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No Brasil das fake news não podemos fugir da realidade: o verbo ainda é lutar

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Hieros Vasconcelos, jornalista especializado em política com passagens pelos Jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Extra  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 07/11/2022, às 20h04   Hieros Vasconcelos*


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Essas eleições foram, pra muita gente, o expurgo de um punhado de dores, angústias e tormentos que nos acompanhou durante os últimos quatros anos de forma obcecada, como um peso amarrado às costas. Desde o dia 30 de outubro parece que saímos de uma travessia torturante com destino a um novo lugar que pensa no bem comum, sem fome, sem pobreza, sem racismo, sem machismo, sem LGBTFOBIA e sem o discurso de ódio que nos provocou todos os tipos de danos à saúde, mas dilacerou principalmente nosso fígado, coração e nossa mente por ininterruptos quatro anos.

Uma vitória apertada, mas significativa pois vencemos e sobrevivemos a todo tipo de ataques nesse período mais espúrio desde a ditadura. Após quatro anos de abuso do poder econômico, do poder político e das violações de normas constitucionais e eleitorais, vencemos a máquina podre do governo federal, o orçamento secreto e seus recursos financeiros criminosamente utilizados para tentar nos derrotar. Vencemos, por hora, o fundamentalismo religioso, a intolerância, a manipulação promovidas por milhares de instituições religiosas que faziam lavagem cerebral em seus seguidores. Vencemos o empresariado que assediava seus trabalhadores. Vencemos as milícias, os sujíssimos artifícios do fascismo e do nazismo trazidos a tona inescrupulosamente. Vencemos, mesmo diante da poderosa máquina de fake news atuando, mesmo com todo todo tipo de golpe para impedir essa vitória, dada em peso pelo Nordeste, onde a Polícia Rodoviária Federal bloqueou estradas.

Há quem diga que foi uma vitória identitária, pois as pesquisas deixaram nítido que quem não soltou a mão de ninguém foram as mulheres, os negros, os pardos, os indígenas, os pobres, os lgbtqiap+, os movimentos sociais e de base. Uma vitória que representa a união das minorias, ou das maiorias minorizadas, como lembrou bem a jornalista Flávia Oliveira, comentarista política da GloboNews, em seu desabafo que a levou às lágrimas e que corre as redes sociais.

Desde o dia 30 tenho acordado, assim como alguns amigos, mais feliz e esperançoso. Mas no Brasil das fake news a gente não pode fugir da realidade. Basta sair de casa e ler os jornais para se deparar com ela: como estão acordando pós-eleicoes milhares de pessoas com fome? Que perderam emprego, poder de compra, que passaram a viver em insegurança alimentar, sem fonte de renda nenhuma, famélicos pelas ruas? Como acordaram as pessoas que perderam a dignidade (algumas nunca a tiveram) e a humanidade, atingidos pela pobreza, vítimas de todos os ataques do governo Bolsonaro?

Uma semana depois da vitória de Lula, as páginas de site e de jornais nos dão doses fortes da realidade que temos que encarar para mudar. Informações sobre Kauana Vasconcelos, aadolescente trans de 16 anos, assassinada por três homens com requintes de crueldade, esfaqueada e afogada no interior da Bahia. Uma criança enforcada por um policial aposentado porque falou Lula lá. Como acordaram suas famílias?

A realidade joga na nossa cara quase meetade do eleitorado de alienados, adoecidos e entorpecidos por fake news, promovendo inimagináveis disparates e insanidades, completamente risíveis mas preocupantes, tamanho o delírio. Sobre eles, Freud no livro “Psicologia das Massas e Análises do Eu”, chama atenção de como funciona um indíviduo de massa, comparando-o ao status de hipnose, ou do despertar de um instinto primitivo, onde esse indivíduo desce degraus na escala da civilização, cedendo aos movimentos de rebanho perante a diminuição da capacidade intelectual de discernimento. Até chegar ao ponto de se tornar mais estúpido e violento.

Novamente a realidade se esfregando na nossa cara, lembrando que essa população precisa também de cuidado, principalmente diante de um congresso com uma bancada eleita ainda maior que alimenta essa estupidez, monstros criados pelo bolsonarismo que ficaram maior do que a própria figura de Bolsonaro.

O ódio, a violência, o genocídio do povo negro, o feminicídio, as desigualdades sociais, a ignorância. Está tudo isso aqui, debaixo dos nossos olhos, como sempre, entranhado nesse país. Falta muita dignidade ao nosso povo.

Agora há um novo Brasil para reconstruir, para voltar a ter capital político de mudança social, de reeducação através de um novo pensamento de sociedade: investir em educação, combate à pobreza, políticas públicas de inclusão, de reparação, de conscientização. Consertar os ministérios, de maneira justa e competente, fazer tudo para acabar com o ódio e puxar de volta aqueles que foram tragados pelo poço do fascismo.

Que essa esperança com a qual temos acordado todos os dias, nos dê motivação. Mesmo diante de toda essa desgraça e ódio que a realidade nos mostra diariamente, o discurso de que o amor vencera o ódio, ainda que difícil de se colocar em prática de imediato, é o que faz a ligação nos grupos humanos e assegura a solidariedade.

Ainda estamos longe de estar num mar de rosas, mas já dá pra sentir o cheiro das flores. As cobranças vão continuar, os movimentos sociais vão continuar. Vencemos, mas a esperança e a luta tem que continuar!

*Hieros Vasconcelos, jornalista especializado em política com passagens pelos Jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Extra

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