Meio Ambiente

Da lama ao caos, um povo roubado já não se engana

Imagem Da lama ao caos, um povo roubado já não se engana
O transcorrer da história é marcado pelo avanço da capacidade humana de transformar a natureza em função de suas necessidades e desejos  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 02/04/2019, às 20h32   Daniel Jeziorny


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A história da humanidade é a própria história da apropriação da natureza para a satisfação das necessidades e, mais tarde, desejos humanos cada vez mais complexos. A natureza, como bem nos recorda o cientista social Mészáros, é “substrato objetivo de nossa própria existência”.

Assim, é importante não perder de vista que o transcorrer da história é marcado pelo avanço da capacidade humana de transformar a natureza em função de suas necessidades e desejos. Além disso, de que alterações na forma de organização social da produção se impõem sempre que esta passa a obstaculizar esse movimento, de apropriação do ambiente natural com vistas à complexificação de nossas formações sociais.

Afinal, ao menos de um ponto de vista evolucionista, não faz sentido insistir na manutenção de um modelo de desenvolvimento apoiado em relações de produção que entravem o avanço das forças produtivas, isto é, que obstaculize nossa capacidade de transformar o substrato de nossa existência em favor da melhora de nossas condições socioeconômicas. Por outro lado, tampouco fará sentido um complexo de forças produtivas que coloque em xeque a continuidade futura desse movimento.

Se o avançar das forças produtivas é condição sine qua non da evolução histórica, a manutenção das condições gerais desse processo também o é. E é exatamente nesse ponto que as correntes teóricas que se debruçam sobre os imperativos ambientais do desenvolvimento cobram e ganham importância decisiva.

Na seara das ciências sociais aplicadas são diversas, por vezes diametralmente opostas, estas correntes, que defendem distintas saídas à questão cada vez mais urgente da degradação do meio natural. E em que pesem as diferentes receitas, um diagnóstico se afirma conclusivamente: se linhas teóricas distintas e antagônicas defendem diferentes e antagônicos remédios para uma mesma doença, não resta dúvida de que a enfermidade é real; ela existe.

Talvez por isso, no início do mês passado, a Assembleia Geral das Nações Unidas tenha declarado o período 2021-2030 como a “Década da ONU sobre Restauração de Ecossistemas”. Iniciativa que visa intensificar a recuperação de ecossistemas degradados e destruídos como forma de combate ao aquecimento global. No bojo desta medida, a referida instituição não poupa tinta para chamar atenção à urgente necessidade de melhora em aspectos centrais à manutenção evolutiva da humanidade, como a segurança alimentar, o fornecimento de água e a preservação da biodiversidade – todos elementos assentes na manutenção e recuperação de ecossistemas terrestres e marinhos.

Afinal, de acordo com a própria ONU, a degradação destes sistemas compromete o bem-estar de 3,2 bilhões de pessoas e custa, ao ano, cerca de 10% da renda global, expressa sobretudo em perda de espécies e serviços ecossistêmicos.

A América Latina é peça-chave neste quebra-cabeça. Para se ter uma ideia, Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela estão entre as nações consideradas de “mega-diversidade” biológica do mundo, pois seus ecossistemas abrigam entre 60% e 70% de todas as formas de vida terrena. Além disso, o continente latino-americano recebe cerca de 29% das chuvas mundiais e abriga um terço das reservas renováveis de recursos hídricos – fundamentais não apenas às atividades produtivas como a agricultura, mas à própria vida.

No entanto, desde que “as botas espanholas pisaram por primeira vez as areias brancas das Bahamas”, a forma de inserção das economias da região no contexto da economia mundial intercorre mediante a exploração predatória de suas riquezas naturais. De lá para cá, surpreendentemente, quase nada mudou.

O “neoextrativismo” – como é conhecido em boa parte do meio acadêmico – é hoje expressão de uma modalidade de acumulação primário-exportadora que caracteriza a inserção das economias dos países latino-americanos na nova divisão internacional do trabalho. Trata-se do resultado concreto de planos de desenvolvimento calcados no crescimento econômico a partir da exploração de recursos naturais e bens primários, como o minério de ferro e a soja.

Conforme defendem alguns estudiosos, com base nessa estratégia, algumas economias latino-americanas experimentaram vigorosos incrementos na demanda por seus recursos naturais, que acabaram por consubstanciar aumentos suficientes nas receitas de exportações que, por seu turno, e no caso dos governos mais progressistas da região, financiaram programas de transferência de renda que contribuíram à redução dos índices de pobreza.

Contudo, este modelo está repleto de contradições. Ademais das catástrofes socioambientais que causam destruição de ecossistemas e cobram centenas de vidas humanas, a desindustrialização precoce que provoca afunda as economias que o adotam na dependência comercial, tecnológica e financeira em relação às economias centrais. Nessa toada, sufoca-se a disseminação dos efeitos do crescimento para outros setores da economia, estreitando-se ainda mais as já minguadas possibilidades de criação de postos de trabalho, sobretudo os de melhor qualidade.

Como se não bastasse, crescem as contendas e conflitos abertos em torno da apropriação de bens essenciais cada vez mais escassos, como a terra, mas especialmente a água, um bem comum que vem sendo drenado privadamente em nome desse modelo de desenvolvimento que se alimenta de sua própria carne, e em franco desfavor de milhares de famílias que se dedicam, por exemplo, a produzir alimentos de boa qualidade destinados à mesa das pessoas de todas as classes sociais, mas especialmente daquelas que mais necessitam. 

Nessa linha, é emblemática a situação do estado de Minas Gerais, que abriga o maior mineroduto do mundo: são mais de 500 quilômetros de um duto, propriedade de uma empresa transnacional da mineração que atravessa mais de trinta municípios brasileiros. Apenas por esse aparato, passam cerca de 26 milhões de toneladas de minério de ferro por ano, carregados por cerca de 37,5 milhões de litros de água por dia, volume suficiente para o consumo diário de 200 mil pessoas.

Infelizmente, como as tragédias recentes de Mariana e Brumadinho comprovam, as repercussões desse modelo de desenvolvimento têm sido devastadoras, seja do ponto de vista ambiental, social, econômico, mas, sobretudo, humano. Afinal, catástrofes como aquelas, que não são ambientais, mas de uma forma autofágica de territorialização do espaço, nos põem, talvez pela primeira vez na história, diante de um quadro no qual não podemos afirmar, com certeza, que o futuro venha a ser melhor que o presente. 

Resta saber qual história pretendemos escrever daqui para frente: aquela que viemos acelerando até aqui, que degrada crescentemente as condições naturais, ao ponto de provocar sérias tragédias socioambientais, como as que ocorreram recentemente no estado de Minas Gerais; ou uma que busque um caminho distinto deste, em cujos renovados mecanismos de acumulação predatória reafirmam – desgraçadamente – que a sanha da exploração desmedida da natureza escorre lama e sangue por todos os poros.

Da lama ao caos, os povos que sofrem cotidianamente com a desapropriação de suas riquezas naturais e com o sacrifício de seu futuro, sabem bem o que não escolher.

Daniel Jeziorny - Professor na Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia. Colaborador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA.

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