Educação

As ações afirmativas e a educação no Brasil

Imagem As ações afirmativas e a educação no Brasil
Bnews - Divulgação

Publicado em 21/03/2019, às 16h04   Penildon Silva Filho*


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A lei de cotas aprovada no Congresso Nacional em 2012, sancionada pela presidenta Dilma e que está em plena vigência nas seleções para as instituições de ensino superior públicas federais brasileiras representou um marco na luta pelos direitos humanos sociais, econômicos e políticos no Brasil e no mundo e é resultado de uma longa luta dos setores sociais contra as desigualdades sociais, de gênero e especialmente étnico-raciais. 

As políticas de ação afirmativa na Educação Superior no Brasil tornaram-se pauta de reivindicação de movimentos sociais e políticas públicas de Estado nos âmbitos federal, estadual e nas universidades, sendo sempre tema de debates muito intensos, com uma ênfase bem maior nos últimos anos. A reserva de vagas para afrodescendentes e estudantes de escolas públicas nas universidades integrou a pauta da Reforma Universitária em 2005, que resultou no Programa de Reestruturação das Instituições Federais de Educação Superior (REUNI) e em alguns projetos de lei no Congresso Federal, e essa proposição de reserva de vagas é a proposta mais clara e difundida de ações afirmativas para a Educação Superior no Brasil, embora não se constitua na única. 

Segundo vários estudiosos da área de Educação e Direito, há uma tipologia da discriminação. A discriminação racial ou de gênero seria, citando a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial: “qualquer distinção, exclusão, restrição, ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de Direitos Humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro canto da vida pública (art 1º). “

Dessa definição de discriminação racial e discriminação de gênero, configura-se a forma mais visível de prática discriminatória, que é a do tipo discriminação intencional ou tratamento discriminatório, em que as pessoas são explicitamente discriminadas, na escolha para postos de emprego, na definição salarial discriminatória dos empregados de uma mesma empresa, na ascensão hierárquica nas corporações, no tratamento desigual dispensado pela polícia aos negros ou aos brancos, e até no acesso a locais públicos, em muitos casos. 

Mas há a discriminação por impacto desproporcional ou adverso. Esta não necessariamente é de caráter intencional, deliberado, planejado, mas há procedimentos administrativos, legais ou normativos de órgãos públicos e de empresas que acabam por reproduzir a desproporcionalidade no acesso aos bens materiais, aos postos de trabalho, aos espaços de poder e ao usufruto de resultados econômicos na sociedade. Isso ocorre quando uma determinada norma, instituída de forma aparentemente “neutra”, estabelece um mecanismo de seleção ou acesso que reproduz uma desigualdade de fato, que já existe na Sociedade e que precisaria de uma política pública “corretiva”. Esse é o caso do vestibular e outros processos seletivos para ingresso nas universidades. 

Contrapondo-se às discriminações intencional e por impacto desproporcional há as ações afirmativas ou a discriminação positiva, que são “um tratamento preferencial a um grupo historicamente discriminado, impedindo que o princípio da igualdade formal, expresso em leis que não levam em consideração os fatores de natureza cultural e histórica, funcione na prática como mecanismo perpetuador da desigualdade”, segundo Joaquim Barbosa Gomes em seu livro “Ação Afirmativa: Princípio Constitucional da Igualdade” de  2001. A lei deve estabelecer mecanismos que se contraponham à herança histórica que reproduz a desigualdade e o status quo. 

Um debate sobre ações afirmativas e direitos humanos é aquele que estabelece a igualdade material e substancial como superior à igualdade formal. A igualdade formal preconiza um Estado mínimo que investe pouco em políticas sociais e compreende que as pessoas devem estar em competição no mercado onde todos teriam as mesmas oportunidades, mas na verdade não têm. Devemos substituir esse Estado mínimo pelo Estado social, que entende que os grupos sociais e os indivíduos têm histórias diferentes, oportunidades diferentes, acesso desigual a direitos e por isso devem ter as condições garantidas pelo poder público para se desenvolver. As ações afirmativas fazem parte desse esforço para promover essa justiça social, que é a “igualdade material”, prevista em nossa Constituição, especialmente no seu artigo 5º.

As políticas de ação afirmativa se inscrevem num esforço múltiplo de superação de discriminações sociais e raciais da sociedade brasileira, construídos na sua história de colonialismo, escravidão e exclusão social dos negros, antes e depois da "abolição", marcada pela desigualdade social e regimes políticos autoritários. A promoção de cotas nas universidades públicas democratiza o acesso às carreiras universitárias dos segmentos sociais historicamente discriminados, dos egressos de escolas públicas, especialmente dos afrodescendentes, democratizando assim a renda e o poder na sociedade. 

Essas políticas são essenciais para uma reforma mais ampla nas bases da Educação nacional e para uma transformação na estrutura de classes, que é marcada no Brasil por um corte racial explícito, como comprovam pesquisas do IPEA e IBGE. 

As cotas têm outras finalidades e resultados. A primeira é permitir a visibilidade nas carreiras de maior prestígio social dos grupos sociais anteriormente invisíveis, contribuindo para a elevação da auto-estima de negros e egressos de escolas públicas e garantindo a diversidade num país tão preconceituoso. Ao mesmo tempo, as cotas permitem pela primeira vez a discussão sobre o mito da democracia racial e têm uma função política e pedagógica na sociedade, desmistificando a realidade nacional que alijou historicamente determinados setores sociais e raciais ao mesmo tempo em que reproduz a mentira de que no Brasil não existe racismo.

A integração social e o reconhecimento social estão numa relação tensa e produtiva em que a Educação é perseguida como principal mecanismo de participação e “assimilação social”, mas essa mesma Educação é solicitada ou exigida a reconhecer as diferenças entre os diversos grupos, sejam diferenças sociais, para garantir a permanência dos que não detêm recursos econômicos, sejam as diferenças culturais, simbólicas, importantes à afirmação de identidades e ao sentimento de pertencimento.

Esse tensionamento sempre esteve presente na História do Brasil, como na Frente Negra Brasileira ou no Teatro Experimental do Negro, quando Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos tomaram a frente da organização social do movimento pela cidadania dos negros, ou mais recentemente com diversos movimentos oriundos da resistência à Ditadura Militar. A conjunção e a tensão entre integração e identidade nos objetivos desses movimentos refletem na contemporaneidade a busca pelo direito à diversidade ao lado da luta pela cidadania plena. 

A relação entre identidade e integração nos grupos subalternizados leva a uma síntese que ultrapassa a concepção e a prática do Estado liberal, aquele que estabelece apenas a igualdade formal e permite que as desigualdades de fato perpetuem as injustiças. Esse Estado liberal é um Estado monocultural e assimilacionista. O assimilacionismo integra grupos discriminados pela destruição da pluralidade cultural e pela submissão de culturas e grupos étnicos diferentes dos padrões dominantes. Há uma permanente construção pelos movimentos sociais de suas identidades e redes, que estabelecem uma disputa na arena política construindo um novo Capital Social, e esses movimentos buscam caminhar para um Estado reconhecedor das diferenças, que respeita a diversidade e promove os direitos humanos a todos os grupos sociais. As cotas em todas as universidades federais e institutos federais são hoje um caso emblemático dessa disputa de hegemonia na sociedade, hegemonia social, cultural, econômica e étnica.

As transformações na sociedade contemporânea assumem um perfil complexo, não existem apenas as contradições de classe social; há também contradições e discriminações de etnia e cor de pele, de gênero, de orientação sexual, conformando um mosaico e uma “bricolage” de demandas e desejos por integração à sociedade e seus direitos, simultaneamente ao reconhecimento da diferença e ao respeito a um lugar próprio, distinto e singular no social. A superação do Estado Liberal, homogeneizador e imparcial, redutor das diferenças e reprodutor das desigualdades reais deve se dar lugar a um novo modelo, resultado das lutas sociais e do fortalecimento da sociedade civil, um Estado Social, que servirá para promover direitos. 

As ações afirmativas são um instrumento e um conceito valioso, conceito bem sintetizado por Boaventura de Souza Santos de que “devemos lutar pela igualdade quando a diferença nos inferioriza e pela diversidade quando a igualdade nos descaracteriza”. A experiência das universidades e institutos federais com as cotas indica como o acúmulo de experiências e tensionamentos da sociedade civil pode repercutir numa comunidade redefinindo seus valores, permitindo que o debate aflore, suplantando a dissimulação e o silêncio e impactando na mudança da convivência social, na reciprocidade social, na mudança de valores e cultura. 

Recentemente, surgem de novo propostas para abolir as ações afirmativas, incluindo aí as cotas nas universidades, com o discurso de que essas ações diminuiriam a qualidade acadêmica na Universidade, ou que os grupos beneficiados pelas ações afirmativas não mereceriam essas políticas ou eles não mais demandariam as mesmas, afirmam que se deve reconhecer o mérito dos indivíduos. São projetos da bancada federal do presidente da república, do PSL e outros.

Esses argumentos já caíram por terra há algum tempo, e servem apenas para tentar retirar direitos e excluir parcelas da população que pela primeira vez conseguem ingressar em vários cursos das universidades. Após a entrada dos cotistas não houve uma diminuição da qualidade nas universidades, e o Brasil avançou várias posições no ranking internacional de produção científica. Na maioria dos cursos se observou que os cotistas tinham rendimento médio superior ao do rendimento dos não cotistas, demonstrando que antes não havia a entrada desses alunos de escolas públicas mais pelo fato de que a seleção no ingresso privilegia quem teve acesso a determinadas escolas que preparavam e adestravam os candidatos para enfrentar as provas da seleção, além das questões econômicas que efetivamente interferem nesse processo.

As propostas de projetos de lei para extinguir as cotas e outras ações afirmativas aparecem num momento de tentativa de crescimento dos grupos e ideias conservadoras, tentando criar exposição pública e obter dividendos políticos, mas sem nada que embase tecnicamente essas propostas de retirada de direitos. O Brasil é um país onde existem discriminações sim, basta ver os rendimentos de homens sistematicamente superiores aos das mulheres e o rendimento dos brancos sempre superior ao dos negros, mesmo quando esses grupos têm o mesmo nível de escolaridade. Isso está fartamente documentado em pesquisas de mais de duas décadas pelo IBGE, falta bom senso e honestidade intelectual daqueles que propõe a retirada de direitos, que deveriam pesquisar mais esses dados. O acesso às universidades antes das cotas, também segundo pesquisas do Instituto de Pesquisas Econômicas

Aplicadas – IPEA, era de candidatos com perfil branco e de segmentos sociais mais ricos, e isso ocorria não porque os brancos eram mais inteligentes, mas porque havia discriminação e desigualdade de renda e oportunidades. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reúne muitos órgãos de pesquisa e da sociedade civil, publica pesquisas há alguns anos sobre o fato de que a taxa de homicídios dos brancos está em queda no país, enquanto a taxa de homicídios entre os negros só faz aumentar, o que indica outra dimensão da desigualdade na Sociedade. 

Um debate mais qualificado torna-se urgente, especialmente quando sabemos que o Brasil ainda é um país tão desigual e herdeiro de uma tradição escravocrata, embora muitos brasileiros ainda teimem em afirmar que não existe racismo, machismo e outras discriminações.

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