Política

Precisamos falar sobre ditaduras

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Bnews - Divulgação

Publicado em 27/04/2019, às 10h47   Penildon Silva Filho*


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Os regimes ditatoriais nem sempre começam abruptamente, com uma ruptura profunda na ordem democrática, há exemplos históricos nos quais fica claro que há um processo gradual, mais ou menos rápido a depender do país. Também a ditadura precisa de uma legitimação popular, mesmo que não seja majoritária, mas ela precisa ter base social, necessita de uma parcela da população que a defenda, e em igual intensidade regimes autoritários demandam aparelhos ideológicos do Estado para defendê-los, corporações no Estado e na Sociedade que deles se beneficiem e os incorporem em suas defesas e modos de vida. Uma ditadura precisa de empresários, meios de comunicação, políticos civis, ideólogos, artistas, base social de massa em parcelas da classe média e até dos trabalhadores mais humildes.

Na Alemanha de Hitler não houve um golpe militar que imediatamente instalou uma ditadura. O partido de Hitler disputou algumas eleições, ganhou algumas, perdeu outras e foi se constituindo cada vez com mais força numa sociedade em crise econômica, social, política e cultural, usando um discurso de ódio contra determinados segmentos sociais acusados de serem a causa de todos os males da sociedade alemã, um discurso contra a política, demonizando a ação política tida como corrupta por natureza, e apresentando como alternativas a violência, o irracionalismo, o ódio aos judeus, aos militantes de esquerda, aos homossexuais, às pessoas com deficiência. O discurso de ódio, do irracionalismo e da violência cimentou um sentimento de pertencimento de uma suposta “raça superior”, numa disputa cultural e ideológica extremamente forte e competente, suportada pelo uso competente dos meios de comunicação e da arte da propaganda.

Em janeiro de 1933 o então presidente, chefe de Estado alemão, Paul von Hindenburg, nomeou Hitler chanceler. Pessoalmente Hindenburg e Hitler se detestavam, e o presidente o chamava de “cabo boêmio”, mas o nomeou chanceler em janeiro de 1933 como resultado de uma crise hiperinflacionária e política que o fez em 1932 dissolver o parlamento duas vezes, pois não havia uma maioria que garantisse governabilidade ao país. Como não se conseguia uma maioria no parlamento, os conservadores pensavam que poderiam atrair o partido ultradireitista nazista para uma coalizão e depois poderiam controlá-lo. Logo depois, em 4 de fevereiro, o então chanceler expediu um decreto limitando a liberdade de imprensa e autorizando a polícia a reprimir e proibir reuniões e manifestações políticas.

Devido a um atentado contra o prédio do parlamento alemão, um incêndio perpetrado por um jovem holandês, Marinus van der Lubbe, atentado hoje considerado como preparado pelos próprios nazistas, Hitler teve sua chance de fechar o regime, perseguir, prender e torturas seus adversários políticos e iniciar uma escalada autoritária que tinha como prática enviar para campos de concentração judeus, comunistas, socialistas, ciganos, homossexuais, artistas rebeldes, para serem torturados e mortos.

Cabe também lembrar que no Brasil, o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 depôs um presidente eleito e legítimo num ato da Câmara dos Deputados que considerou a cadeira de presidente da república vaga (uma mentira pois João Goulart não renunciou nem estava fora do país), e iniciou um regime que afirmava que seria transitório e rápido, prometendo eleições presidenciais em 1965. Quando os golpistas perceberam que Juscelino Kubitscheck ganharia facilmente as eleições em 1965, o regime endureceu e impediu eleições livres até 1989. É importante salientar que Juscelino foi perseguido pela ditadura civil-militar e acusado de corrupção, de ser supostamente dono de um prédio no Rio de Janeiro (semelhanças com os dias atuais...), chegou a ficar encarcerado por alguns dias no quartel em 1968. A ditadura no Brasil foi instalada brutal e paulatinamente, chegando ao AI-5 que institucionalizou as prisões, as torturas, os desaparecimentos, a repressão violenta a jornalistas, artistas, intelectuais.

Agora no Brasil temos coisas muito similares. Uma crise econômica, social, política e institucional que alimenta o sentimento da anti-política e deixa a sociedade atordoada e inerte frente à retirada de diversos direitos. Em situações de normalidade não teríamos a aprovação da reforma trabalhista que retirou direitos mínimos dos trabalhadores sem criar novos empregos, apenas aumentou a informalidade; nem a aprovação da emenda constitucional 95 em 2016 que congelou os investimentos em Saúde, Educação, Segurança, assistência Social   por 20 anos. Não haveria espaço para a destruição da Previdência Pública de forma tão acintosa em momentos de estabilidade, hoje o próprio governo proíbe a publicação de estudos sobre a Previdência, justamente para esconder a fragilidade e a falsidade de seus argumentos a favor da implantação do regime de capitalização que só atenderá aos interesses de lucros de bancos, pois a previdência será privatizada agora.

Também temos a criminalização da política e a inobservância das regras da Constituição, permitindo a perseguição a políticos e outras pessoas, que têm seus direitos violados sistematicamente no judiciário, por parcelas das polícias e por parcelas do Ministério Público. A criminalização dos movimentos sociais, o aumento do número de assassinatos de lideranças populares, especialmente no campo, a invasão de sindicatos e de acampamentos de Sem Terra, a tentativa de destruição dos sindicatos impedindo os próprios associados de contribuir com suas entidades, além de prisões sem processo, prisões sem provas, prisões sem o processo transitado em julgado, tudo isso delineia um autoritarismo e uma destruição do Estado Democrático de Direito.

Ao mesmo tempo há o aumento dos crimes de ódio, especialmente o feminicídio, os crimes de racismo e os crimes homofóbicos. O número de casos de assassinatos de mulheres por ex companheiros e de pessoas LGBT vem se multiplicando, e se tornam cada vez mais visíveis no noticiário. Não se passa um único dia sem que saibamos de um ex-marido ou ex-namorado assassinou uma mulher, como resultado do clima e da cultura de ódio e intolerância na Sociedade.

Mais recentemente tivemos a afirmação do governo federal de que haverá cortes de investimento em Universidades nas áreas de Filosofia, Sociologia e Ciências Humanas, para, no dizer do ministro da Educação “investir em profissões que tenham retorno imediato para o contribuinte”. Além do desconhecimento da natureza da Universidade, e da construção do Conhecimento, há o autoritarismo que se traduz em ações truculentas que entendem o projeto da Educação como um projeto de governo e não de Estado. Há um desconhecimento da parte do Ministro quando ele diz que a Educação deve ser para o aluno saber ler e escrever e fazer contas e não para a Filosofia. A Filosofia, a Sociologia e todas as Ciências Humanas permitem que saibamos melhor ler e escrever, interpretar, compreender e argumentar, que tenhamos capacidade de entender o outro, essencial no trabalho, na Sociedade e na vida como um todo, que saibamos elaborar um pensamento lógico, que sejamos criativos. Em um momento de Revolução 4.0 e 5.0 na indústria, saber apenas ler e escrever coisas simples, como por exemplo apenas declamar um texto de jornal ou uma bula de remédio, é insuficiente e estará condenando o Brasil ao atraso. Como professor, o ministro deveria saber que a principal dificuldade dos alunos no Enem para resolver as questões de Matemática e de Física reside na dificuldade de interpretação do texto no enunciado da questão, logo as Ciências Humanas não estão apartadas das outras, e destruí-las significará amputar o projeto educacional como um todo.

As Ciências Humanas também permitem às pessoas compreender o mundo em que vivem, saber quais as forças sociais que estão em disputa, quais os interesses presentes na disputa de hegemonia na Sociedade. Esse saber e essa capacidade crítica nos permite por exemplo entender que as experiências da ascensão do nazismo e da instalação da ditadura brasileira podem ser revividas se não tomarmos cuidado com a estratégia de criação de crise e desestabilização das instituições, com a estratégia de manipulação de parcelas do Judiciário, das polícias e do Ministério Público. Essa capacidade crítica das Ciências Humanas nos permite ver que se está usando agora a mesma estratégia da época da ascensão nazi-fascista, de estimular o ódio irracional a determinados grupos sociais, a ter ojeriza à política e à Democracia e a se valorizar a solução violenta para as divergências, de preferência liberando o armamento para mergulhar a Sociedade em uma situação de beligerância permanente e aumento da criminalidade.

As Ciências Humanas podem nos ajudar a entender como o Estado brasileiro está sendo infiltrado pelo poder do crime organizado, especialmente das milícias. E ao mesmo tempo nos permitem decifrar a estratégia de manipulação da opinião pública pelo uso de robôs e outras estratégias a partir das redes sociais virtuais e pela reprodução de fakenews elaboradas tendo como objetivo a conquista do poder.

Por conta disso, a Educação, tanto a Básica quanto a Superior são adversárias hoje daqueles que querem a instalação de um regime de força e autoritário. Há reação da Sociedade, felizmente. Foi lançado ontem o manifesto “EM DEFESA DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E CONTRA O ATAQUE TUITADO POR JAIR BOLSONARO ÀS ÁREAS ACADÊMICAS DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA”, pela Frente Parlamentar pela Valorização das Universidades Federais, que conta com mais de 170 deputados federais, pelo Observatório do Conhecimento, iniciativa de associações e sindicatos docentes de todo o Brasil. O manifesto afirma que “Não há nação desenvolvida no mundo que não possua forte investimento em campos de estudo como os da Filosofia e Sociologia. São estes que permitem estruturar o desenvolvimento de um país, formulando as estratégias para o crescimento econômico e atenção à população. Ao atacar as humanidades, o pensamento estratégico, Bolsonaro acaba por nos condenar à miséria, econômica e intelectual, nos relegar à escuridão da ignorância. Além disso, é um grande equívoco de Jair Bolsonaro responsabilizar a juventude brasileira pela recessão econômica que o país se encontra, enquanto seu governo não apresenta nenhuma proposta concreta neste sentido.”

Assim como em outros momentos, há agora também a resistência democrática. A Educação se localiza nesse segmento, defendendo valores universais como a Ciência, a Ética, a Justiça, a Democracia, a pluralidade de ideias e concepções e a convivência pacífica em Sociedade. Afinal, o problema para a Educação não é se ela tem visões de mundo e pensamentos de esquerda ou de direita em seu interior, essa diversidade é normal e salutar em qualquer ambiente plural de debate de ideias; o grande problema do Brasil hoje é a “ausência de pensamento”, como já foi dito por filósofos.

*Penildon Silva Filho é professor da UFBA e Doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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