Artigo

A aprovação da PEC 186 e a destruição do Brasil

a
Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação  |   Bnews - Divulgação a

Publicado em 13/03/2021, às 14h23   Penildon Silva Filho


FacebookTwitterWhatsApp

A Câmara dos deputados aprovou na última quinta-feira (11 de março), em 2º turno, a PEC 186/19, do ajuste fiscal, ainda sem definição do valor do auxílio emergencial, impondo arrocho salarial para servidores e privatizando mais ainda o Estado brasileiro. Dessa forma, o Brasil mantém-se numa política de “austeridade fiscal” que já demonstrou ser ineficaz e até danosa para as economias no mundo, especialmente em momentos de recessão econômica. Países capitalistas e socialistas importantes no mundo seguiram um caminho diferente da austeridade fiscal dos governos Temer e Bolsonaro e apresentam um resultado muito positivo no combate à pandemia, na recuperação econômica e no delineamento de projetos nacionais ou regionais de desenvolvimento.

Felizmente a PEC 186 não passou exatamente da maneira que foi enviada pelo governo federal ao Congresso. Na proposta inicial estava prevista a destruição das políticas sociais no Brasil, especialmente Saúde e Educação, com a extinção das vinculações constitucionais dessas políticas. Caso passasse a extinção do mínimo de investimento de 25% do orçamento de Estados e municípios e de 18% da União para a Educação, a própria emenda do “Novo Fundeb” seria inviabilizada, assim como o piso salarial nacional dos profissionais da Educação, e teríamos uma destruição das redes de educação municipais e estaduais e fechamento das universidades e institutos federais. 

No caso da Saúde, foram salvos os mínimos constitucionais previstos na Constituição, com Estados e Distrito Federal tendo 12% no mínimo da arrecadação dos impostos e 15% da arrecadação da União e dos municípios investidos em Saúde. Num momento em que o Sistema Único de Saúde (SUS) demonstra que pode contribuir de forma decisiva para a Saúde do povo e segue recebendo elogios da Organização Mundial de Saúde (OMS) e de diversos países como o maior e melhor sistema público de saúde do mundo, o governo tentou, com essa emenda, ao lado de outros ataques de redução de recursos, destruir esse patrimônio popular. Foram retirados também da PEC 186 e dessa maneira ficaram fora do limite de gastos os fundos da Segurança, da Cultura, da Ciência e Tecnologia. Desafortunadamente, as Universidades entraram no limite de gastos.

Mas houve retrocessos, apesar dessas mudanças que foram feitas na PEC 186 pela oposição e pela pressão de movimentos sociais e gestores estaduais e municipais, mudanças que retiraram o principal objetivo do governo federal que era de desmontar a Constituição de 1988 como carta de direitos sociais, econômicos e culturais. O principal retrocesso foi manter o teto de R$ 44 bilhões para o pagamento do auxílio emergencial. Para se ter uma ideia, esses recursos garantirão uma ajuda de no máximo R$ 250 para cada beneficiado por apenas 4 meses. Em 2020 tivemos 320 bilhões de auxílio emergencial. O mínimo necessário seria um valor de R$ 600 e enquanto durar essa crise sanitária da pandemia.

Essa proposta vai de encontro à necessidade de recuperação econômica, pois no ano passado se não houvesse o auxílio emergencial a queda no PIB brasileiro seria de quase 10%. O que permitiu que a economia se mantivesse minimamente em movimento e diminuísse a fome e a miséria foi o auxílio emergencial. Essa medida da PEC 186 fará com que o Brasil tenha uma recessão maior do que no ano passado, ao lado do agravamento da crise sanitária.

Na mesma semana em que a Câmara dos Deputados aqui no Brasil selou o destino da Economia brasileira e comprometeu a sobrevivência da maior parte da população, os Estados Unidos (EUA) fizeram justamente o inverso. Foram aprovados 1,9 trilhões de dólares em um pacote de apoio à Economia, o correspondente a 10 trilhões de reais, estabelecendo metade destinado a auxílio direto de famílias e trabalhadores. Comparando os 44 bilhões de reais no Brasil com 1 trilhões de dólares (5,3 trilhões de reais) para ajuda financeira às famílias, observa-se que os EUA, um dos países de origem do Neoliberalismo, que preconizava justamente a não intervenção do Estado na Economia e nas políticas sociais, agora mudou sua política. Volta a predominar uma visão Keynesiana da Economia, com a aplicação do receituário de John Maynard Keynes, de que em época de recessão apenas a força do Estado e os estímulos econômicos e sociais do Estado podem reaquecer a Economia. 

Um trecho de matéria do Jornal El País traz uma radiografia desse pacote estadunidense: “O plano é composto por várias medidas, incluindo uma ajuda de 400 bilhões de dólares (2,1 trilhões de reais) para combater diretamente a pandemia, com medidas básicas como acelerar a distribuição da vacina e reabrir as escolas durante seus primeiros 100 dias de Governo, nos quais o veterano político espera que 100 milhões de americanos possam ser vacinados. Outros 350 bilhões de dólares (1,8 trilhão de reais) serão destinados aos Governos estaduais e locais para ajudá-los a reduzir os déficits orçamentários. Mas a maior fatia desse grande pacote de estímulo é destinada aos trabalhadores e às famílias, com um total de 1 trilhão de dólares (5,3 trilhões de reais) em cheques diretos, no valor de 1.400 dólares (7.390 reais) cada um ―mais que o dobro dos 600 dólares (quase 3.670 reais) aprovados no último programa de ajuda do Congresso―; um seguro-desemprego mais generoso, que passará de 300 para 400 dólares (de 1.580 para quase 2.110 reais) por semana e será estendido até setembro; licenças remuneradas para trabalhadores que adoeçam de covid-19 e subsídios mais amplos para cuidar dos filhos. Outros 440 bilhões de dólares (2,3 trilhões de reais) serão destinados para apoiar as pequenas e médias empresas e as comunidades mais afetadas pela pandemia.” Ver em: https://brasil.elpais.com/economia/2021-01-15/biden-anuncia-plano-de-ajuda-de-19-trilhao-de-dolares-para-combater-a-crise.html 

Há nesse pacote um início do chamado “Green New Deal”, que é uma atualização do New Deal que tirou a Economia estadunidense da recessão na década de 1930, com Keynes como grande maestro no século passado, com grandes obras públicas de infraestrutura e estímulo às empresas. A atualidade do Green New Deal é porque agora os investimentos produtivos são em energias limpas, como eólica e solar, e na criação de uma grande infraestrutura para uma transição ecológica na Economia. 

Infelizmente essa política acertada no plano interno dos EUA, sob o governo Biden, vem acompanhada de uma agressividade militar e beligerância contra a China e a Rússia, com provocações militares dos norte-americanos e uma escalada de acusações e de articulações para tentar isolar politicamente e agredir militarmente os dois países asiáticos. Assinalamos o pacote interno de Biden para demonstrar a contradição do receituário neoliberal de austeridade do Brasil com o que a principal economia capitalista está efetivamente a fazer. Mas há no plano da Geopolítica, das relações internacionais, um quadro negativo pela volta da tentativa dos estadunidenses em impor seu poderio militar como única superpotência planetária, justamente numa fase em que essa supremacia não existe mais nos campos econômico, social e sanitário. Hoje no campo econômico a China trouxe o eixo econômico mundial para a Ásia e suas alianças com a Rússia e com diversos países visam o projeto “One Road, One Belt” ou “Nova Rota da Seda”.

É interessante perceber o silêncio da mídia ocidental sobre o que ocorre na China, na Rússia, no Vietnam e outros países orientais. Esse comportamento partidário da mídia acaba demonstrando um etnocentrismo exacerbado e um desconhecimento do que ocorre naquela parte do mundo, onde se tem o maior crescimento econômico e os melhores resultados no combate à pandemia. No âmbito sanitário, a China não tem pandemia desde meados do ano passado e seu PIB em 2020 cresceu 2,5%, devido a medidas sanitárias firmes e responsáveis, que demonstraram serem acertados.

No plano da Economia, vale lembrar que ocorreu dias 21, 22 e 23 de outubro de 2020 um fórum de vários países que foi um marco nas relações internacionais, inaugurando uma fase de internacionalismo de experiências contra hegemônicas no mundo. Trata-se da Plataforma Interpartidária Internacional na Internet / “International Interparty Internet Platform” (IIIP), que teve como núcleo inicial a Organização de Cooperação de Xangai (com a sigla em inglês SCO) e seus partidos dirigentes. A SCO é composta pelos países: China, Rússia, Índia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão e Paquistão. A SCO conta ainda como Estados observadores o Afeganistão, a Bielorrússia, o Irã e a Mongólia. Há ainda seis “parceiros de diálogo”: a Armênia, o Azerbaijão, o Camboja, o Nepal, o Sri Lanka e a Turquia.

A SCO estabeleceu relações com as Nações Unidas, onde é um observador na Assembleia Geral, com a União Europeia, com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), a Comunidade de Estados Independentes e da Organização para a Cooperação Islâmica. Isso já demonstra a amplitude de relações estabelecida com um tripé econômico, geopolítico e de segurança. Esse conjunto de países membros e observadores já abrange mais de 70% do território da Ásia, metade da população mundial e mais da metade do Produto Interno Bruto Internacional. A China já ultrapassou os Estados Unidos como principal potência econômica, se avaliarmos o PIB pelo critério de paridade de poder de compra das moedas nacionais, e dentro de poucos anos a China ultrapassará o PIB estadunidense também em valores absolutos de dólares.

Essa organização internacional promove o projeto da Nova Rota da Seda, com pesados investimentos em infraestrutura de estradas, ferrovias, oleodutos, construção de portos, aeroportos e uma base para um reflorescimento econômico. A presença geopolítica desse bloco asiático se dá por investimentos econômicos, geração de empregos, integração econômica e de mobilidade. Uma iniciativa de integração da China até a Turquia, uma estratégia bem diferente e superior ao que a hegemonia estadunidense faz de presença militar ou “guerras híbridas” empreendidas para derrubar governos.

O caminho dessa iniciativa também tem um perfil de forte intervenção estatal, muito longe do desmonte estatal e da austeridade fiscal de Bolsonaro e Guedes. Seja no setor financeiro, nas principais empresas da economia e no planejamento econômico constatamos o protagonismo do Estado, com a indicação de quais setores devem se desenvolver, inclusive estimulando várias empresas privadas, que estão em associação com o Estado. Esse é o caminho que se tornou dominante no mundo. Na China o setor financeiro é apenas de bancos estatais, o principal setor econômico dominante são as 149 estatais que cuidam da infraestrutura, energia e outras áreas, mas têm também um setor privado forte, que se tornou poderoso pelo apoio e indução do Estado, além de uma ampla propriedade rural familiar e empresas locais nas pequenas cidades.

Essa anacronia do modelo atual brasileiro é destoante dos modelos que são bem sucedidos no planeta. Devido a essa filiação ideológica dos governos Temer e Bolsonaro aos interesses do mercado financeiro, o Brasil tem regredido nos três elementos essenciais para um país: igualdade social, Democracia e Soberania Nacional. A PEC 186 aprovada foi enfraquecida no seu objetivo de desmontar o Estado brasileiro, mas mesmo assim colocou um teto de gastos que diminuirá os recursos indispensáveis para o país e coloca a obrigação dos Estados e municípios venderem seus ativos para pagar sua despesa corrente. Trata-se de uma PEC com o objetivo de evitar que a destruição do Estado seja revertida. Assim como a PEC 95 do congelamento de gastos por 20 anos, é um outro instrumento para engessar a gestão e impedir que o país rompa num futuro próximo com a situação de recessão crônica, subserviência aos interesses financeiros e estrangeiros e destruição de políticas sociais.

Classificação Indicativa: Livre

FacebookTwitterWhatsApp