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O Regime de Colaboração no município de Salvador e as metas do Plano Nacional de Educação

Imagem O Regime de Colaboração no município de Salvador e as metas do Plano Nacional de Educação
Bnews - Divulgação

Publicado em 08/03/2020, às 21h42   Penildon Silva Filho


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O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado e promulgado em julho de 2014, estabeleceu metas e estratégias muito positivas para o período 2014 até 2024, em todos os níveis, modalidades e ofertas da Educação no Brasil. A avaliação periódica do cumprimento das metas é essencial para o sucesso do PNE, especialmente pelo fato do mesmo ter sido elaborado num momento de maiores investimentos na Educação a avanço da institucionalidade dessa política pública, e refletir um compromisso com a Educação pública, gratuita, universal, de qualidade, laica e com diretrizes curriculares muito avançadas. No momento atual de retrocessos nas políticas públicas e na Economia, o acompanhamento e a busca do cumprimento das metas do PNE constituem estratégias importantes.

A efetivação das metas do PNE depende do sucesso da implementação do Regime de Colaboração, afinal o Brasil é um país continental, não é um “Estado unitário”, ou seja, ele tem a União, os Estados, o Distrito federal e os municípios que dividem atribuições, orçamentos e responsabilidades, demandando um engajamento num trabalho conjunto e colaborativo. Primeiro definamos o que é o Regime de Colaboração (RC). Segundo a Constituição Federal de 1988, o RC fica estabelecido nos termos: “Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em Regime de Colaboração seus sistemas de ensino. § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na Educação infantil. § 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.”

Os municípios então têm o objetivo de garantir as creches, a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, certamente o momento mais importante do processo educativo, pois é nessa fase da vida que se forma a subjetividade, que se desenvolve a capacidade cognitiva, se criam valores societários e democráticos, se pode estimular a apreciação estética, a fruição de bens culturais e se possibilita uma transformação nas condições de vida das famílias por meio da Educação, com a continuidade dos estudos em níveis superiores. Entretanto, esse objetivo dos municípios é apresentado como prioridade e não exclusividade, enquanto que os Estados devem priorizar o Ensino Médio. Isso indica a necessidade de uma articulação e de um acerto de atribuições e esforços conjuntos pela política Educacional para a garantia do Direito à Educação, como uma política de Estado (nos níveis federal, estaduais, no Distrito Federal e municipais) e não apenas de governo.

A autora Clélia Brandão Alvarenga Craveiro estabelece em sua publicação “Construção do Regime de Colaboração entre os Sistemas de Ensino: Documento Base da Conferência Nacional de Educação 2010”, a seguinte definição de Regime: “sistema político pelo qual é regido um país; modo de viver; administração de certos estabelecimentos públicos ou particulares; o conjunto das imposições jurídicas e fiscais que regem certos produtos”. E para a autora também, Colaboração é o “trabalho em comum com uma ou mais pessoas; cooperação; ajuda, auxílio, contribuição”.
Segundo Carlos Roberto Jamil Cury em seu artigo “Sistema nacional de Educação: desafio para uma Educação igualitária”, Regime de Colaboração é um “conjunto organizado sob um ordenamento com finalidade comum (valor) sob a figura de um direito”. A Constituição afirma que os entes federados deverão agir no sentido de integrar, via Regime de Colaboração, todas as políticas públicas que, necessariamente, devem assegurar ao país a sua soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Com o objetivo de atingir as metas do PNE, os esforços devem ser concertados, combinados e potencializados para que a rede pública de Educação se fortaleça, se amplie, eleve sua qualidade. A Constituição de 1988 estabelece que existe liberdade para a existência de empreendimentos privados nessa área, mas a função do Estado é garantir para todos o serviço público da Educação.

Nesse sentido, como se dá a relação entre Estados e municípios? Uma análise do caso de Salvador, terceira maior cidade do país e capital da Bahia, pode indicar como esse processo ocorre na prática e ensejar uma reflexão sobre como aprimorá-lo.

Na definição de atribuições entre os entes federados, deve haver a integração e participação dos Estados no planejamento e na gestão dos municípios na Educação, assim como há o papel do governo federal junto aos estados e municípios de organizador, promotor de políticas e avaliador. Nesse RC cabe à União aplicar, anualmente, nunca menos de dezoito por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Os recursos públicos devem permitir a universalização e a garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do Plano Nacional de Educação e segundo a redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009. Cabe ao Estado coordenar o Sistema Estadual de Educação, implementar políticas para melhoria da Educação também nos municípios e trabalhar para suplementar as ações dos municípios nas demandas não atendidas nesse nível.

A Meta 1 do Plano Nacional de Educação estabelece: “universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE”. A Meta 2 do PNE torna obrigatório: “universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE.” 

Segundo dados fornecidos pela Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC), a partir dos resultados do Censo Escolar de vários anos e dos registros do ensino privado diretamente na SEC, em 2015 nós tínhamos na Bahia 2.183.210 matrículas nas redes municipais, 873.565 na rede estadual, 521.435 matrículas em estabelecimentos privados e 19.798 nos institutos federais na Bahia, estes últimos ofertam vagas para Ensino Médio, pós-médio e concomitante. Já em 2019, os números foram os seguintes: 2.117.484 matrículas municipais, 771.344 matrículas estaduais, 574.868 matrículas privadas e 21.935 matrículas federais. Observem que enquanto nos níveis estadual e municipal houve uma diminuição, o setor privado cresceu 53 mil vagas e o setor federal teve uma leve ampliação de duas mil vagas. A diminuição das redes estadual e municipais no seu conjunto pode ser explicado pela mudança demográfica, que se faz sentir em todos os Estados do Brasil com a diminuição geral do número de alunos, entretanto há um fenômeno de crescimento do setor privado que pode indicar um vazio na cobertura dos órgãos públicos, afinal pelas metas do 1 e 2 do PNE descritas acima, as redes municipais deveriam ampliar sua oferta. 

Em Salvador, no ano de 2015 tínhamos: 213.050 vagas estaduais, 154.234 vagas privadas e 139.682 vagas municipais. Em 2019, tivemos: 188.002 vagas estaduais, 187.578 vagas privadas e 140.374 vagas municipais. O decréscimo do número de vagas no Estado deveria ter sido assimilado pelo município, mas o número de matrículas municipais nesse período ficou estável. Seria de esperar um aumento nas vagas municipais, pelo processo de municipalização do Ensino Fundamental além do natural crescimento de creches e Educação Infantil devido às metas do PNE. Mas não foi isso o que aconteceu. Das 53 mil matrículas novas criadas na rede privada no Estado, pouco mais de 33 mil foram apenas em Salvador, entre 2015 e 2019, o que é desproporcional à população do Estado, pois Salvador representa 17,5% da população da Bahia. O setor privado em Salvador cresceu pela demanda maior de creches e Educação Infantil e pela não ampliação do Ensino Fundamental público. 

Uma estratégia encontrada pela prefeitura foi a criação de um “voucher”, uma bolsa para as mães e pais colocarem os filhos nas creches e escolas privadas. Esse modelo de ampliação prioriza o setor privado, não garante qualidade no atendimento da demanda e precariza o cuidar e o ensinar aos alunos. Trata-se de um projeto defendido hoje pelo governo federal, pois o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu essa proposta no encerramento do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça. O ministro afirmou que o governo vai implantar "um gigantesco [programa de] vouchers para educação nos primeiros estágios". Para especialistas, a medida é para abrir caminho para a privatização dos recursos destinados à educação pública. Hoje grandes grupos empresarias estão intensificando os esforços para redirecionar os recursos que estão alocados na Educação pública para as empresas privadas, seja por meio da terceirização da gestão, pela compra de pacotes tecnológicos para cobrir até 30% do ensino médio na modalidade a distância, por pacotes de conteúdos específicos fornecidos por empresas ou pela venda de sistemas de ensino padronizados. Veja mais no link: https://www.brasil247.com/brasil/guedes-em-davos-vamos-implantar-gigantesco-vouchers-para-educacao 

O ministro Paulo Guedes, que não conseguiu cumprir as promessas de crescimento econômico pela sua promessa de que se as reformas trabalhista e previdenciária fossem aprovadas e se o Estado promovesse um grande ajuste fiscal teríamos uma aceleração do crescimento do PIB, mas defende essa proposta de vouchers primeiro por razões familiares, pois sua irmã, Elizabeth Guedes, é presidenta da Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup), entidade que representa monopólios educacionais, como Anhanguera, Estácio, Kroton, Uninove e Pitágoras. Ver mais em: https://www.brasildefato.com.br/2019/05/09/como-a-associacao-liderada-pela-irma-de-paulo-guedes-se-beneficia-de-cortes-no-ensino 

Esses conglomerados, após crescer e lucrar com um ensino superior com forte subsídio estatal, querem entrar na Educação Básica de diversas formas, inclusive por “vouchers”, com dinheiro público direto para escolas privadas.

Nesse momento, o livre mercado e o neoliberalismo deixam de existir para dar lugar ao apoio e à subvenção do governo, ao mesmo tempo em que a qualidade diminui. Algumas pesquisas já indicaram que creches privadas, geralmente “escolinhas de bairro” tem estrutura física acanhadas, profissionais sem formação adequada e mal remunerados e não têm qualidade equivalente às creches e Educação Infantil públicas. 

Esse é um tema que merecerá maior atenção para pesquisa: como o regime de colaboração entre Estado e município de Salvador não funcionou para garantir acesso à Educação Pública, abrindo a cidade para um modelo que em outros países já demonstrou que não garante qualidade e aumenta as desigualdades sociais, o modelo dos “vouchers”.

A proposta dos “liberais” e “neoliberais” que querem deixar de dar recursos para escolas públicas e de ter um corpo docente concursado e profissionalizado para começar a financiar empreendimentos particulares tem como grande baluarte o Chile, da época de Pinochet e dos governos posteriores que não conseguiram mudar a extrema privatização dos serviços públicos, inclusive com a adoção dos vouchers para escolas privadas. Foi essa privatização da Educação, da Previdência e da Saúde que serviu de pano de fundo para as intensas manifestações no Chile desde o ano passado e que resultaram agora num plebiscito para aprovar ou não a convocação de uma Constituinte para rever essas políticas. Ver mais em: https://revistaeducacao.com.br/2019/10/08/vouchers-escolares/ 

Alguns dados complementares da pesquisa da SEC indicam que a rede privada tem sido a opção das famílias soteropolitanas para garantir o acesso à educação na Educação Infantil, que teve um incremento de mais de 12 mil matrículas entre 2015 e 2019. Houve um leve crescimento da matrícula na rede municipal de Salvador, este deve-se basicamente a oferta da Educação Infantil que teve uma ampliação de 9,8 mil matrículas no período, ainda inferior ao setor privado.

No Ensino Fundamental as matrículas na rede privada cresceram, chegando a quase 103 mil estudantes, mas a matrícula do Ensino Fundamental público teve redução e está na casa dos 97 mil estudantes matriculados.

A redução de matrículas na rede estadual se deve, em grande medida, a oferta de Ensino Fundamental que caiu de 86 mil estudantes atendidos para 74,5 mil. Caberá a pesquisas posteriores analisar se em casos como o de Salvador, em que o setor público municipal adota uma política de estímulo ao setor privado e aos vouchers, o Estado deveria ter um papel mais ativo para garantir a ampliação da oferta com a participação pública. O papel do Estado não deve se restringir ao processo de municipalização do Ensino Fundamental, mas à verificação do atendimento da demanda social em determinado município, tanto no Ensino Fundamental como em níveis anteriores, para isso o Regime de Colaboração existe.

*Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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