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Golpes, ditaduras e a Educação

Imagem Golpes, ditaduras e a Educação
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Publicado em 29/03/2019, às 12h52   Penildon Silva Filho*


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Em mais uma jogada política controversa no complexo tabuleiro do poder no Brasil, o presidente da República pediu na última segunda-feira que os militares comemorassem o golpe civil-militar de 1964. Alguns oficiais já marcaram na data de 31 de março cerimônias para saudar a fatídica efeméride, outros como no Rio Grande do Sul se negaram a participar das “comemorações”. A declaração presidencial e seus desdobramentos provocaram muito debate no país, e na quinta-feira, a Ordem do Dia divulgada pelo ministro da Defesa fazia uma releitura histórica invertida, ao indicar que os militares apenas acolheram o clamor da maior parte da Sociedade contra a “caminhada do Brasil rumo ao totalitarismo”.

A reação às declarações desastrosas e desrespeitosas do mandatário principal do país em favor do golpe e por conseguinte em favor da tortura, do assassinato e da repressão reuniu num mesmo campo vários atores, assim como houve reação à Ordem do Dia do Ministério da Defesa. O Ministério Público Federal arguiu que pode se tratar de crime de responsabilidade exaltar a ruptura da ordem democrática e o elogio a crimes contra a Humanidade; a Justiça Federal de Brasília intimou o presidente da República a se manifestar sobre a celebração do golpe, em ação que tentar barrar as comemorações em 31 de março nos quartéis; e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também repudiou a determinação de Bolsonaro. A Defensoria Pública da União, o Instituto Vladimir Herzog e seis parentes de vítimas da ditadura também lançaram mão de ações na Justiça Federal e no Supremo Tribunal Federal para tentar proibir o governo de celebrar a data.
Inusitadamente, nesse episódio as instituições voltaram a defender a Democracia e o Estado Democrático de Direito, entrando em contradição com sua atuação em um período mais recente de ruptura da ordem democrática, por conta do impeachment da presidente Dilma. Claramente um golpe, pois não houve crime de responsabilidade, a deposição de Dilma não foi dentro da lei, coisa que todos os que votaram na sua deposição reconheceram claramente, pois o interesse não era punir um crime de responsabilidade, mas implementar o programa de Temer, a “Ponte para o Futuro”, do PMDB.
Em mais um recuo da presidência, na quinta-feira, dia 28 de março, o presidente desautorizou seu porta-voz e afirmou que não queria “comemorar” o golpe de 1964, apenas “rememorar” o mesmo, para avaliar pontos positivos e negativos. Se fosse realmente um erro do porta-voz da presidência, com essa envergadura, o presidente não teria esperado de segunda até quinta-feira para se pronunciar e corrigir um equívoco tão impactante, e com certeza deveria demitir o seu porta-voz, que o expôs a correr o risco de enfrentar um processo de impeachment por crime de responsabilidade.
Como cada recuo seu vem acompanhado por uma nova contradição, o presidente afirma que a Ordem do Dia dos militares faz apenas um relato histórico. Não se trata de um relato histórico, mas na verdade de uma mistificação histórica para recontar em novas bases a História Nacional. Em um dos trechos de um texto que omite as torturas, assassinatos, repressões aos movimentos sociais, a cassação de direitos políticos e exilados, é afirmado: “55 anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da nação brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da história”. Ou ainda que o golpe de 1º de abril teria legitimidade porque o Congresso Nacional declarou vaga a cadeira de presidente da república. Trata-se de uma grande desfaçatez, pois o presidente João Goulart não havia renunciado, não estava fora do país, não sofrera qualquer processo de impeachment; apenas o então presidente da Câmara havia articulado essa farsa para tentar dar um lustre de “golpe constitucional”.
É importante resgatar o papel de lideranças civis, como o então presidente da Câmara dos deputados Ranieri Mazzilli, que assumiu interinamente a Presidência da República para logo depois passar a mesma para os generais. Esse resgate nos possibilita salientar que estratégias golpistas sempre preservam em sua gênese e coordenação os setores civis, militares, empresariais, grupos estrangeiros, parcelas da elite social, cultural e acadêmica (minoritária mas existente). E além dessa visão mais ampla sobre os processos de rupturas e imposição de interesses lesivos à soberania nacional e popular, pode ser elucidativo analisar o cenário internacional e a Geopolítica.
Não vivemos mais a Guerra Fria entre Comunismo e Capitalismo, com os Estados Unidos e a União Soviético competindo para conseguir os arsenais mais poderosos, os maiores avanços na corrida espacial, mais áreas de influência no globo. A queda do Muro de Berlin em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991 favoreceram a emergência do Neoliberalismo com um interesse agudo em privatizações, precarização de relações de trabalho, estímulo e desregulamentação do poder e da circulação do Capital Financeiro, abertura de mercados emergentes para os produtos dos países centrais do Capitalismo. Apesar disso, e talvez por conta justamente de trilhar um caminho contrário ao Neoliberalismo, com forte planejamento público e protagonismo do Estado na Economia, a China desponta como a segunda maior produção econômica, com a previsão de ser a primeira dentro de 15 anos, e isso ocasionou uma “Segunda Guerra Fria”, assim batizada pelo cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira. Há claramente uma mudança de hegemonia econômica no mundo e os Estados Unidos, a potência que está estagnada e perde espaços, lutam para se manter preponderantes.
Nesse contexto de disputa global, enquanto a China investe em crescimento econômico, aumento dos vínculos comerciais e de investimentos em diferentes países, os EUA investem no que foi batizado de “Guerra Híbrida”. Segundo Reid Standish (18 de janeiro 2018) em seu texto “Inside a European Center to Combat Russia's Hybrid Warfare”  “hybrid warfare is: the blending of diplomacy, politics, media, cyberspace, and military force to destabilize and undermine an opponent’s government.” Ou seja, “Guerra Híbrida é uma estratégia militar que mescla táticas de guerra política, guerra convencional, guerra irregular, e ciberguerra com outros métodos de influência, tais como fake news, diplomacia, lawfare e intervenção eleitoral externa”. Ainda segundo Manoel J. de Souza Neto no seu texto “A necessidade de estudo da guerra híbrida que assolou o Brasil na última década”, no site “Duplo Expresso”, a Guerra Híbrida combina operações de campo com esforços subversivos, pois o agressor, geralmente um potência internacional, pretende evitar responsabilização ou retaliação, por isso não há uma guerra aberta, declarada, mas uma série de sabotagens, financiamento de grupos internos de desestabilização, alianças com segmentos do Estado para derrubar governos. “O termo guerra híbrida pode ser utilizado para descrever a dinâmica complexa e flexível do espaço de batalha, demandando uma resposta altamente adaptável e resiliente. Existe uma variedade de outros termos empregados para se denominar o conceito de guerra híbrida: ameaças híbridas, influência híbrida, adversário híbrido, guerra não-linear, guerra não-tradicional, ou guerra especial.”
Exemplos desse tipo de desestabilização podem ser encontrados na tática de desestabilização e derrubadas ou tentativas de derrubada de governos na Líbia, na Síria, na Ucrânia e na América Latina. Na nossa América Latina, um novo tipo de golpe, de caráter parlamentar, midiático, judicial e policial conseguiu depor os presidentes de Honduras, do Paraguai e do Brasil. A melhor exemplo de guerra Híbrida pode ser visto hoje na Venezuela: existe um bloqueio externo dos EUA para inviabilizar a Economia venezuelana, há o financiamento e apoio político e diplomático a um grupo político que procura se autoproclamar o novo governo, tentando criar uma ruptura institucional e operações de sabotagem e cooptação dentro das próprias forças armadas do país. O que identifica as ações de guerra híbrida na Venezuela, Brasil, Síria e Líbia é o desejo dos EUA e das grandes empresas de petróleo em se apoderar de grandes reservas desse insumo no mundo.
Consideramos que o Brasil se encontra em meio dessa Guerra Híbrida, onde a estabilização e pacificação do país não está nos objetivos do grupo hegemônico hoje no Estado. “O atual governo não quer governar, ele quer guerrear”, pois o processo de esgarçamento das relações sociais e institucionais, a agudização da crise econômica e dos problemas da miséria, da fome e do desemprego e os embates com atores claramente de perfil fascista e totalitário fazem parte de uma estratégia para facilitar a destruição do pacto da Constituição de 1988. Mas não somente isso, esse cenário e essa estratégia beligerante, que é assumida pelo governo atual, vem conseguindo permitir a doação das reservas de petróleo do Pré-Sal, privatizar aos poucos a Petrobras, a Caixa Econômica e o Banco do Brasil, tentam aprovar uma reforma da Previdência que tira do texto constitucional a Previdência Pública e o substitui por um regime de capitalização, bem do gosto dos bancos que devem lucrar muito com essa mudança. Mais recentemente foi anunciada pela presidência a entrega da Biodiversidade da Amazônia para interesses estrangeiros, a retirada de necessidade vistos para estadunidenses entrarem no país e o engajamento do Brasil na estratégia de desestabilização da Venezuela, que pode descambar para uma guerra regional de proporções incalculáveis. Tudo isso não aconteceria em situação de normalidade democrática.
Esse período de entrega do patrimônio nacional e destruição de direitos sociais é permitido pela ausência de normalidade na política e ausência da própria Democracia. A Educação, assim como as demais políticas sociais, vem sofrendo as consequências, a começar pela imposição da emenda constitucional 95, que congela os gastos sociais por 20 anos, medida que está congelando salários de professores, fechando escolas, diminuindo a qualidade e extinguindo muitos programas no MEC, e já se aponta para a tentativa de criminalização das universidades com o objetivo claro de fechamento das mesmas e adoção do sistema puramente privado através dos “vouchers” para os alunos escolherem qual instituição privada eles podem acessar.
Além do aspecto da retirada de direitos dos que hoje querem comemorar a ditadura, precisamos lembrar que a Ditadura perseguiu, matou e reprimiu milhares de pessoas durante 21 anos, instaurou um regime de medo e de impotência em todos e demorou para ser derrotada, e mesmo assim vários de seus protagonistas permaneceram livres e articulando reações à Democracia. Vale lembrar que no momento em que o presidente pede para que se comemore o golpe, a tortura, o assassinato de mulheres e de crianças, os educadores na Educação Básica e na Universidade, os estudantes, os profissionais da Educação, todos devemos fazer o que sabemos fazer melhor: recuperar a Histórica, discutir o conhecimento, debater livremente e sem medo uma alternativa democrática ao que foi colocado.
Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire são três dos grandes nomes da Educação. Os três foram perseguidos. Darcy chegou a ser preso e encarcerado, perseguido mesmo em outros países, como no Uruguai; Paulo Freire teve seu programa de Alfabetização destruído e precisou se exilar em vários países, como Chile, Estados Unidos e Suíça; Anísio Teixeira foi assassinado em 1971, com seu corpo encontrado no fosso de um elevador no Rio de Janeiro, claramente com sinais de que fora colocada ali depois de ser capturado e morto. Um óculos de Anísio foi encontrado em cima de uma pilastra ao lado do corpo, intacto e fechado, e são um dos muitos sinais que a cena foi montada para encobrir o assassinato do grande educador baiano.
Anísio era um defensor da Educação integral, da Escola para todos, do financiamento generoso para a Educação, laica, pública, universal, gratuito e para formar cidadãos e pessoas capazes de participar do processo democrático. Esse legado dos três, Freire, Darcy e Anísio, deve ser debatido e fortalecido nesse momento de relembrar o que foi a última ditadura no Brasil e os riscos que existem de mais retrocessos no momento atual.

*Penildon Silva Filho é professor da Ufba e doutor em Educação. Escreve para o BNews semanalmente

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