Educação

A Vida é uma escola

Imagem A Vida é uma escola
Bnews - Divulgação

Publicado em 13/04/2019, às 09h44   Penildon Silva Filho*


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No ano de 2016, em julho, a banda Legião Urbana se apresentou em Salvador depois de pelo menos 20 anos sem fazer shows. Eles estavam fazendo uma turnê nacional para comemorar os 30 anos do surgimento da banda e do primeiro disco. Mais tarde, em 2018, a mesma banda voltou a se apresentar na capital baiana, coincidentemente e felizmente no dia da manifestação feminista e feminina antes das eleições de 2018 que pautou os direitos das mulheres e o respeito à individualidade, às diferenças e às realizações do gênero feminino. Vi poucas pessoas conhecidas nas duas apresentações musicais, mas isso não foi importante, estávamos todos durante o show irmanados numa conjunção musical, afetiva, existencial, num processo que podemos classificar como “transcendência”.

A escolha dos exemplos do show, de multidão, de Arte e de pertencimento a uma “tribo” tem a ver com a necessidade de pensarmos a Educação como um espaço para a transcendência, uma transcendência que vise a realização pessoal, uma vida significativa, com a busca pela felicidade pessoal e da Sociedade, e não apenas uma Educação que prepare para o “mercado de trabalho” e adestre as pessoas a buscar apenas a sobrevivência, sem uma transcendência. E significa pensarmos Educação mais amplamente do que Escola, a Vida é uma Escola permanente onde aprendemos, e podemos aprender mais significativamente e com mais prazer.

Transcender significa, aproveitando diversas fontes, “se elevar acima do vulgar, se superar, ir além de ou ultrapassar alguma coisa, ultrapassar o comum, o rotineiro, entrar em contato com algo superior, que dê sentido e significado à vida”. Para a psicologia, “transcender está relacionado com pensamentos e emoções, e é a capacidade do ser humano de transpor certas barreiras, se tornando superior a algumas circunstâncias” (ver em: https://www.significados.com.br/transcender/ ). Algumas pessoas transcendem com a religião, mas é um erro entender que apenas a experiência religiosa consegue atingir essa característica ou estado.

Nossa vida está cheia de momentos e de situações em que nos damos conta de que algo maior existe, que a nossa existência pode ser mais significativa. Isso pode ocorrer com a Arte quando nos emocionamos com alguma obra (literária, musical, visual, cinematográfica, gastronômica, performance) e percebemos que a nossa existência não se resume à busca pela subsistência ou se restringe ao cumprimento de regras de trabalho, convenção social e de manutenção da ordem.

A transcendência pode ser pela Ciência. Até hoje é emblemático o início do livro e do documentário “Cosmos”, do astrônomo Carl Sagan, quando ele fala de uma experiência transcendente quando observamos, compreendemos e investigamos a Natureza. Vejam o primeiro parágrafo do texto de Sagan: “O cosmos é tudo o que existe, existiu ou existirá. A mais insignificante contemplação do cosmos emociona-nos — provoca-nos um arrepio, embarga-nos a voz, causa-nos a sensação suave de uma recordação distante. Sabemos que nós estamos a aproximar do maior de todos os mistérios. O tamanho e a idade do cosmos ultrapassam a comum compreensão humana. Perdida algures entre a imensidão e a eternidade fica a nossa minúscula casa planetária. Numa perspectiva cósmica, a maioria dos interesses humanos parecem insignificantes, até mesquinhos.”

A transcendência se dá também pela Política, temos muitos exemplos de pessoas que transcenderam na defesa de direitos humanos e sociais e das garantias democráticas, na defesa de uma existência mais justa. São lideranças que nos inspiram e nos levam a sonhar, e sem sonho não se vive: Gandhi e sua luta de resistência não violenta pela independência da Índia e pela integração das diferentes religiões na busca da Paz e da prosperidade; Martin Luther King e sua luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, que até a década de 1960 tinham um sistema de apartheid racial e social. Ao lado desses, temos Nelson Mandela, que passou 27 anos na prisão, e só foi libertado em 1990 depois de uma campanha internacional e da intensificação da guerra civil contra o apartheid, e após sua libertação se tornou o presidente que comandou a derrubada do regime racista da África do Sul. Não menos importante, o Brasil tem (dentre outros) Lula, símbolo dos que vieram de baixo, do Nordeste, da exclusão, e que liderou uma experiência que combinou crescimento econômico, redistribuição de riqueza e aprofundamento da Democracia, até hoje respeitado internacionalmente. A Política pode nos ajudar a transcender, pode ser motivo de regozijo pela realização de Justiça, de Libertação e de superação da opressão.

A transcendência cada vez mais se expressa pelo Amor, à medida que saímos da Idade Moderna e nos aprofundamos na Idade Contemporânea, como bem identificou Luc Ferry em seu livro “A Revolução do Amor”: "É uma evidência que salta aos olhos, que percorre e transtorna permanentemente nossa vida privada. No entanto, mal ousamos confessá-la, a não ser na mais restrita intimidade: é o amor que dá sentido à nossa existência."

Essas transcendências pelo Amor, pela Ciência, pela Política, pelo Trabalho e pela Arte evidentemente que cada pessoa as vive por meio de suas experiências mais significativas, são experiências que são acionadas por meio de músicas, livros, poesias, viagens (aprende-se muito nas viagens), uma pessoa ou acontecimento, e quando se encontram esses elementos associados há uma sensação agradável de rememoração desses momentos importantes.

A Vida então é esse espaço de realização e de aprendizado, e a Escola é parte da Vida, compreendendo-se que se aprende mesmo depois que se recebe a certificação da Escola, e é importante perceber que a formação e a Educação devem ter essa dimensão mais ampla.

Alain de Botton é um escritor e produtor residente em Londres, famoso por popularizar a Filosofia e divulgar seu uso na vida cotidiana. Além de alguns livros que ganharam notoriedade e respeito de público, da publicação de textos em jornais e de uma produtora que lança vídeos e documentários com as ideias do autor, Botton lançou um projeto, a “The School of Life”, com o interesse em contribuir com um processo formativo de inteligência emocional. Botton entende que é possível estimular a reflexão e o pensamento acerca da vida, das frustrações, dos relacionamentos no Amor e no Trabalho, no âmbito da Arte, da Cultura e do Lazer, sempre buscando uma vida significativa, que priorize a realização e não apenas a sobrevivência, o acúmulo de bens ou da busca de status.

No dizer do projeto da School of Life, especificamente sobre a dimensão do Trabalho, “Uma das ideias características dos tempos modernos é que nós não esperamos que o trabalho seja simplesmente um suplício a que nos submetemos para sobreviver. Nós temos altas expectativas em relação a essa grande parte das nossas vidas. Idealmente, nós queremos que o trabalho seja ‘significativo’, o que envolve a crença de que nós estamos de alguma forma ou reduzindo o sofrimento, ou aumentando a felicidade de outros seres humanos. Parece haver três coisas que dão significado a um trabalho. Primeiro, um trabalho significativo aproveita as partes mais profundas, sinceras e talentosas de nós. Então pessoas diferentes necessariamente irão achar diferentes tipos de trabalhos significativos, de acordo com o que está dentro do seu eu mais profundo. Em segundo lugar, um trabalho significativo é um trabalho que, em algum nível, ajuda outras pessoas, que conserta um problema que seres humanos têm: um trabalho que, de forma grande ou pequena, serve à humanidade. Um trabalho significativo fornece um serviço para os outros. E, em terceiro lugar, um trabalho parece significativo quando a pessoa o desempenhando pode sentir profundamente, no dia a dia, o impacto de seu trabalho em uma audiência. Em outras palavras, o trabalho não apenas é teoricamente significativo, ele realmente parece significativo à medida que alguém o desempenha ao longo de um dia comum.” Ver mais no link: https://www.theschooloflife.com/

Tanto Alain de Botton quanto Luc Ferry propõem uma “espiritualidade laica” na qual as pessoas se encontrem nessas múltiplas dimensões da vida objetivando a sua libertação de disposições emocionais e sociais pré-estabelecidas de sofrimento e reprodução da opressão, num esforço por meio da Cultura, da Filosofia e da busca de uma reflexão sobre os limites e o meio social delas. Mas se pensarmos em educadores brasileiros, identificamos elaborações até mais sofisticados, como em Paulo Freire com sua Pedagogia do Oprimido, sua percepção de que toda Educação é um ato político e por isso pode levar ao aprisionamento social e mental ou à libertação e realização humanas. Pensemos em Anísio Teixeira, que preconizava uma Educação Formal que não separasse nem reproduzisse as desigualdades sociais ou perpetuasse a estrutura de classes, pensou uma escola generosa, grande, com a Biblioteca no centro, com atividades formativas sociais, culturais, esportivas e para a vida em Sociedade. Uma formação que que fosse a base da Democracia.

São todas concepções generosas de Educação, de formação por toda a Vida, de formação para a vida em Sociedade, buscando a realização pessoal por um Trabalho significativo, concepções que vem mais ao encontro da reflexão da contemporaneidade, que nos exige cada vez mais um compromisso com uma vida planetária e interligada com a obrigação de cuidar das pessoas e do meio ambiente. Torna-se mais importante formar as pessoas para o respeito ao diferente, para a convivência, para a busca do bem comum, para a elevação intelectual e científica da Humanidade.

A Educação não é apenas escola, ela também se processa em nossa Vida em suas múltiplas dimensões, mas a Escola não pode mais ser o espaço da preparação e do adestramento para uma sobrevivência rebaixada ou repetitiva, até porque o avanço tecnológico pode nos conduzir para uma sociedade de excluídos e marginalizados ou para uma Sociedade onde a riqueza, o poder, a Cultura e o trabalho criativo possam ser estendidos por toda a sociedade.

São reflexões importantes, especialmente como refúgio de um momento em que o atual ministro da Educação, em palestras on line (disponíveis na internet), aconselha a sua audiência a não discutir com quem pensa diferente, apenas a xingar, o que não deixa de ser uma reedição do irracionalismo, do anti-intelectualismo e da cultura de ódio que lançou e ainda lança algumas sociedades no abismo da desagregação social, do autoritarismo fascista/nazista ou até da guerra civil. Pensar a Educação e Sociedade se torna cada vez mais importante por conta dessa onda de intolerância e de rebaixamento do projeto educacional.

*Professor da UFBA, Doutor em Educação
E-mail:[email protected]

Classificação Indicativa: Livre

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