 

A Educação formal tem a missão de defender outros valores, de criar uma outra sociabilidade, compromissada com os valores civilizatórios já alcançados em diversos países do mundo e aqui também com a Constituição Cidadã, os direitos de diferentes dimensões, os direitos civis, políticos, individuais, sociais, econômicos, culturais, os direitos ambientais, os direitos das diferentes etnias, de gênero, raciais. Para isso precisamos afastar a política do medo que gera o ódio e a política da intolerância que gera violência, ao mesmo tempo que temos que defender a vida de nossas crianças e jovens, além de quem trabalha nas escolas. Por tudo isso o armamento da população é incompatível com Escola, com Civilização, com Solidariedade Social e principalmente incompatível com Segurança.

*Penildon Silva Filho é doutor em educação e professor da Ufba. Escreve para o BNews às quintas-feiras.

Classificação Indicativa: Livre

FacebookTwitterWhatsApp

Tags