Educação

Os movimentos sociais, a Educação e a ameaça do fechamento das escolas do MST

Imagem Os movimentos sociais, a Educação e a ameaça do fechamento das escolas do MST
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Publicado em 24/01/2019, às 19h00   Penildon Silva Filho*


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A relação entre os movimentos sociais e a Educação pode se dar de diferentes maneiras. Uma relação mais imediata é o papel que os movimentos sociais têm na conquista da Educação oferecida pelo Estado como direito social, pela ampliação do acesso à Escola, ou a reivindicação por mudanças no currículo para que haja uma epistemologia diferente da então vigente, ou por ações afirmativas com o intuito de diminuir as desigualdades na Educação, que são advindas das desigualdades na Sociedade e reproduzidas por uma estrutura e uma cultura comprometida com a estrutura de classes e as diversas discriminações.

Mas a relação entre movimentos sociais e Educação pode ser dar de outra forma também, os movimentos podem ser espaços educativos, formativos, de criação de novos valores, de uma nova cultura, de um novo ethos na Sociedade, de uma contra hegemonia. A Cultura de uma Sociedade não se mantém estática, mas está em constante mutação, fusão, “bricolagens”, e essa mudança depende da intencionalidade e da ação dos diferentes atores sociais, inclusive dos movimentos sociais.

Não é apenas o estado que forma as pessoas, a formação de todos ocorre desde o nascimento no meio familiar, passa pelos grupos sociais, pelas escolas, pelo trabalho, pelas diversas esferas de sociabilidade, como a religião, a arte, os meios de comunicação, o esporte e também nos movimentos sociais.

O desenvolvimento da sociedade civil brasileira e dos movimentos sociais gerais foi também acompanhado pelos movimentos em defesa da Educação. No primeiro momento da colonização do Brasil, a Educação ficou sob responsabilidade e monopólio da Companhia de Jesus (os Jesuítas), de 1549 até 1772, quando foram expulsos pelo Marques de Pombal. O Brasil tinha sua imensa maioria de índios, que eram catequizados/educados pela Igreja para serem dóceis ao trabalho escravo dos colonizadores, e de negros trazidos à força da África para serem escravizados e permitir altos lucros ao tráfico e à lavoura açucareira, e mais tarde à mineração. Logo a única ação educativa engendrada era realmente a catequese para esses setores majoritários. A Educação para os filhos da classe de proprietários na colônia era feita em colégios particulares dos jesuítas que cobravam mensalidades. Ao lado disso, os jesuítas recebiam terras da Coroa para explorar, constituindo-se em atividades também lucrativas. Mesmo assim, nessa época havia fugas e a resistência de índios e negros contra a catequese e a escravidão.

Apenas em 1808 a situação muda um pouco com a transferência da família real portuguesa para o Brasil, a elevação do Brasil à condição de Reino Unido e a abertura dos portos às nações amigas, entenda-se a Inglaterra. As necessidades da corte em terras brasileiras levaram ao aparecimento de faculdades isoladas de cirurgia e depois medicina, de engenharia militar, de direito. Percebe-se o interesse com a Educação da elite, enquanto que os escravos, os pequenos comerciantes e pessoas livres ficaram à margem de qualquer política pública para a Educação.

O Império não mudou quase nada em relação à colônia, formalmente a legislação estabelecia que a obrigação da escola nos níveis elementares era das províncias, enquanto o Ensino Superior era do poder central. Como este não repassava recursos necessários às províncias, a situação da Educação pública elementar continuou praticamente arrasada, com exceção apenas do Colégio Pedro II, a partir de 1850, no Rio de Janeiro, capital da época, que recebia recursos do Governo Imperial. Os Liceus e Ginásios nas províncias, criados através de leis, não lograram êxito, e a imensa maioria da população continuou excluída da Educação formal, uma vez que a os filhos dos grandes proprietários frequentavam os colégios particulares.

Escravos, pequenos comerciantes e assalariados urbanos de uma incipiente classe média não tinham espaço de participação social e política e muito menos de inserção social pela Educação. Essa situação demonstra a longa tradição brasileira de permitir uma escola privada para elite e não priorizar a escola pública para a maioria do povo, além de evidenciar as estreitas relações entre as condições da Educação e a estrutura da Sociedade em geral, pois a precariedade da Educação refletia a sociedade escravocrata, agro-exportadora e autoritária em que vivíamos. A sociedade brasileira continuava a ser uma sociedade de analfabetos em sua quase totalidade.

Os movimentos pela Educação começam efetivamente apenas com a industrialização e a urbanização, em fins do século XIX e início do século XX. Nota-se a criação do Movimento da Liga contra o analfabetismo, em 1915; do Movimento das Ligas Nacionalistas, em favor do voto secreto e da expansão da Educação pública, em 1917; e da Criação da Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1924. Os anarquistas imigrados da Europa que se estabelecem nos principais centros urbanos, especialmente São Paulo, deram também uma grande contribuição no movimento pela Educação no início do século XX. Coerentes com sua repulsa ao aparelho estatal, “repressor e burguês” no seu entendimento, eles investiram nas Escolas Modernas independentes, que preconizavam o racionalismo, um ensino desvinculado da religião, a participação dos meninos e meninas na escola e a Educação para a libertação e o respeito pela liberdade alheia. Podemos dizer que se tratavam de precursores de outras iniciativas de Educação não formal por movimentos sociais.

Essas escolas eram bem divulgadas, até porque os anarquistas, maioria no movimento sindical da época e responsáveis pela fundação de sindicatos e implementação de greves, sempre levantaram a bandeira de uma Educação libertadora como essencial para os planos de transformação social. Como eram escolas autônomas, precisavam de contribuição dos pais dos alunos. Organizaram ainda uma “Universidade Popular”, de caráter livre, com vários cursos abertos e de curta duração sobre vários temas. A curta duração era para permitir que os trabalhadores pudessem participar da iniciativa.

Os socialistas, em minoria no movimento sindical até a segunda década do século XX, também levantaram a bandeira da Educação, reivindicando uma responsabilização do Estado com a Educação pública, gratuita e laica, pela sua ampliação, preconizando o aumento da remuneração dos professores, pela participação de ambos os sexos na escola e a multiplicação de escolas profissionalizantes para ambos os sexos. Ao contrário dos anarquistas, disputavam as verbas públicas para suas bibliotecas populares e operárias e exigiam a responsabilização do Estado para com a Educação.

O Movimento dos Pioneiros da Educação (1931) articulou intelectuais que desde o início do século XX implementavam reformas em defesa e pela expansão do ensino público, gratuito e laico. O Movimento lançou um manifesto e divulgou o ideal da Educação como pilar da verdadeira democracia. Anísio Teixeira, o principal representante desse movimento, figura importante na Educação da Bahia e do Brasil, que criou a Universidade do Distrito Federal em 1935, e tanto defendeu o ensino público em nosso país, era adepto da filosofia de John Dewey, talvez o teórico mais citado da Educação nos Estados Unidos, que preconizava que as pessoas são capazes de aprender tudo, e que através da Educação formal é possível democratizar a ascensão social dos indivíduos e fortalecer a democracia.

A partir desse momento, houve o início do embate histórico entre os defensores da Educação pública e os defensores do ensino privado, nesse caso pela Liga de Educação Católica (LEC). Esse embate irá se repetir na tramitação da primeira Lei de Diretrizes da Educação Nacional (LDBEN), entre 1947 e 1961.

Até 1961 a LDBEN não pôde ser votada pela disputa entre esses dois projetos. Do lado privatista se aliavam Gustavo Capanema e Carlos Lacerda. Fernando de Azevedo, eminente sociólogo que havia feito o Dossiê do Estado de São Paulo que deu origem ao movimento pela Universidade de São Paulo, articulou um extenso manifesto de intelectuais e autoridades pela Educação pública no país e pela imediata aprovação de uma lei que estabelecesse as responsabilidades do poder público.

Nesse intervalo entre o fim do Estado Novo e 1964, o populismo abre brecha para as reivindicações populares. Num livro que foi a sua tese, Marília Pontes Sposito (1984) faz uma pesquisa sobre a expansão das escolas no Estado e na cidade de São Paulo. No núcleo urbano mais dinâmico do país e com o maior crescimento industrial, que atraía grandes contingentes de imigrantes, a população sofria com a precariedade dos bens públicos, como habitação, transporte e Educação. O aparelho estatal municipal carecia de recursos mínimos para a ampliação da oferta, que já era ínfima, e tornara-se crítica com as migrações internas da época. Nesse período, a ascensão de líderes populares, a exemplo do ex-prefeito Jânio Quadros, dependia do atendimento das reivindicações por mais escolas primárias, mais ginásios, ginásios noturnos, mais professores, o que foi atendido paulatinamente devido à pressão de movimentos sociais.

Outros movimentos sociais surgiram na década de 1960, de caráter mais autônomo, com a intenção de alfabetizar a população brasileira, como o Movimento de Educação Básica (MEB), e Movimento de Consciência Popular (MCP), inspirado pelo método de alfabetização de adultos de Paulo Freire. O método de Freire foi depois adotado pelo governo João Goulard, mas seu trabalho foi interrompido pelo golpe civil-militar de 1964, que o classificou de “subversivo”, pois ensinava a ler dentro do contexto social dos alunos e discutindo os problemas daquela cultura local.

Os Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE) são uma experiência singular. Vários artistas foram lançados pelas suas atividades, e os CPCs se constituíam em espaços de Educação política e agitação cultural para dentro e fora das universidades, enquadrados na estratégia de fortalecer uma consciência nacional-desenvolvimentista com a população e voltar os universitários para uma consciência dos problemas nacionais e sociais. Os CPCs estavam inscritos na verdade num movimento mais amplo, o movimento pela Reforma Universitária. A visão dos estudantes propunha uma Universidade aberta ao povo, a serviço do povo e de suas necessidades, com vagas para todos, exigindo o tempo integral de dedicação ao trabalho dos professores, o fim da cátedra, a adoção dos departamentos, a assistência ao estudante e uma visão humanista de formação, que desse aos estudantes uma “visão integral da realidade nacional”.

Após o AI-5 em 1968 e um período de maior repressão, a reorganização dos movimentos sociais na década de 1970 criou um movimento sindical fortalecido e em novas bases. Os sindicatos municipais, estaduais e nacionais de professores e de trabalhadores na Educação provocaram uma grande mudança na relação dos governantes com esse setor. Indubitavelmente, esses movimentos foram e continuam sendo essenciais à defesa da Educação pública.

A Central de Movimentos Populares (CMP), que tenta abarcar uma série de movimentos a partir de 1991, vêm mantendo suas reivindicações em favor da Educação também, ao lado da Coordenação Nacional de Associação de Moradores (CONAM), que representa outro segmento no movimento de bairros. A luta no local de moradia e no próprio bairro tem significado avanços na concretização do direito à Educação.

Ainda há organizações e iniciativas que não se configuram como movimentos sociais, mas servem de espaços de encontro e articulações de movimento sociais ligados à Educação, como o Fórum em Defesa da Educação Pública, a Campanha em Defesa da Educação Pública, organizada pelo Congresso Nacional de Educação (CONED) e o Fórum Mundial de Educação. Estas tiveram uma atuação destacada durante o período Constituinte (1987-1988) e após ele, na década de 1990.

Com esse histórico, os movimentos sociais contribuíram para a ampliação da oferta da Educação, para uma transformação e atualização de seus currículos, para a adoção de ações afirmativas e também para criar e estimular pedagogias diferenciadas e libertadoras. Nesse contexto, é inaceitável a ameaça de fechamento de escolas do Movimento dos Sem Terra pelo atual governo. O senhor Luiz Antônio Nabhan Garcia, nomeado recentemente por Jair Bolsonaro como secretário Especial de Assuntos Fundiários – responsável pela reforma agrária -, deu declarações à Veja no dia 16 de janeiro de que pretende fechar as escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O representante do setor ruralista também utiliza o discurso surrado e irreal de que o MST é um movimento terrorista e que deve ser banido do Brasil. Infelizmente o que mais se aproxima de ser uma organização terrorista no Brasil que são as milícias, que praticam a extorsão, ameaças e grilagem em várias, além de assassinatos diversos, a exemplo do assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Silva, mas não há indicação de que essas organizações criminosas das milícias sejam reprimidas, parecem não constituir uma preocupação.

A rede de escolas do MST está ao lado de 96 agroindústrias, 1.900 associações de trabalhadores rurais e mais de 350 mil famílias assentadas desse movimento social, sendo que o MST tem hoje um foco de atuação na defesa da agroecologia, do manejo sustentável da terra e no consumo consciente como parte da segurança alimentar.

Segundo dados do movimento, foram criadas no Brasil cerca de 1.500 escolas para jovens de 7 a 14 anos – 1.100 delas já reconhecidas pelos conselhos estaduais de Educação e cultura. Elas têm matriculadas em torno de 200 mil alunos e 4 mil professores, além dos 250 educadores que trabalham nas Cirandas Infantis – Educação de crianças até seis anos ou na faixa da alfabetização. O MST também tem em parceria 320 cursos divididos em 40 instituições de nível fundamental, médio, técnico, superior e Educação de jovens e adultos (EJA). Algumas universidades baianas têm cursos do Pronera que mantêm relação com o MST e outros movimentos de trabalhadores rurais.

Segundo Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, “as escolas do MST não só são importantes porque atendem uma quantidade imensa de estudantes, como também atingem uma população de crianças, adolescentes, jovens e adultos em situação de vulnerabilidade, que muitas vezes o poder público não alcança e até criminaliza.” Ela acrescenta que “Além disso, o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas do MST é um trabalho de qualidade ímpar: há preocupação sensível com a inclusão, com as diversidades e com uma pedagogia de qualidade”.

Precisamos de iniciativas de Educação como essas do MST, que incluam os setores mais excluídos, que trabalhem a agroecologia, que desenvolvam pedagogias inovadoras e críticas. Infelizmente essa declaração do governo federal de ataque a experiências educativas importantes se coloca ao lado de outras contrárias ao campo da Educação e dos profissionais da Educação no Brasil, como a proposta de denunciar e perseguir professores pelo projeto da Escola da Mordaça.

*Penildon Silva Filho é professor da Ufba e doutor em Educação. Escreve para o BNews às quintas-feiras

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