Educação

A Universidade como alvo dos interesses privatistas

Imagem A Universidade como alvo dos interesses privatistas
Bnews - Divulgação

Publicado em 19/04/2019, às 18h19   Penildon Silva Filho*


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O presidente Jair Bolsonaro, em entrevista à Rádio Jovem Pan no dia 8 de abril do presente ano, afirmou que as Universidades públicas, especialmente as universidades federais, não fazem pesquisa científica no Brasil, em mais um ataque de uma série de agressões descabidas proferidas pelo mandatário, filhos e assessores contra a Educação Superior pública. O presidente ainda indicou que quem faz pesquisa científica no Brasil são instituições privadas, e deu o exemplo da Universidade Mackenzie em São Paulo. Apesar de ser uma declaração desprovida de qualquer traço de verdade e sem nenhum fato que a corrobore, precisamos dialogar com a Sociedade para evitar que mais uma mentira seja transformada em verdade pela estratégia de repeti-la mil vezes. Cabe também aos meios de comunicação começar a exercitar um pouco de jornalismo investigativo e de relevância social para desmistificar essa e outras mentiras que embasam o desiderato da destruição e do desmonte dos patrimônios nacionais, dentre eles a Universidade Pública.

Logo em seguida à desastrosa entrevista à Rádio Pan, que claramente apoiou a candidatura de Bolsonaro a presidente em 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação dos Reitores das Universidades Federais (ANDIFES), se pronunciaram fortemente. “A afirmação do presidente da república está evidentemente incorreta”, afirmou o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, enquanto que o Reitor da Universidade Federal do espírito Santo e atual presidente da Andifes, professor Centoducante, indicou que a afirmação de Bolsonaro “decorre de absoluta falta de informação”. Ambos indicaram que bastava verificar os levantamentos feitos por órgãos do próprio governo federal, como os feitos pelo INEP e pela CAPES, para ter ciência que as universidades públicas, federais e estaduais, são responsáveis pela pesquisa científica no país, em qualquer área do conhecimento, das Humanidades às Ciências Exatas, das Engenharias às Letras, das Artes às Ciências da Saúde. 

Quando se avalia o número de publicações, o percentual das universidades públicas ultrapassa 95% do total, mesmo sabendo-se que 80% dos alunos da Educação Superior no Brasil estão em instituições privadas. É importante salientar isso pois o governo atual procura indicar que as universidades públicas deveriam ter a mesma gestão, objetivos e estrutura de instituições privadas. Isso é um absurdo, pois as instituições privadas basicamente se dedicam ao ensino, seus professores são professores “horistas”, ganham pelo número de aulas dadas, não têm tempo para se dedicar à pesquisa e à extensão. Os interesses do “mercado”, apontado como fator de regulação e paradigma pelos neoliberais mistificadores, são de curto prazo, ou seja, interessa às empresas–faculdades mais alunos, mais mensalidades, menores custos operacionais, menores gastos com docentes e sem investimento em pesquisa. A pesquisa não dá retorno financeiro imediato e muitas vezes são para o avanço da Sociedade como um todo ou contribuir para a solução de algum problema social e não renderão lucro privado.

Essa distância na qualidade e produtividade científica entre as públicas e privadas ocorre num contexto em que as empresas privadas de Educação são amplamente majoritárias em número de alunos. O Brasil, diferentemente de outros países que têm empresas que investem em Ciência e Tecnologia, tem as instituições públicas e as empresas estatais algumas vezes a elas associadas como únicos espaços de produção científica. Muitas políticas públicas já foram tentadas procurando estimular o interesse das empresas privadas pela pesquisa científica, mesmo que na pesquisa aplicada apenas, aquela voltada à tecnologia com aplicação imediata. Entretanto, o Brasil como país capitalista dependente tem empresas que compram os pacotes tecnológicos das empresas nos países centrais do capitalismo, e tem seus avanços científicos e tecnológicos promovidos pelas instituições públicas, tanto empresas estatais como Petrobras, Eletrobras, Embrapa e a Estatal de produção de produção de chips no Brasil, a CEITEC S.A., quanto suas universidade públicas. E há no Brasil instituições de pesquisa que não são universidades e que produzem pesquisa de reconhecimento internacional, mas igualmente não são privadas: a FIOCRUZ na área das Ciências da Saúde é uma referência internacional e foi fundamental para o avanço da Ciência e da Saúde Pública no Brasil; o Instituto Butantã, o Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA) os institutos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, todas instituições de referência. Assim como as universidades, são todas públicas. 

Em matéria no Ciência na Rua, o presidente da SBPC ainda lembrou que o Brasil avançou na produção científica mundial nos últimos 30 anos, especialmente nas últimas duas décadas, sendo que estamos na 13ª posição mundial em publicação científica no planeta, tendo o Brasil já ultrapassado países como Rússia e Holanda. A matéria dá conta ainda de que isso tudo pode retroceder com os cortes e contingenciamentos nos orçamentos das universidades federais, nas políticas de C&T, no CNPq e na CAPES.

No site da Academia Brasileira de Ciências (ABC), há ainda uma defesa da produção das instituições públicas, com levantamentos que conduzem à mesma conclusão de que as instituições públicas são responsáveis por mais de 95% da produção científica nacional. A resposta do presidente da ABC explicita essa situação: “A primeira e tranquila reação do presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, físico, professor da UFRJ, pesquisador dos mais respeitados por seus brilhantes trabalhos em emaranhamento quântico, foi observar que “é importante fornecer ao Presidente da República a informação correta sobre as universidades brasileiras, coletadas por órgãos internacionais”. Relata em seguida que, “de acordo com recente publicação feita por Clarivate Analytics a pedido da CAPES, o Brasil, no periodo de 2011-2016, publicou mais de 250.000 artigos na base de dados Web of Science em todas as áreas do conhecimento, correspondendo à 13a posição na produção científica global (mais de 190 países)”. As áreas de maior impacto, prossegue, “correspondem a agricultura, medicina e saúde, física e ciência espacial, psiquiatria, e odontologia, entre outras”. Davidovich ressalta que “todos os estados brasileiros estão representados” nessa produção, “o que mostra uma evolução em relação a períodos anteriores e o papel preponderante desempenhado pelas universidades públicas que estão presentes em todos os estados”. Outro ponto fundamental de sua fala: “Mais de 95% das publicações referem-se às universidades públicas, federais e estaduais. O artigo lista as 20 universidades que mais publicam (5 estaduais e 15 federais), das quais 5 estão na região Sul, 11 na região Sudeste, 2 na região Nordeste e 2 na Centro-Oeste”.

No mesmo site, há o resultado de uma pesquisa da CAPES, órgão do governo federal responsável pelo acompanhamento e estímulo da pós-graduação, sobre o desempenho das universidades na produção científica de 2011 a 2016. Em ordem decrescente de produção temos as seguintes instituições: USP, UNESP, UNICAMP, UFRJ, UFRGS, UFMG, UNIFESP, UFPR, UFSC, UERJ, UFPE, UFV, UNB, UFSCAR, UFSM, UFC, UFF, UFG, UFBA. Não há qualquer menção a instituições privadas nessa lista. Sabemos que a primeira instituição privada que aparece é a PUC do Paraná em 37º lugar, e precisamos assinalar que não é uma instituição privada de caráter mercantil, trata-se de uma instituição confessional, comunitária sem fins lucrativos. Se procurarmos a produção científica de grandes conglomerados empresariais da Educação, a exemplo da Kroton, ela não existe.

Várias informações de órgãos oficias, especialmente governamentais e de instituições estrangeiras, desmentem facilmente o discurso do presidente, entretanto não devemos interpretar que a sua declaração se deve a uma pueril ignorância dos fatos, o que por si só seria extremamente nocivo em se tratando do Presidente da República. Trata-se na verdade de um discurso pensado e estruturado, de intencionalidade articulada com o interesse mais amplo que se mantém no comando do governo desde a derrubada da presidente Dilma por meio de um impeachment sem base legal, um golpe. O interesse presente no governo Temer e no atual é basicamente aproveitar o momento de crise econômica, política, social e de instabilidade estimulada por essas facetas da crise para retirada de direitos e de apropriação dos “estoques de riqueza” da Nação Brasileira pelos conglomerados internacionais e seus sócios menores brasileiros. 

Quais são os estoques de riquezas almejados pelo bloco de poder hegemônico hoje? A resposta pode ser rapidamente visualizada nas políticas dos governos Temer e Bolsonaro, na Previdência, na Saúde, na Educação, nos bancos Públicos e nas Estatais.

Com a reforma da previdência, objetiva-se apenas substituir a Previdência pública, com contribuição patronal e do Estado e com a garantia de rendimentos mínimos pelo Estado, pelo regime de capitalização dos grandes bancos. Paulo Guedes, ele mesmo um dono de fundo de investimentos que lida com fundos previdenciários privados, muito interessado nessa abertura de mercado e de lucros para eles apenas, cumpre esse papel.

Enquanto isso, o ministro da Saúde prega em suas palestras o “plano de saúde popular”, com subsídio estatal, para que as empresas de planos de Saúde possam tentar absorver um mercado que hoje corresponde a 80% da população brasileira que usa apenas o Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, eles precisam desconstitucionalizar tanto a Previdência quanto o SUS e destruir esses dois grandes patrimônios construídos nas últimas décadas a partir da Constituição de 1988, para que as empresas possam lucros com ambos. É importante lembrar que o regime de capitalização no Chile garante em média na aposentadoria apenas 50% dos rendimentos da ativa para os homens e menos de um terço para as mulheres, e hoje já há uma mobilização para extinguir o regime de capitalização e voltar à Previdência Pública. Dos 30 países que adotaram esse regime preferido pelos bancos e pelos administradores de fundos de pensão privados, 22 deles já voltaram a ter o sistema de Previdência Pública.

O Brasil tem mais da metade de seu sistema bancário no setor público, com o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e o BNDES. Hoje o governo está desmontando e desativando várias agências e extinguindo linhas de financiamento como as linhas para a casa própria na Caixa, abrindo espaço para o setor privado tomar esse mercado e praticar taxas de juros bem mais altas, o que vai prejudicar aqueles que querem adquirir sua casa própria e aumentar os lucros privados dos bancos.

Da mesma forma se objetiva extinguir o setor público da Educação Superior, para permitir que o setor privado possa imperar absoluto no usufruto desse mercado consumidor e ainda contar com o subsídio estatal para garantir seus lucros, exatamente no caso dos “plano de saúde popular” que substituirá o SUS e usará os recursos públicos. Não se trata apenas de desativar o setor público para permitir a expansão do setor privado; o que se almeja que que o setor privado se assenhore dos recursos públicos outrora destinados às instituições públicas. 

Não importa se a destruição das universidades públicas vai significar a destruição da Ciência e da Tecnologia do país, a completa submissão aos interesses transnacionais, o comprometimento do projeto de Nação do Brasil, desde que se assegure a ampliação dos lucros dos grandes conglomerados educacionais privados, controlados por mantenedoras estrangeiras, basicamente estadunidenses, e com o redirecionamento dos recursos públicos para esse setor, seguindo a tradição de nossas elites que nunca tiveram um projeto de Nação, apenas procuram se locupletar dos recursos do Estado. O interesse de uso de recursos públicos para a iniciativa privada pode ser assistido no link. Nesse vídeo o filho do atual presidente defende a extinção das universidades públicas e o uso de cheques públicos (vouchers) para as pessoas gastarem nas instituições privadas.

Não se trata de desinformação e de ignorância no discurso presidencial. Este segue um plano bem definido e articulado de apropriação dos recursos públicos pelos interesses privados.

*Penildon Silva Filho é professor da UFBA e Doutor em Educação. Escreve para o BNews semanalmente

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