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O contrassenso da proposta de privatização do Governo Bolsonaro: a reestatização das empresas na economia mundial

Imagem O contrassenso da proposta de privatização do Governo Bolsonaro: a reestatização das empresas na economia mundial
Bnews - Divulgação

Publicado em 12/03/2019, às 18h17   Uallace Moreira*


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No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, os dois governos brasileiros eleitos democraticamente- Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso (FHC) - mostravam grande simpatia às políticas de caráter liberal, elegendo o Modelo de Substituição de Importações (MSI) que predominou no Brasil entre 1930 e 1970 como o grande vilão da situação do país no período. Nesse intuito, ambos os governos passaram a fazer fortes ataques ao Estado desenvolvimentista que predominou nas décadas de 1930 a 1970. O termo “modernidade” passou a ser constantemente utilizado para caracterizar, de forma positiva, a política de caráter neoliberal que deveria ser implementada no país, como único meio do país progredir e se inserir no comércio internacional com mais competitividade. O discurso contra o MSI e o Estado intervencionista (chamado também de Estado desperdiçador), teve amplo apoio da elite brasileira e do empresariado, possibilitando a esses governos a implementação de uma política de estabilização aliada a um projeto de longo prazo, com as reformas estruturais orientadas pelas ideias neoliberais. Entre as principais reformas estruturais estavam as privatizações.

No período do governo de FHC (1995 a 2002), quando houve o maior número de privatizações, foram 77 empresas federais privatizadas e 55 empresas estaduais privatizadas, totalizando um montante de valor arrecado de US$ 105,553 bilhões de dólares. Os setores em que as empresas federais foram vendidas foram do setor siderúrgico (8), petroquímico (27), fertilizantes (5), elétrico (3), ferroviário (7), mineração (2), portos (7), bancos (4), telecomunicações (sistema Telebrás), e outros (5). Nos Estados foram vendidas empresas e participações minoritárias do setor elétrico (30); ferroviário (1), financeiro (8), gás (5), seguros (1), transporte (4), telecomunicações (3), saneamento (3).

Na época, o Ex-Ministro da Fazenda do governo, Gustavo Franco, afirmou em uma entrevista à Revista Veja (02/02/2000), que a venda das estatais a grupos estrangeiros foi uma jogada esperta dos brasileiros que teriam passado à frente “verdadeiras sucatas”.

Ao contrário dos argumentos de benefícios das privatizações apresentadas pelos seus defensores, surgiram vários problemas na origem do processo de privatização e no período pós privatização. Em relação ao processo de privatizações, Aloysio Biondi, em seu livro “O Brasil privatizado”, denuncia perdas do Estado brasileiro no processo de privatização. Segundo suas pesquisas, o governo investiu US$ 28 bilhões nas estatais nos anos que antecederam as privatizações; foram US$ 16 bilhões de dívidas não transferidas; e mais US$ 2 bilhões ficaram em caixa nas empresas privatizadas. Ou seja, o governo transferiu recursos para as empresas que compraram as empresas estatais. Além do mais, o cenário não era o mais propício para a venda das empresas, pois era um momento que tais empresas estavam na baixa e muito desvalorizadas. Os principais motivos para essa baixa foram: i) na época, houve um boom das empresas de tecnologia que provocou uma enorme depreciação das empresas tradicionais; ii) na década de 1990, o crescimento econômico não foi muito expressivo no mundo, gerando uma enorme desvalorização de commodities como minério, petróleo, etc. iii) o  Brasil passou por duas falências e enormes crises cambiais no governo FHC, com consequente redução da taxa de investimentos e maior cautela das empresas; iv)  a valorização cambial de FHC destroçou nossas exportações, com grande prejuízo para algumas grandes empresas estatais exportadoras, como a Vale do Rio Doce, as siderúrgicas, etc.

Em relação ao momento pós privatizações, um dos acontecimentos mais emblemáticos de erros da privatização no Brasil aconteceu com a crise do setor de energia no país em 2001 - conhecida como “O apagão” -, impondo à sociedade brasileira um forte racionamento de energia. Para muitos especialistas, o motivo principal da crise foi a baixa taxa de investimento no setor, principalmente com o processo de privatização. Segundo relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) (Relatório de Auditoria - TC 006.734/2003-9 – Verificação do custo do apagão energético de 2001): houve um custo direto (R$ 45, 2 bilhões de reais -valores de 2001), incorrido por todos os brasileiros, em razão do apagão elétrico, entre os anos de 2001 e 2002. O valor do custo foi repassado às distribuidoras de energia elétrica, sendo que 60% foi pago pelos usuários, por meio de repasse tarifário, e o restante, pelo Tesouro Nacional, onerando os contribuintes.

Além do mais, a população brasileira sofreu com o racionamento de energia. A atividade econômica teve uma redução, a taxa de crescimento da economia caiu de 4,3% no ano 2000 para 1,3% no ano de 2001, e com ela adveio problemas como desemprego, redução da competitividade do produto nacional, diminuição do ritmo arrecadatório, entre outros.

Essa experiência brasileira com resultados negativos das privatizações está inserida em um movimento de reestatizações que vem acontecendo no mundo entre 2000 e 2017, de acordo com estudo publicado pelo Transnational Institute (TNI) (disponível nesse link: https://www.tni.org/en/publication/reclaiming-public-services). De acordo com o estudo, desde 2000, aproximadamente 884 serviços foram reestatizados no mundo. As reestatizações aconteceram com destaque em 5 países centrais do capitalismo: Alemanha (348 reestatizações), França (152 reestatizações), EUA (67 reestatizações), Reino Unido (65 reestatizações) e Espanha (56 reestatizações).

Reestatização é um movimento em que o estado reassume as empresas que antes foram privatizadas. De acordo com o estudo, o processo de reestatização ocorreu porque as empresas privadas priorizavam o lucro e os serviços estavam caros e ruins, em detrimento do bem-estar da população dos respectivos países. Foram registrados casos de serviços públicos essenciais que vão desde fornecimento de água e energia e coleta de lixo até programas habitacionais e funerárias.

A geógrafa Lavinia Steinfort, coordenadora de projetos do TNI, em entrevista ao UOL (https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03/07/reestatizacoes-tendencia-crescendo-tni-entrevista.htm), afirma que "A nossa base de dados mostra que as reestatizações são uma tendência e estão crescendo".  Os principais motivos para o processo de reestatização são “Baixar preços, aumentar investimentos e melhorar a qualidade do serviço como um todo são os objetivos mais comuns. Muitas das privatizações falharam, e isso aconteceu à custa da qualidade e acessibilidade dos serviços públicos e do bem-estar da população. Como resultado, vários governos acabaram pressionados pelos cidadãos a usar seu poder político para retomar as redes de água, esgoto ou de energia.”

O que impressiona nesse cenário é que enquanto as experiências recentes do Brasil e no mundo deixam em evidência que as privatizações têm gerado efeitos negativos para a sociedade, o Presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica, liderada pelo Ministro Paulo Guedes, defendem um forte processo de privatização no Brasil. Recentemente, Paulo Guedes, afirmou que o objetivo é “vender tudo” (https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,os-politicos-tem-de-controlar-100-do-orcamento,70002749472). Em São Paulo, o Governador João Dória também é um forte defensor da venda de todas as estatais do estado.

Se realmente se confirmar a intenção de vendas de mais estatais no Brasil, a experiência histórica do país e os acontecimentos no mundo com o processo de reestatização, apontam para um grande equívoco e contrassenso de política pública do governo Bolsonaro, deixando claro que o governo, representado pelo seu Ministro Paulo Guedes, não atende aos interesses da sociedade brasileira, mas de empresas nacionais e estrangeiras interessadas em explorar os setores produtivos e de serviços, com elevado custo para o país, recaindo em particular sobre a parcela da sociedade mais pobres do país, que é sua maioria de acordo com o censo do IBGE.  

* Uallace Moreira Lima é Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP).  Professor de Economia da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (FE/UFBA) e Pesquisador Visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

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