Educação

A escola cidadã de Paulo Freire

Imagem A escola cidadã de Paulo Freire
Bnews - Divulgação

Publicado em 21/02/2019, às 07h10   Penildon Silva Filho*


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O debate sobre a Cidadania e os direitos, especialmente os Direitos Humanos, ganhou relevo no século XX, com as duas guerras mundiais, a emancipação da mulher, as lutas pela libertação contra o imperialismo europeu na África e na Ásia, a luta contra o racismo e as leis segregacionistas nos Estados Unidos da América (EUA), contra o apartheid na África do Sul e a luta contra as ditaduras militares na América Latina e no mundo. O termo Cidadania vem sendo constantemente usado, muitas vezes equivocada ou superficialmente. Torna-se importante debater e estabelecer um conceito abrangente e articulado de Cidadania para tratar do paradigma da Escola Cidadã a ser perseguido na Educação, o conceito de Paulo Freire que defendemos.

O conceito de Cidadania surge com os gregos e depois se aprofunda no Império Romano. A Cidadania garantia a discriminação e a manutenção dos privilégios e do poder na sociedade, diferenciando aqueles que poderiam intervir na sociedade daqueles não cidadãos, ou então apenas cidadãos, mas sem serem cidadãos ativos. Isso denota que a Democracia grega e o sistema romano eram sistemas restritivos, com a participação exclusiva dos homens livres e com certas posses materiais. Mais tarde, a Grécia foi indicada como paradigma de Democracia, certamente o conceito de vida na pólis e de intervenção sobre as coisas públicas em sociedade era interessante, mas apenas para a minoria admitida no referido sistema. Isso pode ser visto numa citação de Dalmo de Abreu Dallari no livro “Direitos Humanos e Cidadania”, de 1998, sobre Roma, mas que se aplica à Grécia da mesma maneira: “A palavra Cidadania foi usada na Roma Antiga para indicar a situação política de uma pessoa e os direitos que essa pessoa tinha ou podia exercer. A sociedade romana fazia discriminações e separava as pessoas em classes sociais. Havia, em primeiro lugar, os romanos e os estrangeiros, mas os romanos não eram considerados todos iguais, existindo várias categorias. Em relação à liberdade das pessoas era feita a diferenciação entre livres e escravos, mas entre os que eram livres também não havia igualdade, fazendo-se distinção entre os patrícios — membros das famílias mais importantes que tinham participado da fundação de Roma e por isso considerados nobres — e os plebeus — pessoas comuns que não tinham o direito de ocupar os cargos políticos. Com o tempo foram sendo criadas categorias intermediárias, para que alguns plebeus recebessem um título que os colocava mais próximos dos patrícios e lhes permitia ter acesso aos cargos mais importantes. Quanto à possibilidade de participar das atividades políticas e administrativas havia uma distinção importante entre os próprios romanos”.

Logo esse conceito de Cidadania não nos servirá para trabalhar a Escola Cidadã de Paulo Freire, pela natureza democrática dessa última, inclusiva, que respeita a diversidade e promove a liberdade e a responsabilidade.

O conceito de Cidadania também pode ser encontrado na definição de Alain Touraine, em seu livro “O que é Democracia”, de 1994. No seu esforço de definição da Democracia e dos caminhos para seu aprofundamento e fortalecimento, a Democracia não pode ser entendida apenas como conjunto de regras pré-estabelecidas, ou lista de procedimentos a serem seguidos e a relação de ações a serem executadas que poderiam caracterizá-la, assim ela não teria apenas esse aspecto “procedural”. A Democracia dependeria de um aspecto cultural, comportamental, atitudinal, e assim também a Cidadania. Afinal, a realização de eleições não garantiria a Democracia, pois grupos minoritários dominantes podem monopolizar as eleições entre facções burocráticas ou plutocráticas do Estado que não têm diferença nos programas ou práticas. O simples direito de votar não garante o envolvimento e o sentimento de participação e a vontade de interação pelo bem público.

A Democracia então precisaria de três elementos que se complementariam e se interporiam para se equilibrar: a liberdade individual, a defesa dos interesses coletivos/representação dos interesses e a Cidadania. A inter-relação e a mútua limitação que esses três elementos exercem entre si são fundamentais para a consolidação de uma verdadeira Democracia, dentro da qual a Cidadania ganha relevo. Aproveitaremos essa definição de Cidadania inserida nas reflexões de Touraine para estabelecermos nosso conceito. O primeiro elemento da Democracia para Touraine é a liberdade individual: “A liberdade individual é preservada pelo conjunto de leis e mecanismos que impedem o Estado de interferir e violentar a vida privada do indivíduo, é a limitação dos interesses do Estado pelos direitos fundamentais do ser humano. O Estado não pode, em nome de uma classe social, como ocorreu no socialismo real, ou de uma raça ou etnia, como ocorreu no nazismo e ocorre em Estados tribais/religiosos/étnicos, ou em nome da Lei de Segurança Nacional (caso do Brasil), violar os direitos fundamentais das pessoas, como a vida, a liberdade de expressão, locomoção, cultura, opção de estilo de vida.” Mas o exagero desse princípio de limitação dos poderes do Estado poderá provocar uma distorção, com a ausência da presença do Estado nos aspectos redistributivos ou de proteção aos setores sensíveis na sociedade. Assim, o Liberalismo, ao defender a limitação excessiva do poder do Estado, permite a prevalência do mercado, que passa a potencializar a exploração e opressão de poucos sobre muitos. O Estado é importante para limitar a liberdade individual pelo interesse coletivo, proporcionar o mínimo de condições de sobrevivência e equidade e permitir que as pessoas possam trabalhar e usufruir do produto de seu trabalho.

O segundo elemento, a representação dos interesses, está intimamente ligado à ideia de uma sociedade civil organizada, viva e ativa. Os diversos interesses, empresariais, trabalhistas, de gênero, de raça, de faixa etária, de grupos culturais, de orientação sexual e outros devem estar atuando. É pela organização da sociedade em grupos de pressão que se buscam os direitos de diversas gerações. Os direitos sociais podem ser analisados em quatro gerações, os direitos de primeira geração são os civis, direito à vida, de livre locomoção e de propriedade; os de segunda geração são aqueles que conferem associação livre e organização partidária; os direitos de terceira geração garantem emprego, habitação, saúde, educação, moradia; os direitos de quarta geração são direitos de livre orientação sexual, gênero, diversidade cultural e por um meio ambiente saudável. Mas a hipertrofia da representação de interesses pode gerar uma ditadura de um grupo sobre outros, o exemplo da ditadura do proletariado é ilustrativo: um regime totalitário que se justificava pelo argumento de que o proletariado era a maioria da sociedade e que detinha como seu papel histórico a satisfação dos interesses da sociedade como um todo. Na prática esse tipo de totalitarismo é a concentração de poder nas mãos de poucos, que falam em nome de uma suposta maioria silenciosa e vigiada contra os “desvios ideológicos”. Assim, é importante que a limitação dos poderes do Estado pelos direitos fundamentais e a representação dos interesses se equilibrem.

O terceiro elemento da Democracia, a Cidadania, é compreendida como o “sentimento de pertença”, de indivíduos em relação a um grupo, o que gera uma identidade que estabelece as formas de relação com esses grupos, de atribuições, obrigações e direitos, assim como o sentimento de exigir os direitos próprios ainda não conquistados. O sentimento de identificação com o grupo resulta no interesse de participação grupal e social, pelo interesse de contribuição com o crescimento, a defesa, o reforço do grupo ou da sociedade. A Cidadania é antiga, desde os gregos e os romanos o sentimento de pertencimento a uma Cidade-Estado ou ao Império Romano era definidor das relações sociais. Esse aspecto que contribui decisivamente para a Democracia, que é a Cidadania, é muito importante, mas pode, assim como os outros dois elementos, ter um exagero, o “comunitarismo”, a identificação com grupos fechados, de ordem religiosa, tribal, étnica ou cultural, com a negação da participação na sociedade mais ampla, ou até mesmo a negação do direito de existência dos outros grupos, que é a negação do direito à diferença.

Assim, os três elementos interagem, se limitam e se estimulam, e a percepção de uma maior ou menor Democracia está ligada a uma vivência desses três elementos. A Democracia perde ou deixa de existir quando o Estado fica submetido à economia; ou quando a representação de interesses torna-se totalitarismo; ou quando a Cidadania vira comunitarismo. A Democracia perde quando o Estado fica mais forte que a sociedade civil e a tutela ou desestimula a participação cidadã; e também perde quando o Estado fica submetido às instabilidades próprias das ações sociais e prescinde de um amortecimento institucional necessário contra as arbitrariedades de movimentos ou insurreições sociais.

Diante do exposto acima, trabalharemos com o conceito de Cidadania ativa. Nilda Teves Ferreira em seu livro “Cidadania: uma questão de educação” afirma: “A educação para a Cidadania precisaria empenhar-se em expurgar de cada homem as crenças, as fantasias, as ilusões e, quem sabe, as paixões, que em nada contribuem para o desenvolvimento de uma consciência crítica. Sob esse enfoque, a ingenuidade, para não dizer ignorância, é profundamente negativa, já que a pessoa ingênua é facilmente enganada pelos detentores do poder, movendo-se no espaço das crenças e opiniões, ela não consegue discernir o foco de sua dominação e acaba aceitando o discurso hegemônico do interesse geral criado pelo consenso. Por subestimar a importância do seu papel no jogo político da sociedade, o ingênuo abre mão de participar da solução dos conflitos, nas tensões sociais. Assim procedendo, não chega a desenvolver a prática democrática necessária nas negociações desses conflitos, de modo geral sufocando sua insatisfação e descontentamento. Superar essa ingenuidade — aquela que sufoca o deslocamento ou aquela que se lança cegamente nos conflitos — é tarefa da educação.”

A Cidadania ativa tem então essas características: a participação social, mais próxima do que Alain Touraine identifica como representação de interesses e o sentimento de pertença à sociedade para interagir e respeitar as regras sociais e defender seus direitos também. Esse conceito de Cidadania ativa é usado para identificar o processo de superação da situação de não participação política, subserviência política e de tutela, desconhecimento dos direitos e falta do sentido de pertença. Esse conceito nos serve para dialogar com a realidade das experiências dos movimentos sociais, das experiências de educação não formal ligadas a esses movimentos, como foram no passado as iniciativas dos anarquistas com seus cursos livres e universidades populares no início do século XX, o Movimento de Educação de Base(MEB), o esforço de alfabetização de adultos de Paulo Freire no Nordeste e mais recentemente as experiências das escolas comunitárias e populares.

O conceito de Cidadania Ativa serve à caracterização da Escola Cidadã de Paulo Freire. Em 1997, em entrevista no Instituto Paulo Freire, ele define assim a Escola Cidadã: “é aquela que se assume como centro de direitos e deveres. É uma escola coerente com a liberdade. É uma escola de comunidade, de companheirismo, que vive a experiência tensa da Democracia”. Essa experiência tensa da Democracia foi assim caracterizada pois a Escola deve ser também rigorosa com o ensino da Ciência, não deve transigir da transmissão, do ressignificado e da construção do patrimônio científico e cultural da Humanidade, ela deve ter disciplina, deve ter o respeito às diferenças, o respeito aos outros, aos professores e aos alunos, e teve sua concepção desenvolvida ao longo da década de 1980, no processo de redemocratização do Brasil, com  a democratização do acesso e da permanência dos alunos nas escolas, pela ampliação da participação social na gestão da escola e na escolha dos dirigentes escolares pelas suas comunidades, por uma concepção mais interdisciplinar do currículo e da avaliação educacional, que não deve ser padronizada e única.

Na visão de Escola Cidadã percebemos esses elementos de equilíbrio entre a liberdade individual, a defesa dos interesses coletivos/representação dos interesses e a Cidadania, e mesmo quando vemos a importância que Paulo Freire dava ao local, à cultura local, à história das comunidades locais, havia a indicação da necessidade de uma comunicação entre as escolas, a criação de conselhos interescolares, a troca de experiências, no intuito de evitar um isolacionismo ou “comunitarismo”. Além dessa visão, a Escola Cidadã compreendia a necessidade de superação ou diminuição das desigualdades sociais como condição para o sucesso escolar, inserindo a Escola no meio social, sem o qual é impossível compreender o seu ethos e os seus resultados

A Educação brasileira precisa cada vez mais conhecer e refletir sobre a obra de Paulo Freire, com certeza ganharemos muito com esse esforço no momento atual de tantas tentações autoritárias e obscurantistas. O patrono da Educação Brasileira deveria ser mais lido, para ser compreendido e até criticado.

*Penildon Silva Filho é professor da Ufba e doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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