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A educação e a Lava Jato

Imagem A educação e a Lava Jato
Bnews - Divulgação

Publicado em 07/03/2019, às 07h15   Penildon Silva Filho*


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Esse Carnaval de 2019 foi realmente muito politizado, das manifestações do presidente da república pelo facebook e pelo twitter e de outros políticos, artistas, juristas, educadores até os sambas-enredos das escolas de samba e as manifestações políticas espontâneas de foliões pelas ruas do Brasil. Estas últimas com direito a vários casos de repressão policial claramente ditatoriais e à margem da Constituição, mas sem nenhuma repreensão desses abusos por parte dos órgãos que deveriam zelar pela Constituição ou pela Democracia, assim vivemos tempos de regime de exceção ou “democracia mitigada”.

Nesse contexto de efervescência nas ruas, nas redes e mídia em geral, na última segunda-feira, dia 4 de março, o presidente anunciou a “Lava Jato da Educação”, argumentando que se investe muito em Educação, mas que os resultados não seriam satisfatórios, o que ensejaria a sua conclusão de que “alguma coisa de errado estaria acontecendo na Educação nacional”, e por isso se precisaria da mão “moralizadora” da Lava Jato, que foi tão importante para a sua própria eleição, como ele gosta de difundir publicamente. Em palavras do mandatário “Há algo de muito errado acontecendo: as prioridades a serem ensinadas e os recursos aplicados. Para investigar isso, o Ministério da Educação, junto com o Ministério da Justiça, a Polícia Federal, a Advocacia e a Controladoria Geral da União, criaram a Lava Jato da Educação” (é bom frisar que não se deve colocar vírgula entre sujeito e verbo, mas estamos apenas transcrevendo as palavras da mais alta autoridade do país).

A primeira observação que devemos fazer é o momento em que essa declaração ocorre: depois que o depoimento do assessor do filho do presidente Flávio Bolsonaro, o Fabrício Queiroz, não ocorreu, e o mesmo apenas enviou uma carta ao Ministério Público com sua versão e explicação para a movimentação financeira atípica em sua conta. Essa sua segunda tentativa de explicação é mais esdrúxula que a primeira, aquela em que ele disse que era negociador de carros e que rapidamente fazia fortuna com essa sua “alta habilidade”. Agora, o assessor do filho do presidente e amigo de longa data da família toda afirma ser um gerenciador dos salários dos seus colegas assessores parlamentares para multiplicar o número de apoiadores políticos, situação bastante irregular de acordo com a legislação. Veja no site.

Os problemas da família Bolsonaro não se resumem a isso, houve também a prisão de parentes de assessores parlamentares do filho do presidente ligados às milícias do Rio de Janeiro, investigados pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco. O mesmo ex-assessor Fabrício Queiroz implicado com movimentações suspeitas de serem caixa dois e uso de laranjas para desviar recursos públicos para a família Bolsonaro admitiu em nota, em final de janeiro passado, emitida pela sua defesa, que indicou a mãe e a mulher do ex-policial militar Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado pelo Ministério Público do Rio como chefe de milícia, para trabalhar no gabinete do deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Adriano é investigado pelo assassinato de Marielle Franco. Também em nota, Flávio Bolsonaro afirmou que era Queiroz o responsável pelas indicações. Flávio Bolsonaro e o seu pai, Jair Bolsonaro, não contumazes apoiadores das milícias e grupos de extermínio no Rio de Janeiro e no Brasil, com vários pronunciamentos proferidos das tribunas parlamentares e com indicação de honrarias e medalhas a essas pessoas. Veja no link.

Some-se a isso o fato de que na semana passada o ministro da Educação enviou uma carta a todas as escolas do Brasil pedindo que as crianças cantassem o hino nacional acompanhadas da leitura de uma nota com dizeres de campanha do candidato Bolsonaro em 2018, o que configura crime de improbidade administrativa, além de pedir a filmagem de crianças para propagando do governo sem permissão dos pais, que deveria ser uma obrigação legal. Essa carta provocou tantas reações que logo depois o MEC pediu para que as escolas a desconsiderassem. O titular da pasta da Educação é pródigo em se envolver em polêmicas que em nada contribuem para a Educação Nacional (lembram da desastrosa entrevista para as páginas amarelas da revista Veja no mês de janeiro?), justamente no momento em que os avanços da Educação conseguidos desde a Constituição de 1988, e especialmente a partir dos governos Lula e Dilma, estão sendo destruídos. 

Nunca é demais lembrar que a nossa Constituição de 1988 estabeleceu que os estados e municípios deveriam investir 25% dos seus recursos na Educação, enquanto a União deve investir o mínimo de 18% da receita corrente líquida, mas esses princípios constitucionais foram abolidos pela emenda constitucional 95, de 2016, que congela por vinte anos os investimentos sociais pelo Estado brasileiro, Educação e Saúde à frente. Esse congelamento feito pelo governo Temer foi saudado e será mantido pelo atual governo. 

Tivemos avanços desde a Constituição de 88 e a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (liderada pelo grande educador Darcy Ribeiro), e esses avanços se intensificaram com a criação do FUNDEB (Fundo Nacional de Manutenção da Educação Básica e Valorização do Magistério) de 2007, com o Piso Salarial Nacional dos profissionais da Educação pela Lei Nº 11.738, de 16 de julho de 2008, a emenda constitucional 59, responsável pela ampliação do tempo em que nossos jovens devem obrigatoriamente frequentar as escolas, que era de 7 a 14 anos e passou a ser de 4 a 17 anos, com o Programa de Reestruturação das Universidades Federais(REUNI), com a criação de 18 novas universidades federais e a duplicação das vagas nessas instituições, além da criação e disseminação de mais de 500 campi de institutos federais em todas as regiões do Brasil. A promulgação do Plano Nacional de Educação(PNE), a lei 13.005 de 2014, determinou metas e estratégias amplamente debatidas com a Sociedade e o Congresso Nacional que consolidavam esse caminho de responsabilidade com a Educação, e estabeleceu metas de investimento nessa política pública, que deveria atingir o correspondente a 10% do PIB na Educação até 2024. A emenda constitucional 95 de Temer e Bolsonaro congelou os investimentos em Educação e na prática revogou a Constituição, a LDB e o PNE. 

As outras medidas já anunciadas de restrição do acesso às universidades e institutos federais (ver texto no link), de repressão à atuação de professores em seu cotidiano, com a tentativa de cassação da liberdade de cátedra dos docentes, e recentemente a reforma da previdência que precariza e desvaloriza a carreira docente, todas são medidas que compõe um mosaico de retrocessos na Educação, tanto básica quanto superior, e prenunciam uma situação vexatória em que se tenta criminalizar os professores, as escolas e as universidades. 

A “Lava Jato da Educação” se inscreve nesse contexto: é necessário apagar ou esconder as ações de destruição do legado da Educação descrito brevemente acima, legado construído pela Sociedade brasileira com a luta pela redemocratização na década de 1980 até recentemente. E para isso se utiliza da mesma estratégia de comunicação que saiu vitoriosa na disputa política desde 2015 e do impeachment de Dilma, que foi um golpe, e culminou com a eleição de 2018. Essa é nossa segunda observação: a estratégia de comunicação utilizada à exaustão nesse período foi sistematizada pelo teórico de direita Steve Bannon, que deu assessoria à campanha do atual presidente Bolsonaro. Veja aqui matéria durante a campanha, e matéria após a campanha, já em 2019.

São quatro os alicerces dessa estratégia: “1) enquadrar uma ideia, apresentando-a como original, sua; 2) desviar a atenção, encobrindo os fatos como cortina de fumaça; 3) atacar a credibilidade dos adversários; 4) lançar os balões de ensaio para avaliar os resultados” Veja no link.

Faz parte da estratégia da presidência atual e do Steve Bannon (arquiteto do Brexit e da eleição vitoriosa de Donald Trump nos Estados Unidos) fazer com que todo o debate político fique reduzido à mediocridade e que toda informação seja encarada como “fakenews”. Nesse raciocínio, se tudo é falso, nada tem credibilidade ou legitimidade, tudo se equivale e fica sem valor ou validade no debate público. As recentes publicações pornográficas do presidente no seu twitter, que lhe renderam muita polêmica e mídia diversionista, são um bom exemplo disso. Enquanto se aprova o uso de 57 agrotóxicos extremamente agressivos à Saúde humana, se privatiza todo o Pré-Sal, a Petrobras, a Embraer e se prepara para destruir o conceito de previdência pública, a estratégia de lançar vários balões de ensaio sobre questões de menor valor ou polêmicas moralistas, que mobilizam parcela do eleitorado, é largamente utilizada.

Foi Aldous Huxley quem disse no início do século XX que o controle social seria pelo excesso de informações, irrelevantes, falsas, confusas, e não pela sua censura ou pela escassez de informações, como previu George Orwell. Orwell disse no livro “1984” que o controle seria pela censura e pela repressão. Mas hoje, pela profusão das fakenews e pela incapacidade das pessoas em distinguir o verdadeiro do falso, não conseguimos estabelecer um debate sério e consistente, e os grupos antidemocráticos, fundamentalistas e alguns fascistas sabem manipular esse universo com resultados satisfatórios para eles até o momento. Dentre outros textos sobre uma comparação entre Huxley e Orwell, temos esse link.

A terceira observação que queremos compartilhar é que a Lava Jato da Educação já começou desde 2017. O caso do reitor Cancellier já demonstrou como ela atua e continuará a funcionar. O então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi preso no dia 14 de setembro de 2017 junto com outras seis pessoas. A Polícia Federal deflagrou uma operação para desarticular um “esquema criminoso” que desviara “mais de 80 milhões de reais” dos fundos destinados à Universidade Federal de Santa Catarina em Educação a Distância. A própria PF, muito envolvida com a notoriedade e publicidade conseguida durante suas operações, fez propaganda de sua nova ação, acusando sem provas os gestores da UFSC e lançando em sua página no Facebook, seguida por 2,7 milhões de pessoas, as hashtags: #euconfionapf e #issoaquiépf.

O Reitor Cancellier foi algemado, acorrentado pelos pés e submetido a revista íntima. Foi forçado a usar uniforme cor de laranja e permaneceu trinta horas detido mesmo sem ter contra si uma denúncia do MPF ou qualquer processo judicial, em um presídio de segurança máxima, e ao sair ficou proibido de pisar no campus da universidade. Por conta disso, dezoito dias depois, suicidou-se, pulando do 7º andar de um shopping center em Florianópolis. O inquérito da PF concluiu em 2018 com o nome do reitor ainda ligado aos supostos (e hoje sabidamente inexistentes) desvios de recursos da universidade, mas esse relatório final não apresentou qualquer prova nem explicou porque outros gestores da instituição não foram indiciados, uma vez que a versão inicial era de que a suposta corrupção na universidade começara desde o início das atividades da Educação a Distância (EAD), muitos anos antes de Cancellier assumir a Reitoria. Logo depois que anunciara a quantia astronômica de 80 milhões de reais “desviados”, a PF se corrigiu e informou que essa quantia era o total de recursos de EAD transferidos do MEC para a UFSC de 2008 a 2016, e não mais os recursos desviados. Posteriormente, no relatório, não apresentou qual a quantia que supostamente foi desviada, ou seja, prenderam sete pessoas, as mantiveram presas e destruíram a sua honra, sem processo, sem prova, sem responsabilidade, apenas para garantir um espaço na mídia, que há alguns anos vem ampliando seu tempo de exposição para essas operações, que cada vez mais ficam patentes como operações midiáticas, sem seriedade ou cuidado. 

O jornal Folha de São Paulo, que apoiava essas operações de grande repercussão midiática mas com pouco lastro legal, em sua matéria no site informa: “Apesar das acusações de que estaria no comando de uma suposta quadrilha, o relatório da PF não apresenta provas de que o ex-reitor teria se beneficiado financeiramente por essa participação. A Folha questionou à Polícia federal sobre a ausência de provas contra Cancellier, mas obteve como resposta apenas que a investigação está finalizada”. Outro veículo que anteriormente deu muito espaço para a espetacularização da polícia e da justiça foi a revista Veja, que se preocupava em criar o julgamento de culpa junto à opinião pública antes da justiça, do MPF ou polícias fazerem qualquer investigação. Todo o processo não servia para investigar, colher provas e julgar de forma isenta, mas apenas para comprovar uma tese anteriormente defendida de culpa de algum gestor, escolhido para ser condenado com claro viés ideológico e político. Confira como o relatório da PF é frágil, na leitura dessa mesma revista no site.

A quarta observação sobre essa nova tática diversionista de criminalização da Educação nacional se refere às observações no twitter do presidente de que o recurso gasto nessa política pública seria excessivo. Bem, essa observação pode ser possível de ouvir de quem não conhece absolutamente nada de políticas públicas, mas causa preocupação vinda do mandatório mais importante da república. A definição pelo PNE de que o investimento em Educação deveria aumentar até alcançar o equivalente a 10% do PIB em Educação se deve ao fato de que outros países, para conseguir dar uma arrancada na Educação e na vida nacional, como foi o caso da Coréia do Sul e outros, investiram algo semelhante. Por outro lado, comparar o percentual do PIB do Brasil investido na Educação com o percentual do PIB dos Estados Unidos é inadequado, pois o PIB estadunidense é 20 vezes maior que o Brasil e a população é apenas 1,5 vezes maior que a do nosso país, logo essa conta é equivocada; precisamos comparar o investimento por aluno para saber se o Brasil investe pouco ou muito. 

Em valores comparáveis de dólares convertidos pela paridade do poder de compra, o Brasil investe apenas 3.837 dólares por ano por aluno do final do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, enquanto que a Finlândia investe 10.387 dólares, a Coréia do Sul investe 10.316, e a média da OCDE é 10.106 dólares por aluno por ano, em pesquisa dessa mesma organização. É importante indicar a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) como parâmetro de comparação, ela reúne 36 países, dentre os quais Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Itália, Portugal, Reino Unido, Suécia, Alemanha, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Japão e Finlândia, pois essa organização internacional foi citada nas declarações virtuais do presidente. Certamente a afirmação de que hoje o Brasil já investe muito ou excessivamente em Educação não encontra concordância na ampla maioria da população, pelo menos daquela que frequenta as escolas públicas, e tentar criar uma nova “cortina de fumaça” com essa Lava Jato da Educação para justificar a diminuição dos recursos hoje já insuficientes é um atentado contra a população pobre, contra o desenvolvimento da Ciência e da Cultura e contra a soberania nacional. Não estaríamos exagerando em afirmar que diminuir os recursos da Educação se converte num crime de lesa-pátria. Crime de lesa-pátria é a prática de causar prejuízo a um país inteiro, atingindo sobretudo a soberania nacional, e hoje não existe soberania nacional sem cidadania, sem escolarização crescente, sem universidade para desenvolver Ciência e Tecnologia.

*Penildon Silva Filho é professor da Ufba e doutor em educação

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