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Preciso ensinar que meu cabelo não é piada, branco?

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Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 21/04/2021, às 12h58   Yuri Silva


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O racismo recreativo, aquele que age disfarçado de humor, nos apontou historicamente que nossos cabelos são ruins e devem ser comparados a esponjas de aço. Foi ele que sentenciou que seríamos feios ou que teríamos ou cara de mendigo ou de bandido, nos comparando a personagens icônicos da cultura pop, como os homens das cavernas.

A elite e a branquitude brasileiras, sempre autocentradas, nunca buscaram debater a questão racial com afinco. Preferiram, do mesmo jeito que fizeram com a ditadura militar, empurrar para debaixo do tapete esse câncer social iniciado com a esravidão e que resiste firme, em metástase avançada, como elemento da identidade nacional.

Sem nunca imaginar que essa discussão se estenderia para programas de TV de convivência, no formato reality show, Joaquim Nabuco, o historiador e diplomata abolicionista, vaticinou sobre isso lá atrás, no longínquo ano de 1900. Em ‘Minha Formação’, o clássico de memórias escrito pelo pernambucano, ele eternizaria a frase que depois Caetano Veloso levou para a canção ‘Noites do Norte’, do disco homônimo. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.

Ao promover uma discussão bem intencionada sobre o assunto, o Big Brother Brasil, há duas semanas, ajudou a combalir um pouco do racismo recreativo e atacou essa característica fundante da nossa identidade nacional. Expôs em rede nacional a atitude do cantor sertanejo Rodolfo, que, vestido de homem das cavernas, riu do cabelo do professor de geografia João Luiz e comparou o cabelo dele ao da personagem.

Foi além e deu uma aula sobre racismo, na voz do apresentador Tiago Leifert. “De homem branco para homem branco”, falou Leifert, direcionado a Rodolfo, por vários minutos em rede nacional. O ato veio da mesma TV Globo que, há anos atrás, utilizou em seu cenário bonecos com cabelo black power que tinham a função de lavar objetos na pia da cozinha. Ou que permitiu que uma participante vencesse o mesmo BBB cometendo uma série de crimes de racismo e intolerância religiosa no decorrer da atração televisiva. 

Ao mesmo tempo, Leifert, João e Camila de Lucas, outra participante negra do programa, atacaram outro ponto central de episódios de racismo recreativo. Mais que isso: expuseram como a branquitude é incapaz de voltar-se de forma séria para temas tão relevantes. Eles explicaram, didaticamente, que não temos a obrigação de ensinar sobre racismo para os outros. Cabe, a quem realmente tem interesse em mudar essa realidade, estudar, pesquisar. Não estamos falando de pessoas incapazes de acessar conhecimento.

Se já somos vítimas, por que devemos ainda ensinar o básico para quem  é algoz? É preciso mesmo ensinar que nosso cabelo não é motivo de piada? O racismo só será combatido com um pacto interracial, mas principalmente com muito trabalho dos brancos. Afinal, foram os brancos que criaram o racismo e o conceito de raça, não fomos nós que inventamos isso. O primeiro passo para isso é admitir que o racismo existe – coisa que a elite brasileira ainda nega. O segundo, reconhecer que incorre em práticas desse tipo, como Rodolfo tentou não fazer, sob o argumento da boa intenção, da qual o inferno está cheio.

Fica evidente que é destino da branquitude, e só dela, encerrar esse ciclo que a própria iniciou. Novamente evocando Nabuco, por mais que tentem nos relegar à tarefa inglória de combater soiznhos a mazela centenária do racismo que nos abate, “a escravidão na América é sempre o crime da raça branca”. Ou como diria Caetano em Noites do Norte, “ela povoou o país como se fosse uma religião natural e viva”.

Yuri Silva é Coordenador de Direitos Humanos do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE). Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, também é coordenador nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P, da Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e o jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política.

Classificação Indicativa: Livre

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