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Tem uma coisa estranha no ar

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Bnews - Divulgação

Publicado em 19/03/2019, às 23h04   Hamilton Ferreira*


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Em 1991, no LP Circuladô, Caetano Veloso escreveu um poema chamado “Fora da ordem”. Entre outros versos o poeta observou: “aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína”. Lamentavelmente, a percepção do artista pré-anunciava o desconforto atual de parte dos intelectuais brasileiros e de vastas camadas da sociedade. Com essa sensação de divergência, às vezes crescente, entre o que foi socialmente imaginado e aquilo que foi efetivamente realizado, a permanente sugestão de que fomos ou seremos enganados, a ideia de que futuro é e será um reiterado fracasso, não poderemos construir uma sociedade que no seu funcionamento normal, rotineiro, não assegura incentivos fortes e duradouros para estimular a adesão dos seus membros a um corpo social minimamente solidário e cooperativo.

Muitos já trataram desta sensação de mediocridade que parece acompanhar a trajetória da sociedade brasileira, o tal complexo de vira-lata. A teoria econômica tem, desde muito tempo, mesmo na obra do seu fundador, Adam Smith, tratado dos problemas relativos à mudança institucional que poderia acelerar o desenvolvimento econômico, quais sejam, aqueles padrões normativos de ordenação e encaminhamento dos conflitos entre indivíduos auto-interessados que poderiam exacerbar a divergência de percepções entre eles e, num mundo sem adesão possível a uma dada convenção, jogar a sociedade na guerra civil ou estagnação econômica de longo prazo. Como assegurar que o “mal estar na civilização” produza apenas desconforto tolerável, mesmo que duradouro em troca de um futuro melhor que pode estar nos esperando em alguma data no calendário dos simples mortais?

Quais forças seriam as responsáveis por esta falta de sincronia entre o economicamente prometido e o realizado? Por que essa sensação de desconexão com o resto do mundo?

Mais uma vez assiste-se a uma vertiginosa explosão de novas tecnologias de produtos e processos produtivos, nas formas de organização interna das empresas, com a digitalização e interconexão de atividades antes discretas, descontínuas, que poderiam ser executadas separadamente dentro das empresas ou entre elas, dando origem a fluxos de produção e criação de mercados, com vertiginoso crescimento da produtividade dos recursos produtivos empregados. Novas plantas produtivas com automação executada e gerenciada em tempo real por outras máquinas, o uso de ferramentas para estocar, tratar e distribuir as informações assim geradas por todos os elos das cadeias produtivas reorganizadas para enfrentar a concorrência que ampliou seu espaço de atuação e pressão sobre as empresas e indivíduos a nível mundial. A força da mudança técnica é tal que o conjuntos dessas novas técnicas e padrões de organização são chamadas de tecnologias disruptivas, aquelas que, uma vez experimentadas e difundidas no tecido produtivo, geram ganhos de produtividade tão elevados que anulam as técnicas antes concorrentes, agora obsoletas, e obrigam a todos os competidores a adotarem alguma das suas formas, adequadas a seus processos produtivos e características dos seus produtos. Os robots não serão substituídos por trabalho humano, softwares não serão substituídos por registros feitos à mão, jamais teremos manipulação genética sem aparelhos avançados e ciência aplicada.

Assim, os exercícios microeconômicos de reversibilidade nas técnicas produtivas produzem apenas questões de prova – uma disciplina boa para avaliar o raciocínio abstrato dos alunos. A duras penas essas pobres almas que sofrem ao tentarem resolver a matemática que estruturam as questões dos exercícios descobrem, enfim, que uma empresa capitalista não é um ambiente aonde se trabalha ao executar tarefas, é, na verdade, um lugar onde se segue ordens monitoradas por um servidor localizado em qualquer parte do mundo conectado por redes de alta velocidade. Noutras palavras, a expansão que vier será sem elevação do trabalho nas plantas fabris. Crescimento sem emprego. Assim fez e fará o capitalismo, aumenta de maneira formidável a produtividade do trabalho. Por isso mesmo, precisa cada vez menos dele. Finalmente um mundo ausente da escassez. Toda previsão sobre eventos no longo prazo sobre o estado da economia é uma temeridade, erros sucessivos e miopia auto-interessada cegam os agentes econômicos. Mesmo o grande John M. Keynes, ao adentrar no mundo das profecias, viu um futuro para os seus netos que não se materializou jamais.

Qual o problema, então, que gera o desconforto, a percepção de afastamento entre o mundo exterior e o nosso mundo nos trópicos? Como conciliar este crescimento espantoso da produtividade com uma educação de má qualidade? Como ajustar um mundo com esta intensidade no uso e difusão das técnicas mais avançadas com uma visão do mundo anti-iluminista, cujo fundamento é a salvação das almas em face do iminente retorno do Salvador. Precisamos de novas instituições para gerenciar os conflitos antigos, a redistribuição da riqueza e da renda sempre adiadas e agora não mais prometida, de novas instituições para a proteção social num mundo de desemprego produtivo permanente, no qual o benefício social da saúde pública gerou um problema social econômico-contábil – os idosos teimam em continuar vivos, sem qualquer propósito conhecido! Efetivas possibilidades de gestão pública com o uso do big data estão disponíveis e poderiam ser utilizados na gestão da saúde pública; no entanto, a privatização do SUS e a desnacionalização de empresas do setor com a sua transformação em ativos para aplicação financeira, excluirá parte significativa da população pobre, subempregada e sem acesso aos seguros privados de saúde. O crescimento institucionalizado do trabalho precário agregará angústia ao mero desconforto. Resta uma questão, posso estar enganado. Ser apenas mais um negativista a oferecer lamúrias e ressentimento. Felizmente isso pode vir a ser verdade. A ciência me obriga a considerar a dúvida metódica como um excelente guia. Quem sabe e Caetano terá novamente razão quando, ao final daquela linda poesia, apontando para a tolerância, nos alenta:
“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem Apenas sei de diversas harmonias possíveis sem juízo final”.
Pode vir a ser assim. Veremos.

*Hamilton Ferreira é pesquisador colaborador do Núcleo de Estudos Conjunturais da Universidade Federal da Bahia Professor (NEC/UFBA). Professor de Organização Industrial e Estratégia Competitiva na graduação e na pós graduação da Faculdade de Economia  da UFBA. Doutor em Teoria Econômica no Instituto de Economia da UNICAMP.

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