Política

Reflexões sobre o discurso de posse e o projeto político do governo Bolsonaro: para onde o governo aponta?

Imagem Reflexões sobre o discurso de posse e o projeto político do governo Bolsonaro: para onde o governo aponta?
Pesquisadora analisa o cenário que levou Bolsonaro ao poder  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 29/01/2019, às 23h12   Priscila Santana*


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No dia 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro (PSL) tomou posse como presidente do Brasil, figurando na lista da história presidencial do país como o primeiro de extrema-direita eleito pelo voto direto. Eleito em outubro de 2018, num cenário nacional marcado pela manutenção de altas taxas de desemprego, e por uma generalizada crise política, a qual foi se acumulando e teve o seu estopim a partir da destituição de Dilma Rousseff em 2016, o atual presidente ganhou boa parte do seu eleitorado apresentando-se como o “salvador da pátria corrupta”. Vale lembrar que essa não é a primeira vez na história da política brasileira – principalmente em conjunturas de profunda crise social – que surgem figuras (normalmente inexpressivas em termos de biografia política) pegando carona no tema do combate implacável à corrupção. 

Em outros momentos turbulentos da história do país como nos anos 1960, o povo elegeu Jânio Quadros e a sua apelativa “vassoura” que acompanhava o jingle “varre, varre, vassourinha! Varre, varre a bandalheira...”, e deu no que ficou registrado na história: a eleição de um político “outsider” ocupado com as rinhas de galo e as corridas de cavalos, enquanto os problemas socioeconômicos massacravam milhões de trabalhadoras e trabalhadores. Na ditadura militar a tônica foi a mesma: militares implacáveis no combate à corrupção. Hoje, mais de 30 anos depois do fim da ditadura militar, boa parte da sociedade brasileira desconhece completamente que a dívida externa do Brasil explodiu durante aquele período. A dívida externa, que em 1964 (início da ditadura militar) era de US$ 3 bilhões saltou para US$ 105 bilhões em 1985 (fim da ditadura militar), e até hoje pouco se sabe sobre esse crescimento espantoso do endividamento naqueles anos de controle absoluto do Estado sobre as informações. Outro exemplo mais recente, que seguiu a mesma linha, foi a eleição de Collor em 1989, o obstinado caçador de corruptos e marajás, que, diga-se de passagem, em companhia de José Sarney, foram os únicos ex-presidentes do Brasil que estiveram na posse de Bolsonaro.

O fato é que Jair Bolsonaro não assumiu à presidência imune aos escândalos políticos, na reta final da eleição foi acusado de estar envolvido com alguns empresários em estratégias de divulgação em massa de notícias falsas (fake news)  nas redes sociais, e poucas semanas antes da sua posse, veio à tona um escândalo  de movimentações financeiras suspeitas envolvendo a família Bolsonaro e o policial militar da reserva Fabrício Queiroz, amigo da família e ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro (filho do atual presidente e eleito senador no Rio de Janeiro). Na última semana, para completar a coletânea de escandâlos, o nome de Flávio Bolsonaro aparece agora ligado ao grupo miliciano conhecido como Escritório do Crime , grupo suspeito de envolvimento no assassinato da ex-vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes, em março do ano passado. Apesar de tais episódios estarrecedores, no discurso de posse presidencial houve menção ao suposto empenho em “libertar o país da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”. 

Deixando um pouco de lado o tema da corrupção e as mencionadas contradições entre o discurso e a conduta do paladino da moral, assunto que tem ocupado parte substancial do jornalismo nacional e internacional, interessa-me trazer nos próximos parágrafos algumas reflexões sobre os rumos da economia que estão sendo apontados pelo atual governo federal. Para isso, tomarei como elementos de reflexão o discurso de posse e os primeiros sinais do governo. 

O discurso de posse, apesar de extremamente curto, algo esperado tendo em vista tanto as limitações cognitivas de Bolsonaro quanto as disputas que estão por trás do projeto político que ele representa, ainda assim revela muito sobre a orientação político-econômica do atual governo. Sobre essas duas questões – o perfil do discurso de posse e a natureza do projeto político-econômico – é importante apontar o seguinte: 1) um discurso político, por mais simplório e confuso que pareça, é resultado de um processo racional, ou seja, tem sempre um conteúdo (uma mensagem) direcionado para determinadas classes e frações de classes da sociedade; 2) as disputas entre as principais forças políticas (militares, ultra-neoliberais e conservadores) que compõem o governo Bolsonaro têm dificultado a formação de um consenso em torno de um projeto político-econômico concreto, essa constatação não quer dizer que não há uma referência político-econômica mais genérica que vincule em alguma medida essas forças políticas. 

Como se sabe a economia é a grande fraqueza de Bolsonaro, inclusive ele mesmo explicitou isso publicamente em diversas ocasiões, afirmando ter plena confiança nas decisões do seu atual ministro da Economia Paulo Guedes (economista ultra-neoliberal). No que diz respeito à economia, no discurso feito no Congresso, Bolsonaro reservou-se a proferir algumas palavras ideológicas, desse modo, afirmou que “a confiança, o livre mercado, a eficiência e o interesse nacional” seriam as marcas do seu governo para a economia brasileira. Em seguida, comprometeu-se com a manutenção da austeridade fiscal quando afirmou que o governo não gastará mais do que arrecada. Para quem não conhece as armadilhas dos conceitos próprios da ciência econômica, escutar um suposto compromisso do governo em gastar menos do que o que arrecada pode parecer sinônimo de responsabilidade política para com os recursos públicos. Entretanto tal promessa significa simplesmente que o governo continuará seguindo a velha política neoliberal de cortes nos gastos sociais (saúde, educação, habitação, etc.), a qual caracterizou todo o aumento da desigualdade social no  governo Temer. Por fim, o atual presidente comprometeu-se ainda com um programa de reformas estruturais, cuja realização, segundo ele, é indispensável para a sustentabilidade das contas públicas. Como se sabe neste programa não haverá nenhuma reforma para eliminar os privilégios da elite burocrática (juízes, desembargadores, procuradores, etc.), mas sim uma reforma previdenciária perversa que pretende ampliar o mercado para os fundos de previdência privada. A palavra desemprego sequer foi esboçada no discurso feito no Congresso no dia 1º de janeiro, e isso num país que entre 2014 e 2017 “ganhou” mais 6,2 milhões de desempregados. No entanto, a ausência de qualquer diretriz relacionada à questão do desemprego não deve causar espanto, uma vez que Bolsonaro passou toda a campanha insistindo em dizer que um dia o trabalhador teria que decidir entre emprego ou direitos trabalhistas.

Se entre a elaboração do curtíssimo texto do discurso e o pronunciamento do mesmo foi possível algum ensaio por parte de Bolsonaro, o mesmo não ocorrerá no exercício da presidência de fato. Já nos primeiros dias o atual governo ficou marcado na imprensa e nas redes pelos desencontros nas medidas econômicas anunciadas, como quando Bolsonaro anunciou, na tarde do dia 04 de janeiro, o aumento do IOF e a redução da alíquota mais alta do imposto de renda de 27,5% para 25%, declarações que foram rapidamente negadas por integrantes do governo. Com a entrega da empresa brasileira Embraer à estadunidense Boeing ocorreu algo similar, inicialmente Bolsonaro colocou em dúvida as negociações entre as empresas, mas emitiu um comunicado oficial, alguns dias depois, no qual afirmava que não faria  resistência ao andamento das negociações. Em menos de um mês de governo, já é possível vislumbrar que este governo de extrema-direita traz em si contradições insolúveis, por isso será permanentemente instável, pois, apesar de reunir forças políticas historicamente reacionárias (militares, ultra-neoliberais e conservadores), encontra-se atravessado por disputas internas entre essas mesmas forças.

*Priscila Santana é pesquisadora do  Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA, Mestra  em Economia pela Universidade Federal da Bahia e integrante do Comitê Internacional pela Investigação e Anulação das Dívidas Ilegítimas (CADTM).

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