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A proposta do fim das vinculações constitucionais do governo federal

Imagem A proposta do fim das vinculações constitucionais do governo federal
Ela ressurge para tornar o orçamento uma peça perfeitamente manipulável para os interesses do capital financeiro, exatamente o que era o objetivo oculta da reforma da Previdência  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 14/03/2019, às 18h32   Penildon Silva Filho*


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A proposta de desvinculação total de receitas do orçamento dos entes federados foi anunciada pelo ministro Paulo Guedes em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo” no último domingo, 10 de março, chamada por ele de "PEC do pacto federativo". Sem a vinculação obrigatória, os parlamentares decidiriam a cada ano a alocação dos recursos do Orçamento. Essa proposta já havia sido veiculada pelo mesmo ministro logo nos primeiros dias de mandato, em janeiro, como uma alternativa caso a proposta de reforma da previdência não vingasse. Naquele momento, a ideia estapafúrdia de acabar com os mínimos constitucionais a serem investidos nas áreas sociais, o que destruiria a Educação, a Saúde e a Seguridade Social, pareceu mais uma chantagem para aprovar a reforma da previdência, que aboliria a Previdência Pública em favor do regime de capitalização. Uma reforma previdenciária que rebaixaria os benefícios dos aposentados para serem um terço dos benefícios da ativa para os homens, para um quarto dos benefícios da ativa para as mulheres e lançaria os mais pobres na miséria absoluta, ao extinguir o piso da previdência vinculado ao salário mínimo.

Agora a proposta volta à baila, talvez porque a reforma da previdência não encontre muita viabilidade de ser aprovada, tanto pelo seu caráter excludente e injusto quanto pelo motivo da preservação do regime dos militares e de outras corporações, o que demonstrou o caráter anti-social e elitista da proposta. A ideia de extinção das vinculações constitucionais ressurge para tornar o orçamento uma peça perfeitamente manipulável para os interesses do capital financeiro, exatamente o que era o objetivo oculta da reforma da previdência. No presente momento, 47% do orçamento da União é gasto com pagamento de juros e dividendos da dívida pública. Trata-se da maior fatia do orçamento, enquanto a previdência fica com 21% do total e a Educação tem 3,73%. São mais de um 462 bilhões de reais por ano para pagar apenas os juros e dividendos da dívida, sem pagar a parte principal. Essa situação lançou a Economia na dependência do capital financeiro e rentista, que se tornou a parcela do capital mais forte e passou a comprar e hegemonizar o capital produtivo, ao mesmo tempo em que a elite econômica se acostumou a ganhar a maior parte de seus rendimentos em investimentos financeiros junto ao Estado brasileiro e não em empreendimentos produtivos.

As duas propostas, a da reforma da previdência e a extinção da vinculação, visam aumentar essa fatia do bolo do orçamento que o Estado tem para essa parte minoritária da sociedade poder continuar obtendo rendas. Segundo André Castro Carvalho, em seu livro “Vinculação de receitas públicas” de 2010, p. 37, "As vinculações de receitas são positivadas por instrumentos constitucionais ou legislativos de forma alheia à lei orçamentária, e são utilizadas para individualizar uma fonte e destinação mediante o estabelecimento de um elo jurídico entre receitas e escopos predeterminados, possuindo margem relativa de abolição do ordenamento e constituindo uma excepcionalidade à dinâmica orçamentária". A vinculação existe justamente para dar prioridade para determinada política pública, e a Sociedade brasileira na sua constituinte de 1987/1988 compreendeu que a Educação era uma política pública nesse sentido, assim como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 e os planos decenais de educação de 2001 e de 2014. A vinculação protege determina política compreendida como importante para o desenvolvimento econômico, a justiça social, a inclusão e a solidariedade sociais, uma política a ser preservada, e compreendemos que essa é uma definição correta a ser defendida, pela natureza das políticas de Educação, Saúde e Assistência Social, pois demandam uma regularidade na prestação de serviço à população. Não se pode hoje ter um conjunto de escolas numa região e daqui a um ano essas escolas estarem fechadas sem motivo, apenas pelas injunções políticas das negociações parlamentares. Essa compreensão das vinculações orçamentárias é civilizatória, garante direitos humanos, sociais e econômicos.

O ministro da Economia na entrevista supracitada declara que o orçamento deve ser definido ano a ano pelos políticos, no congresso nacional, nas 26 assembleias legislativas, na câmara distrital e nas mais de 5.500 câmaras de vereadores. Isso vai significar a destruição da Educação Pública, que ficará à mercê das injunções, negociações e descaso com essa política. Se hoje já há um clamor geral por uma maior prioridade com a Educação devido aos desníveis existentes, imaginem caso deixe de haver obrigação legal de investimento nessa política. Essa desobrigação será muito bem vinda para o grande capitalista que vive de emprestar dinheiro para o Estado e receber juros e dividendos, mas será prejudicial para a maior parte da população, pois 85% dela usa e precisa das escolas públicas e do Sistema Único de Saúde.

No atual governo podemos identificar alguns núcleos de poder que representam programas sobre a Sociedade. Há claramente um núcleo econômico, como ministro da economia Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, que defendem e tocam à frente a reforma da previdência, a desvinculação de receitas dos orçamentos, a privatização extrema, a mercantilização da Educação, da Saúde, da Previdência, da segurança. É um núcleo que representa os interesses dos bancos, defendem a mínima intervenção do Estado na Economia, com a reforma trabalhista, o pagamento de mensalidades nas universidades e escolas públicas, a extinção do SUS para que todos devam começar a pagar planos de Saúde. Defenderam também a privatização da Petrobras, a entrega do Pré-Sal às empresas estrangeiras e a venda da Embraer para uma empresa estrangeira.

Há também o núcleo ideológico: os ministros da Educação, das Relações Exteriores e da Família. Esse é uma mistura de fundamentalismo religioso, ataque aos valores democráticos e aos direitos humanos, subserviência aos EUA e com um projeto fascista de diminuição dos direitos da Mulher, não reconhecimento dos direitos LGBT e perseguição e aculturação dos índios e quilombolas.

O terceiro núcleo é o militar, que dentro do governo tem a estratégia de ocupação de espaço, com busca de vários ministérios e cargos em escalões inferiores, e hoje garantem mais postos de comando do que na época dos governos militares. Entretanto até o presente momento não apresentaram um projeto de Nação, diferentemente da época da ditadura civil-militar. Mantem-se basicamente para garantir espaços corporativos e defender direitos previdenciários e outros da caserna e pouco tem se importado com os ataques à soberania nacional, como a privatização da Petrobras e Eletrobras, a doação das reservas de petróleo para empresas estrangeiras, a perda da Embraer para uma multinacional, a entrega da base de Alcântara aos Estados Unidos. Lembremo-nos que no regime militar houve investimentos nas universidades públicas e estímulo à pós-graduação, enquanto agora só há discursos de destruição do que temos de patrimônio intelectual, mas os militares não se pronunciaram.

Por fim não podemos deixar de citar o quarto núcleo, talvez o mais midiático e com alianças fortes com a grande mídia, que se aninha no Ministério da Justiça, e podemos denominá-los de justiceiros com sede de poder: segmentos do MP, PF, Judiciário, TCU e partes das corporações policiais. Tomamos o cuidado de identificar como parcelas de cada uma das instituições ou corporações pois não podemos nem devemos dizer que todos estão acumpliciados com a utilização da justiça e de operações policiais com cobertura midiática abundante e espalhafatosa claramente com objetivos partidários de perseguir alguns atores políticos e proteger outros. Esse grupo recentemente lançou a ideia de desviar 2,5 bilhões de reais da Petrobras que deveriam voltar aos cofres públicos para uma fundação privada a ser gerida por eles próprios, claramente com interesses políticos. Felizmente até a Procuradoria Geral da República e ministros do STF identificaram esse fato como um absurdo com o dinheiro público.

Esses núcleos estão em disputa dentro do atual governo, alguns se sobrepõem a outros e procuram espaço para seus projetos de poder. O lance mais claro e recente de disputa entre os núcleos foi a decisão do presidente Bolsonaro de não mais enviar ao congresso uma proposta para acabar com a reeleição. Agora, contrariando o discurso de campanha contrário à reeleição, ele procura manter esse instituto para estancar a campanha antecipada a presidente do núcleo dos justiceiros, com o ex-juiz Moro à frente.

Nada garante que esses núcleos manterão uma aliança que já se mostrou frágil, tensa e prestes sempre a entrar em ruptura, entretanto há um programa prioritário e comum entre todos eles, que foi expresso na descrição do núcleo econômico, que defende os interesses do capital rentista, a diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários e a destruição do patrimônio público e da soberania. Mesmo que um grupo tome a dianteira na condução do processo, ou até haja golpes internos para mudar o timoneiro do barco conservador, o que parece estar muito próximo de acontecer, não deve haver mudanças na pauta ultraconservadora, seja qual for o núcleo vitorioso na guerra interna do poder, que agora apresenta sua face mais radical de destruição da nação: a reforma da previdência e a extinção das vinculações constitucionais para as políticas sociais.

*Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação e escreve para o BNews às quintas-feiras

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