Artigo

Bolsonaro, as Forças Armadas e o fantasma do Golpe

Imagem Bolsonaro, as Forças Armadas e o fantasma do Golpe
Bnews - Divulgação

Publicado em 08/08/2022, às 14h23   Luiz Filgueiras*


FacebookTwitterWhatsApp

Depois de três anos e sete meses do Governo de Jair Bolsonaro, podemos chegar à seguinte conclusão: Bolsonaro parece ser inimputável, isto é, apesar de cometer inúmeros crimes na Presidência da República nada acontece - situação inimaginável com qualquer outro Presidente da República; basta ver o argumento pífio (“pedaladas fiscais”) justificador do impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff. Por quê?

Eis a lista, impossível de ser contestada: 1- Conspirou aberta, e reiteradamente, contra a democracia, mobilizando o seu movimento neofascista e tentando desmoralizar os outros poderes da república e/ou neles interferindo; a reunião com os embaixadores, embora muito mais grave (agrediu a soberania do país), foi apenas mais uma. 2- Atuou contra a saúde do povo brasileiro durante todo o tempo da pandemia, negando a gravidade da covid, “receitando” medicamentos inapropriados para combater a doença, atuando contra todas as recomendações da OMS, retardando a compra e aplicação de vacinas. 3- Teve participação direta ou indiretamente na apropriação de dinheiro público por parte de seus indicados nos Ministérios da Saúde e da Educação. 4- Estimulou o desmatamento e as queimadas na floresta amazônica, apoiando a pecuária e o garimpo (ilegalmente) em terras indígenas, desidratando a FUNAI e a sua fiscalização. 5- Associou-se com o parlamento completamente avacalhado, eleito em 2018 em boa medida pela onda bolsonarista, para infringir todas as leis orçamentárias e eleitorais do país, viabilizando o escândalo do “orçamento secreto” e a reforma da Constituição para aprovar gastos em pleno ano eleitoral e há menos de três meses das eleições. 6- Interferiu na autonomia da Polícia Federal para proteger seus familiares, no escândalo das “rachadinhas”. Essa lista não é exaustiva, mas por questão de espaço vai-se parar por aqui.

Há duas circunstâncias que podem ajudar a explicar isso: 1- O apoio político cínico, quase clandestino (envergonhado?), do “andar de cima”, o grande capital (principalmente comercial-financeiro) e o agronegócio, que ganham com as reformas e políticas neoliberais implementadas ou prometidas. 2- A existência de um núcleo duro bolsonarista mobilizado (um movimento neofascista enraizado na sociedade), originado em segmentos da classe média, mas que se difundiu além dela, e cuja presença pode ser identificada nas forças de segurança (militares, civis e paramilitares), Igrejas Evangélicas (em especial as suas denominações (neo)pentecostais), Instituições da Justiça e grande mídia corporativa, no Ministério Público e nos parlamentos. Fortemente articulado através das redes sociais, é a vanguarda do bolsonarismo, a sua principal arma. Por isso, a derrota eleitoral de Bolsonaro significará uma forte derrota desse movimento, mas não decretará o seu fim.

Essas são razões que, juntamente com o aparelhamento da Procuradoria Geral da República e da Polícia Federal, assim como a blindagem promovida pelo parlamento (nas figuras de Lira e Pacheco) explicam a resiliência de Bolsonaro, apesar de todas as barbaridades até aqui cometidas; mas, em si mesmas, não podem torná-lo inimputável, apesar de ajudar fortemente. A questão central, que não pode ser calada é outra, e deve ser dita claramente: é o papel político das forças armadas (identificadas, no mínimo, com a agenda de Bolsonaro), que se arvoram, justamente por estarem armadas, e contrariamente à Constituição, em tutelar a sociedade brasileira, como se esta fosse de “menor idade”. E pior, uma tutela a partir de uma visão de extrema-direita saudosista dos tempos da Guerra Fria, que permanentemente erige o perigo do comunismo e a existência de “inimigos internos” como argumentos e razões para interferir no cenário político do país. Comportamento reiterado em todos os momentos históricos mais importantes do país, como a Ditadura do “Estado Novo” (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964 a 1985).

A participação das forças armadas, como sujeito ativo no processo político brasileiro, vem desde o golpe que proclamou a República, passando pela ditadura de Floriano Peixoto, o movimento tenentista nos anos 1920, a Revolução de 1930, as tentativas de golpe em 1954, 1955 e 1961, o golpe de 1964 e a transição para a democracia - impondo uma anistia aos torturadores (1979) e atuando pela eleição indireta para a Presidência da República (1984). Portanto, não há como ignorar essa realidade, como muitos querem fazer, imputando exclusivamente à Bolsonaro a responsabilidade golpista atual. Todavia, as atuais circunstâncias histórico-conjunturais (internas e internacionais) não favorecem a possibilidade de um golpe; internamente, a reação à última tentativa de Bolsonaro de desmoralizar as urnas eletrônicas e as eleições não contou com nenhum apoio, inclusive entre os seus aliados (o Centrão), implicando em fortes manifestações e repúdios por parte de inúmeras instituições do Estado e da sociedade civil. E, internacionalmente, a iniciativa (literalmente um “tiro no pé”) o isolou politicamente mais ainda, dando origem a uma nota da embaixada dos EUA desautorizando as suas acusações.
Essas circunstâncias contêm e inviabilizam, sem dúvida, o ímpeto golpista que está no DNA das forças armadas (atualmente aparentemente divididas), embora não impeçam as iniciativas de Bolsonaro. Mas aí, isso nos leva a outra questão: por que a sociedade tem permitido que as forças armadas no Brasil, ao longo de sua história, se comportem dessa maneira?

Essa questão demanda uma resposta longa, que não pode ser dada, cabalmente, no presente artigo. No entanto, pode-se adiantá-la de forma bastante resumida da seguinte forma:

O Brasil, como toda a América Latina, é um país de capitalismo dependente, uma forma de capitalismo constituído de forma tardia, na virada do século XIX para o século XX, já no âmbito de uma divisão internacional do trabalho sob a hegemonia dos países imperialistas – incialmente capitaneados pela Inglaterra e depois os EUA. Essa circunstância deu origem a uma classe dominante, a famosa “elite”, associada de forma subordinada ao capital estrangeiro; o que implica uma transferência de excedente, através da superexploração do trabalho, para fora do país. Nessa situação, a classe dominante (e suas frações) não consegue conviver de forma estrutural com a democracia, pois esta exige mais que eleições, liberdade de imprensa, direito de associação e reunião, separação dos poderes, em suma, o Estado de Direito. A estabilidade e solidez da democracia exigem a distribuição da riqueza e da renda em alguma medida – o que o capitalismo dependente, e suas classes dominantes, não permitem e não aceitam.

É nesse contexto que deve ser entendida a forma como as forças armadas atuam politicamente na América Latina, em particular no Brasil. As classes dominantes, direta ou indiretamente, explicitamente ou de forma disfarçada, as utilizam para se protegerem do “andar de baixo”, dando como contrapartida algumas benesses propiciadas pela trágica desigualdade que caracterizam essas sociedades. Isso significa que a reversão dessa situação é uma tarefa hercúlea, mas que deve ser enfrentada, se se quiser estabelecer e garantir uma democracia substantiva. Do ponto de vista estrutural, entre outras inciativas fundamentais, é crucial redefinir o modo como os militares, em especial os oficiais, são formados nas escolas e academias militares. E, na atual conjuntura, a forças democráticas, que combatem o neofascismo bolsonarista, devem confrontá-las politicamente todas as vezes que o seu DNA golpista se manifestar politicamente; este comportamento, e não o medo, é decisivo para defender a democracia.

*Luiz Filgueiras - Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.

Classificação Indicativa: Livre

FacebookTwitterWhatsApp