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Sobre a proposta de cobrança de mensalidades nas universidades públicas brasileiras

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Bnews - Divulgação

Publicado em 10/06/2019, às 19h05   Penildon Silva Filho


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No rastro da crise provocada pelo contingenciamento de recursos para as universidades federais no país, uma das propostas colocadas por alguns atores na cena política nacional para supostamente reverter a crise de financiamento do setor público foi a cobrança de mensalidades nas instituições públicas. Essa proposta não tem a menor condição de resolver esse problema de financiamento, não ataca a raiz da crise do financiamento das políticas públicas do Estado brasileiro, abre espaço para o processo de desresponsabilização do Estado com esse nível de ensino e, por fim, coloca o paradigma de que quem deve acessar determinados serviços públicos seriam aqueles com capacidade de pagamento.

Um argumento de alguns defensores da cobrança de mensalidades é o que afirma “quem pode pagar, deve pagar”, que “deveríamos ter uma contribuição maior para o financiamento da educação superior pública pelos que são de faixas sociais de rendas mais altas”. Somos a favor que as pessoas de renda maior contribuam mais e progressivamente para o financiamento das políticas públicas, inclusive as universidade públicas, nisso temos acordo. Entretanto, a forma mais adequada conceitualmente e eficaz operacionalmente de realizar esse intento é a implantação de uma reforma tributária que desonere o consumo, diminuindo os impostos indiretos que são cobrados sobre todos os produtos indistintamente, o que acaba por fazer com que a classe trabalhadora pague mais proporcionalmente e em valores absolutos no total de tributos, ao mesmo tempo em que deve-se aumentar os impostos diretos sobre a renda, as grandes fortunas, a herança e reinstituir a tributação sobre os lucros e dividendos das empresas privadas.

A progressividade de nossa tabela de imposto de renda é muito pequena, no Brasil se tributa quem ganha salários baixos, mas quem ganha mais de 40 mil ou 50 mil reais mensais não paga uma alíquota superior a quem ganha 10 mil reais. Isso é injusto porque onera quem ganha menos e deixa os mais ricos sem contribuir com o que poderiam e deveriam. Ao lado disso, o Brasil e a Letônia são os dois únicos países do mundo a não cobrar impostos sobre lucros e dividendos das empresas, desde 1995 com o governo de Fernando Henrique Cardoso.

A taxação de grandes fortunas e sobre as heranças deveria ser bastante majorada, segundo o discurso liberal de que cada um deve ser beneficiado pelo fruto de seu trabalho e não viver “de rendas” por ser filho de família rica e não precisar trabalhar. Esses princípios são da social democracia clássica, e entende que a capacidade contributiva de todos os cidadãos ativas é que deve definir a quantidade de tributos a serem pagos para financiar as políticas públicas para todos, mesmo que muitos não tenham como contribuir.

A instituição de uma “mensalidade” para os mais ricos nas universidades seria injusto,  pois apenas nos 4 ou 5 anos em que os alunos estivessem no curso de graduação a família deveria dar uma contribuição para o Estado. Isso está errado, a contribuição para efetivar políticas de Educação, de Saúde, de Assistência, de Habitação, Saneamento deve ser permanentemente cobrada das pessoas com altas rendas, lucros em empresas, heranças e grandes fortunas e não apenas enquanto essas pessoas estivessem se servindo dessas políticas.

A ideia de cobrar mensalidades dos mais bem aquinhoados nas universidades públicas também não se sustenta se pensarmos o que aconteceria se estendêssemos a proposta para outras políticas. Cobraremos dos mais ricos para ter acesso aos serviços de Saúde pelo SUS, inclusive vacinações, cirurgias de alta complexidade e acesso a medicamentos da Farmácia Popular?

Cobraremos dos que precisarem recorrer aos CREAS e CRAS da Assistência Social? O serviço de policiamento nos bairros mais ricos deve ter a contrapartida de uma taxa a ser paga pelos donos das casas mais caras? Esse princípio de cobrança dos que mais podem pagar deve ser pelo imposto progressivo, caso contrário, o Estado acabará se desresponsabilizando por essas políticas para quem não tem condições financeiras de pagar esses serviços que devem ser públicos, e apenas os que tiverem capacidade contributiva terão acesso aos serviços.

Essa é a proposta inclusive da reforma da previdência do atual governo federal, com seu sistema de capitalização que prevê que quem tiver recursos deve contribuir para sua aposentadoria com uma conta individual, quem não tiver recursos deve se contentar com um auxílio social de R$400,00 reais para idosos com 70 anos ou mais. Pela proposta em tramitação no Congresso, a Previdência Pública atual compreendida como parte da Seguridade Social que envolve também a Saúde e a Assistência Social deixa de existir. Trata-se de destruir um sistema de solidariedade social onde a sociedade arca com os custos das aposentadorias de todos, mesmo de quem nada tem, para instituir uma “Nova Previdência” privada, sem garantias ou suporte do Estado para os mais pobres, que são a maioria da população.

Além da necessidade de uma reforma tributária que aproxime a estrutura brasileira de um formato mais social democrata clássico do Estado do Bem Estar Social, outra questão que está na raiz do problema de financiamento do Estado é a parcela do orçamento usada para pagamento dos juros e encargos da dívida pública. Com juros muito altos pagos aos rentistas que emprestam ao Estado brasileiro e com uma dívida pública que precisa ser auditada para se saber se toda ela é legítima, há no presente o comprometimento de 45% de todo o orçamento federal apenas para impulsionar os lucros de grandes especuladores financeiros. Não será possível investir no que pode garantir mínima justiça social e investimento público para alavancar a Economia com o perfil da atual dívida. Uma auditoria para verificar o quanto realmente já se pagou e quanto se deve ainda pagar e o rebaixamento dos juros da dívida para níveis de países da OCDE serão condição imprescindível para que o Estado possa cumprir o que está estipulado na Constituição. A auditoria da dívida e o rebaixamento dos juros da SELIC precisam estar ao lado de uma reforma tributária.

Um outro argumento a ser levantado foi bem trabalhado pelo reitor da UNICAMP, Marcelo Knobel, em seu artigo contrário à cobrança de mensalidades: “Além de formar profissionais nas mais diversas áreas, as universidades públicas brasileiras têm um diferencial: respondem por 95% da pesquisa científica realizada no país. Pesquisa científica é essencial para gerar inovação, impulsionar o crescimento econômico e resolver questões críticas do nosso desenvolvimento. E aqui, como em outros países, a atividade de pesquisa é financiada com verbas públicas. Em nenhuma parte do mundo a cobrança de mensalidades representa recurso significativo para universidades de pesquisa. No Massachussets Institute of Technology (MIT), por exemplo, as anuidades equivalem a cerca de 10% do orçamento da instituição. Esse percentual é similar em outras universidades de pesquisa do mundo, públicas ou privadas. O financiamento das universidades públicas é um problema complexo, para o qual a cobrança de mensalidades está longe de ser uma solução, sequer parcial. Na verdade, a adoção de tal medida poderia gerar problemas adicionais, contaminando instituições públicas com a lógica mercantilista mais primária. Carreiras em alta no mercado de trabalho —que, em princípio, poderiam render mensalidades mais polpudas— tenderiam a ser priorizadas em detrimento de áreas igualmente fundamentais para o desenvolvimento intelectual, tecnológico e cultural do país.”

Concordamos com o Reitor da UNICAMP. Uma simples análise do investimento numa universidade pública demonstra a impossibilidade do recurso necessário a uma instituição com ensino, pesquisa, extensão e de qualidade ser conseguido pela cobrança de taxas, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Por conta disso, precisamos lançar um desafio.

Recentemente o ministro da Educação criticou o custo de um aluno universitário comparado com o custo de aluno de creche, essa comparação serviria, na opinião do ministro, para justificar o investimento na Educação Básica apenas. O desafio lançado é avaliar o que cada universidade tem de atividades e estruturas que servem à comunidade, um desafio a ser assumido pela Sociedade e pelo próprio Estado brasileiro para conhecimento da importância estratégica das universidades públicas.

O orçamento da UFBA e das demais universidades federais não comportam apenas atividades de ensino. Cerca de 30% de todo o orçamento da UFBA é para o Hospital Universitário e para a Maternidade Climério de Oliveira. O que se propõe é fechar esses espaços que servem de hospital e maternidade escola e deixarmos de atender à população? Uma creche não tem um laboratório de Física Nuclear, como o que fica no subsolo do anexo do Instituto de Física da UFBA, e suas pesquisas são importantes para finalidades energéticas, nos tratamentos médicos, na pesquisa sobre a estrutura da matéria. O Brasil não merece ter suas pesquisas encerradas e ficar fora das revoluções tecnológicas contemporâneas, especialmente as necessárias para se conseguir fazer uma transição para novas matrizes energéticas.

Ao lado do Instituto de Física, o Instituto de Geociências tem pesquisas sobre o Mar, sobre exploração de petróleo, sobre controle da qualidade da água em áreas da Baía de Todos os Santos, dentre outras. Deveríamos esquecer essas atividades de pesquisa e de extensão para ficarmos com um orçamento mais próximo do de uma creche, que por natureza não se caracteriza pela complexidade de uma Universidade? Por fim, uma creche para ser boa para as crianças precisa de pedagogos, psicólogos, médicos, assistentes sociais, dentre outros profissionais que só são formados com qualidade por uma instituição universitária.

Por fim, mas não menos importante, a composição do alunado da UFBA hoje tem 77% dos seus alunos oriundos de famílias com renda percapta de até 1,5 salários mínimos, indicando a impossibilidade de contar com essa fonte de recursos para manter uma instituição com a riqueza acadêmica, multiplicidade de funções e atribuições para a formação de excelência. Trata-se na verdade de uma proposta inexequível que servirá para desresponsabilizar o Estado com a Universidade Pública e abrir campo para o financiamento do setor privado.

Penildon Silva Filho é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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