Educação

O roubo da infância no Brasil

Imagem O roubo da infância no Brasil
Bnews - Divulgação

Publicado em 16/07/2019, às 20h11    Penildon Silva Filho


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No dia 3 de julho, em sua “live” semanal, o presidente da República argumentou que não via problemas com o trabalho infantil, inclusive porque ele próprio já havia trabalhado no campo desde os 9 anos de idade e que “o trabalho dignifica o homem e a mulher, não importando a idade”. É extremamente séria essa declaração vinda do principal mandatário da Nação, pela autorização explícita à exploração infantil e pela indicação de que as políticas públicas caminharão nesse sentido. 

A abolição do trabalho infantil compõe um rol de conquistas da Humanidade e integra uma série de avanços civilizatórios, ao lado da abolição da escravatura, do direito das mulheres de votar, da conquista de regimes democráticos em substituição a regimes autoritários, da abolição do Apartheid na África do Sul na década de 1990 e em outros países, como os Estados Unidos na década de 1960, da independência das antigas colônias na África e na Ásia depois da Segunda Grande Guerra, dentre outros. São conquistas civilizatórias que vem se sofisticando a partir das revoluções burguesas nos séculos XVII e XVIII, as revoluções Inglesa, Americana e Francesa, que abolem o absolutismo monárquico e instituem o liberalismo político com os direitos civis e políticos, aos quais depois são acrescidos os direitos sociais, econômicos e culturais. 

A infância até o século XVIII e XIX não era valorizada, as crianças até os cinco anos não tinham atenção dos pais, com muitos casos de infanticídio e descaso com a condição dos pequenos; a Revolução Industrial trouxe o trabalho das mulheres grávidas e das crianças de até cinco ou quatro anos às linhas de produção, em jornadas de 18 horas diárias e sete dias por semana como recurso para acumulação de lucros. A luta pelos direitos trabalhistas e sociais avançou para diminuir a jornada de trabalho e proibir o trabalho infantil, apesar da grande resistência dos proprietários de indústrias e outros estabelecimentos. Evidentemente que os filhos desses proprietários não eram submetidos ao trabalho infantil, eles tinham as condições para crescer saudavel e culturalmente e depois assumir os postos de comando das empresas de seus pais. O trabalho infantil era reservado aos dominados e subjugados na sociedade, tinha um perfil de classe social; no caso do Brasil que viveu o mais longo período de escravidão no Ocidente, desde o descobrimento até 1888, as crianças filhas dos escravizados, as crianças negras eram as que trabalhavam, ou seja há um perfil de classe e racial.

A abolição do trabalho infantil das classes trabalhadoras e dos negros no Brasil foi e ainda é resultado de muita luta social, disputa política, políticas públicas, mas infelizmente estamos num período histórico de retrocesso e de perda de direitos, como a garantia de uma infância digna para a maior parte das crianças. A infância digna se efetiva quando os pais dessas crianças estão empregados, e o desemprego provocado pelo ajuste fiscal desde a ruptura institucional de 2016 já soma mais de 13 milhões de desempregados. Saímos de um desemprego de 4,5% em 2014 para um desemprego de 13% em 2019. Além da taxa de desemprego, após a aprovação da reforma trabalhista de 2017 o número de trabalhadores sem carteira assinada ultrapassou o número daqueles com empregos formais, com a precarização intensa dos que ainda não estão desempregados, mas ganham menos que o salário mínimo, não têm décimo terceiro ou férias e muitas vezes estão no trabalho intermitente e sem garantias de rendimentos estáveis ou suficientes. Não é possível garantir dignidade para a infância sem condições de vida digna para as famílias. Agora, com a aprovação da reforma da Previdência, os estudos indicam que a diminuição dos recursos que serão pagos aos aposentados, pensionistas e pessoas atendidas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) contribuirá para a depressão econômica que já se arrasta desde 2015. Estamos em 2019 e quatro anos depois não saímos de uma situação econômica desfavorável aos trabalhadores, embora os lucros dos bancos cresçam ano após ano, ao lado do desemprego, precarização e da destruição da Previdência e das políticas sociais.

O trabalho infantil tira a criança da escola, destruindo sua chance de uma vida melhor no futuro e a condena a uma situação de miséria e exclusão social. Além dessa constatação óbvia, embora estejamos em tempos em que o óbvio tem que ser relembrado permanentemente, o trabalho infantil torna a criança vulnerável nas dimensões da saúde, na exposição à violência, assédio sexual, esforços físicos intensos, acidentes com máquinas e animais no meio rural, morte, aleijamento, dentre outros.

A infância deve ser vivida na escola, no âmbito da família, sem estar sujeita a esforços que não condizem com suas características físicas e inadequados a esse período da vida. Viver a infância é essencial para o desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social das crianças. O tempo da criança de se alimentar, descansar, brincar, estudar, ter carinho dos pais, da família e da comunidade é essencial para esse desenvolvimento e para uma vida adulta saudável. Caso seja privada dessas dimensões saudáveis, educativas e sociais da infância, esta etapa do desenvolvimento pode gerar traumas irreversíveis.

A criança para ter uma vivência plena deve ter sonhos, brincadeiras e educação, entretanto aquelas que trabalham terão sérias consequências para a vida adulta, como impactos físicos, psicológicos e econômicos. No dia 12 de julho, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou uma nota muito esclarecedora sobre o trabalho infantil, e se colocou firmemente contra essa modalidade de exploração e defendendo políticas públicas para evitá-la. É importante termos esse posicionamento de uma sociedade científica para relembrar o que já deveria ser um ponto consensuado em nossa sociedade. Veja no link https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-divulga-manifesto-contra-o-trabalho-infantil-e-em-defesa-dos-direitos-da-crianca/  Diz a nota da SBP: “Tornar natural o trabalho infantil distorce um drama que ainda afeta milhões de crianças e adolescentes e suas famílias no mundo. Conforme os últimos dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2016, no Brasil há 2,4 milhões de pessoas com idades entre 5 e 17 anos trabalhando.

Desse grupo, os adolescentes pretos e pardos correspondem a 66,2%; quase a metade (49,83%) integra famílias de baixa renda, com rendimento mensal per capita menor do que meio salário mínimo e 76,3% atuava em atividades não agrícolas (indústria, comércio e domicílios). Nas regiões Nordeste e Sudeste, as taxas de trabalho infantil são as mais altas: respectivamente, 33% e 28,8% dos 2,4 milhões de meninas e meninos que vivem nessa condição. Entre os estados, em termos absolutos, lideram esse trágico ranking os estados de São Paulo (314 mil), Minas Gerais (298 mil), Bahia (252 mil), Pará (193 mil) e Rio Grande do Sul (151 mil). De 2014 a 2018, o Ministério Público do Trabalho (MPT) registrou mais de 21 mil denúncias de trabalho infantil. Na média histórica, o MPT calcula que haja 4,3 mil denúncias de trabalho infantil por ano. No período, houve o ajuizamento de 968 ações e firmados 5.990 termos de ajustamento de conduta (instrumento administrativo para impedir condutas irregulares).

O trabalho infantil pode ser entendido como aquele que priva as crianças de sua infância, seu potencial e sua dignidade, comprometendo também seu desenvolvimento físico, mental, cognitivo e intelectual, ao privá-las de recreação e de frequentar a escola. Além disso, o trabalho infantil expõe suas vítimas a inúmeros riscos de saúde e de vida, não sendo raros casos de acidentes, mutilações, adoecimento e óbitos. O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde indica que, entre 2007 e 2018, a ocorrência de 43.777 acidentes de trabalho com crianças e adolescentes. No mesmo período, 261 deles perderam a vida durante o exercício dessas atividades.” 

Se consideramos que temos 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de exploração infantil, com certeza essas notificações acima de acidentes e mortes são subnotificações. A nota da SBP continua de maneira firme apontando que houve melhoras nos últimos anos, mas caminhos para superação dessa situação ainda devem ser trilhados:
“Situações assim não deveriam existir. Ao invés disso, esse público vulnerável deveria receber do poder público, de suas famílias e da sociedade acesso a cuidado, proteção e atenção, de modo integral, para garantir seu pleno crescimento e desenvolvimento.

Apesar de alguns avanços nesse campo, é preciso progredir mais. Se entre 1992 e 2015 houve redução de 65% no número de crianças e adolescentes nessa situação, a sociedade brasileira deve firmar um pacto nacional pela total erradicação do trabalho infantil no País. Comprometida com a defesa da infância e da adolescência, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) manifesta publicamente sua preocupação com esse tema e pede à população e às autoridades competentes que tomem medidas urgente para impedir a proliferação desse mal que compromete o futuro saudável da Nação.

Como parte desse esforço a SBP propõe os seguintes pontos: 1) Maior fiscalização nos programas de transferência de renda, garantindo-se que a condicionalidade de frequência escolar dos filhos das famílias atendidas seja devidamente cumprida; 2) Ampliação no número de vagas em escolas e creches para atender a demanda de alunos em suas regiões de residência; 3) Ampliação da oferta dos serviços de escolas e creches em período integral, contribuindo para a melhora dos processos de ensino-aprendizagem e de socialização dos alunos pelo estímulo a participação em atividades pedagógicas, esportivas, culturais, entre outros; 4) Fortalecimento de políticas de geração de emprego e renda, sobretudo em áreas de maior vulnerabilidade, com foco na população adulta como meio de reforçar os ganhos familiares; 5) Intensificação das ações de fiscalização por parte dos órgãos competentes, em especial nas áreas pobres ou de maior prevalência de casos de trabalho infantil, com punição dos responsáveis; 6) Criação de uma campanha nacional de conscientização sobre os riscos do trabalho infantil, com a criação de um canal público para acolher denúncias sobre situações de exploração de crianças e adolescentes em situação de trabalho ilegal. As propostas da SBP, que historicamente tem se posicionado contra tal prática nociva com base em dados técnicos que atestam os prejuízos que essa atividade provoca, alertam para a legislação vigente e para os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário e que tratam da prevenção e erradicação imperativa do trabalho infantil. Ao abraçar essa agenda pública, os brasileiros e o governo (em suas diferentes instâncias) demonstrarão efetivamente seu compromisso com um Brasil melhor no futuro. Rio de Janeiro, 11 de julho de 2019. 

SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA”

Infelizmente o Brasil caminha no sentido contrário de garantir esses direitos básicos e essenciais às suas crianças. A recessão econômica/depressão se arrasta desde 2016 devido ao ajuste fiscal de Temer e Bolsonaro. Esse ajuste fiscal ensejou o congelamento dos investimentos sociais por 20 anos, pela emenda constitucional 95, aprovada pelo governo Temer em final de 2016. Temos então uma combinação nefasta no Brasil de hoje: o Estado não investe para retomar o ciclo de crescimento econômico, como se faz em qualquer economia no mundo pelos princípios keynesianos, e esse mesmo Estado não investe em políticas sociais justamente no momento de aumento da miséria, da fome e da exclusão social. Veja a matéria sobre aumento da população em situação de rua no país: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/moradores-de-ruas-se-multiplicam-em-pracas-predios-historicos-e-vias-nas-capitais.shtml 

Experimentamos cortes orçamentários nas políticas de combate ao trabalho escravo e no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), o que demonstra o perfil escravocrata da atual gestão pública no Brasil: “O orçamento do Ministério do Trabalho para o combate ao trabalho infantil passou de R$ 1,2 milhão para pouco mais de R$ 300 mil, de 2010 a 2018. O corte de recursos para a Secretaria de Inspeção do Ministério do Trabalho chegou a 70%, em 2017. O número de auditores fiscais também diminuiu nos últimos anos, tendo passado de 3.059 para 2.303, no período de 2010 a 2018, conforme dados do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).” (Ver no site: http://www.vermelho.org.br/noticia/321194-1 )

Embora o presidente tenha feito o relato de que trabalhou na infância, certamente ele não colocou seus filhos para se “dignificarem” com o trabalho infantil, e com certeza as famílias mais abastadas não submeterão seus filhos à exclusão e à violência dessa modalidade de exploração, essas crianças frequentarão as melhores escolas, terão apoio material e afetivo para se desenvolver de forma integral. Quando se propala a relativização do trabalho infantil e a sua permissividade estamos vendo no Brasil uma consequência bem seletiva nessa mudança de postura dos governantes: quem trabalharão serão as crianças das famílias pobres, dos trabalhadores precarizados, dos negros, dos excluídos socialmente e do mercado de trabalho informal, dos nordestinos e habitantes da região Norte do país.

*Penildon Silva Filho é professor da UFBA e Doutor em Educação. Escreve para o BNews semanalmente

Classificação Indicativa: Livre

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