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Universidade: a que será que se destina?

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Bnews - Divulgação

Publicado em 31/01/2019, às 12h19   Penildon Silva Filho*


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Na última segunda-feira, dia 28 de janeiro, o ministro da Educação do governo, Ricardo Vélez-Rodriguez, afirmou em entrevista ao jornal Valor Econômico, que “a ideia de universidade para todos não existe” e defendeu que as vagas no ensino superior sejam reservadas a uma elite. Ainda acrescentou que “As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica [do país]”, disse. O ministro ainda fez algumas considerações sobre a “empregabilidade” de pessoas formadas na Educação Superior, e defendeu que não precisamos de tantas opções de formação superior no Brasil. Em sua opinião, “os cursos técnicos têm um retorno maior e mais imediato do que a graduação. Nada contra o Uber, mas esse cidadão poderia ter evitado perder seis anos estudando legislação”, disse.
O debate sobre a natureza da Educação Superior e da Universidade, que podem ser coisas distintas, é importante num momento em que o governo federal defende a cobrança de mensalidades, o atrelamento das formações aos interesses de mercado, a diminuição da oferta de vagas com o fechamento de cursos, ou ainda uma cruzada de controle ideológico sobre uma instituição que deve ser em sua essência o lugar da Autonomia, da Liberdade de pesquisar e de aprender.
A crise pela qual passa a Sociedade brasileira, que não tem causas apenas em fenômenos sociais e políticos recentes, mas deita profundas raízes na tradição excludente, escravocrata, racista e elitista de nossa História, não poderá ser superada, nem alcançaremos um patamar minimamente civilizatório sem também preservar o que a Universidade tem de mais importante. A busca da Ciência, da Tecnologia, da pesquisa básica e aplicada, na produção e difusão cultural, artística e literária, no exercício da liberdade de ensinar, aprender e conviver, na junção da missão de avanço científico e promoção dos direitos humanos, tudo isso faz parte desse patrimônio institucional universitário, além da Universidade ser um espaço, um ethos de amadurecimento, de crescimento pessoal e social em valores democráticos e de civilidade.
Por conta dessa constatação, precisamos fazer alguns reparos às afirmações do recém empossado ministro e tecer algumas considerações. Em primeiro lugar a Universidade sempre será um espaço de excelência acadêmica, buscando um nível de produção científica e cultural comparável às principais elaborações da Humanidade em nível internacional. Entretanto, as afirmações na entrevista no jornal Valor tentam passar a imagem que o Brasil ampliou muito o acesso à Educação Superior, além do que deveria, e que hoje até “motoristas de Uber” estariam fazendo cursos universitários, como se os motoristas fossem inferiores intelectualmente e na Universidade não devesse haver espaço para eles ou para outros grupos sociais. Isso é falso.
O Brasil até 2003 tinha apenas 8% de sua população de 18 a 24 anos na Educação Superior. Isso é muito pouco! Naquele ano, a Argentina, o Uruguai e o Chile contavam com 30% de seus jovens nessa mesma faixa etária nos cursos de graduação, uma distância enorme da realidade brasileira. Após a expansão nesse nível de ensino no nosso país, chegamos a 17% dos jovens de 18 a 24 anos na Educação Superior em 2016, o que representou um avanço muito significativo, mas ainda insuficiente para alcançar os nossos vizinhos de população menor e economia mais reduzida em PIB.
Portugal tem cerca de 50% de seus jovens na Educação Superior; a Alemanha tem 30%, a Inglaterra tem por volta de 50% de jovens nesse nível; os Estados Unidos apresentam a taxa de 75% e o Canadá tem 80% dos jovens. Nesses dois casos essa inclusão maior é viabilizada pelo sistema educacional com os “Colleges” como primeiro ciclo de formação, embora hoje haja uma crise norte-americana devido à mercantilização extrema da Educação Superior e da inadimplência estudantil resultante. Assim, sob todos os aspectos, o Brasil ainda apresenta um déficit muito significativo na oferta de vagas na Educação Superior. Não há vagas em demasia, nem oferta desmesurada. O desconhecimento de quem afirma isso é desconcertante, e todos esses dados estão disponíveis nas edições do Censo da Educação Superior dos anos abordados, dados abertos no site do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Por outro lado, precisamos perceber que a Educação Superior no Brasil é muito privatizada, apesar de termos experimentado o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) que ampliou sobremaneira a rede federal de Educação Superior. Se analisarmos o conjunto dos alunos das instituições federais, e não apenas os números de ingresso, atestaremos um incremento substantivo nos últimos anos. Em 2003 havia no Brasil 596.219 de alunos matriculados nas universidades federais e em 2013 já contávamos com 1.029.141 alunos nessas universidades. Essa quase duplicação expressou um novo momento muito significativo de crescimento da rede federal, após as décadas de 1980 e 1990 de estagnação devido à recessão, endividamento público e posteriormente ao neoliberalismo.
Mas o percentual do regime privado se manteve majoritário, com cerca de 75% das vagas no setor particular, o que demonstra a necessidade de ampliação do setor público, não somente pela democratização do acesso, mas também pela natureza da Universidade Pública com ensino, pesquisa e extensão, com produção científica que cresce internacionalmente, fazendo o Brasil avançar várias posições no ranking mundial de artigos de pesquisas publicadas, realidade inexistente no setor privado, com raríssimas exceções. Infelizmente, parece que esse debate sobre qualidade e sua relação com as instituições públicas não está na agenda atual.
A afirmação de que não precisaríamos de mais profissionais de nível superior, corroborada por afirmações do atual presidente de que “brasileiro tem tara por Universidade”, o que por si só denota uma abordagem rasteira e estapafúrdia, também é falsa. Se observamos vários estudos sobre formação de médicos, que embasaram a criação do Programa Mais Médicos, verifica-se por estatísticas internacionais da Organização Mundial de Saúde que o Brasil tem poucos médicos por habitantes. Apenas para indicar uma leitura, dentre várias disponíveis em periódicos científicos, que deveriam servir de base de pesquisa para os gestores públicos, temos o artigo “Impacto do Programa Mais Médicos na redução da escassez de médicos em Atenção Primária à Saúde”, dos autores Girardi, Stralen, Cella, Maas, Carvalho e Faria (veja o link).
Mudando o foco para a formação de professores, o Brasil vive um “apagão” de professores, com cerca de 30% dos professores em exercício hoje ministrando aulas na área em que não foram formados e 20% que se aposentarão dentro de 4 anos, o que perfaz a necessidade de formação de metade do número de docentes da educação básica. Temos 2,192 milhões de professores na Educação básica, enquanto 349.776 são do ensino superior. Todos esses dados podem ser acessados também pelos censos da Educação no site do INEP/MEC. Essa necessidade de formação de professores deveria ser um objetivo do país, se quisermos realmente trilhar o caminho do desenvolvimento humano. Os estudos de Dilvo Ristoff, que recolheu e analisou muitos dados sobre formação de professores valem a leiura.
O último exemplo aqui nesse artigo sobre a necessidade de formação em nível superior está no campo das engenharias. Quando o Brasil estava com um desenvolvimento contínuo e robusto, entre os anos 2003 e 2014, os salários dos engenheiros cresciam substancialmente, os profissionais eram contratados rapidamente e em algumas áreas, especialmente de gerência de projetos de engenharia, havia falta de profissionais.
Em um dos artigos que subsidiaram o debate sobre escassez de engenheiros no Brasil, promovido em 2013, em Brasília, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), os pesquisadores da USP Mario Sergio Salerno, Leonardo Melo Lins, Bruno Cesar Pino Oliveira de Araújo, Leonardo Augusto Vasconcelos Gomes, Demétrio Toledo e Paulo Meyer Nascimento, do Ipea, defendem que não havia um perigo de “apagão” de engenheiros, pois a necessidade crescente desses profissionais seria resolvida com a ampliação da oferta de novos engenheiros, uma vez que os cursos da área voltaram a atrair os alunos naquele momento de crescimento econômico. Apesar disso, o artigo indica quatro dificuldades que deveriam ser acompanhadas para evitar estrangulamentos: “a qualidade dos engenheiros formados, uma vez que a evolução na quantidade não foi acompanhada pela mesma evolução na qualidade; o hiato geracional, o que dificulta a contratação de profissionais experientes para liderar projetos e obras; os déficits em competências específicas; e, os déficits em regiões localizadas”. Conheça mais no link.
No mesmo artigo temos um estudo muito interesse sobre a correlação entre a formação em carreiras tecnológicas e o desenvolvimento econômico. Na página 11 do referido texto, é afirmado: “Estes dois testes estatísticos mostram que o crescimento do PIB per capita guarda alguma relação com as carreiras científicas e tecnológicas em nível mundial. Isto significa que o debate sobre o crescimento de longo prazo passa pelo fortalecimento das ocupações em ciência e tecnologia, entre as quais a engenharia é parte relevante, devido à importância destes profissionais para o aumento da produtividade e desenvolvimento e aprendizado tecnológicos”.
A afirmação de que o Brasil não precisaria investir na formação de profissionais de nível superior, investir em suas universidades, especialmente as públicas, tende a aprisionar o Brasil em uma situação de subdesenvolvimento e atraso econômico, social, tecnológico, cultural e ambiental. A abordagem científica desse e de outros estudos pode lançar luz num debate que hoje parece estar interditado pela censura e pelo preconceito ideológico.
Durante o regime civil militar que imperou no Brasil entre 1964 e 1985 vivemos uma ditadura aberta que cerceou direitos, torturou e matou opositores do regime e outras pessoas que não tinham participação política, entretanto havia um projeto de desenvolvimento das universidades, especialmente das federais, que levou à reforma universitária de 1968, ampliou o número de vagas vertiginosamente, investiu fortemente na pós-graduação nacional, colocando o país no mapa da pós-graduação mundial, garantiu a construção de uma infraestrutura física ampla e sólida para as instituições. Tratava-se de um regime autoritário, mas que tinha um projeto de desenvolvimento e de ampliação das instituições universitárias. Nos dias atuais, pelo menos até o momento, o que caracteriza a política para a Educação Superior é justamente a ausência de projeto e a busca pela destruição do que aí está, sem senso crítico ou capacidade de discernimento além do combate ideológico cego às instituições.
* Professor da UFBA e doutor em Educação

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